2473. “O Mercosul aos 22
anos: algo a comemorar?”, Hartford, 24 Março 2013, 4 p. Artigo feito com base
no trabalho 1564 (Brasília, 24 de março de 2006), para marcar a passagem de
mais um aniversário do bloco. Postado no blog Diplomatizzando (link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2013/03/o-mercosul-aos-22-anos-algo-comemorar.html)
e linkado no post sobre o livro do Mercosul 21 anos (http://diplomatizzando.blogspot.com/2013/04/mercosul-21-anos-livro-prefacio-de.html).
O Mercosul aos 22
anos: algo a comemorar?
Paulo Roberto de Almeida
Professor do Uniceub (Brasília) e diplomata.
O Mercosul – ou
mercado comum do sul – registra, em março de 2013, o 22o. ano de sua
existência formal, num clima que poderia ser caracterizado como de relativa
indiferença, por parte de seus protagonistas principais, e de quase
desconhecimento, da maior parte do público em geral. Aparentemente, ele já não
desperta mais reações favoráveis ou desfavoráveis no seio da sociedade, tendo deixado
de ser o centro das preocupações prioritárias dos responsáveis políticos, mesmo
se os discursos oficiais continuam a proclamar seu papel estratégico nas
relações regionais. Um ano após sua maioridade formal, o bloco não parece ter,
efetivamente, motivos para comemorações, com a suspensão de um de seus membros
originais – o Paraguai – e o ingresso em condições altamente controversas de um
novo, a Venezuela. Cabe, no entanto, um pequeno resumo de sua trajetória e uma
reflexão sobre o seu futuro.
O processo de
integração começou sua trajetória institucional a partir de 1985, com os
esquemas bilaterais entre a Argentina e o Brasil. Um tratado bilateral de
integração, em 1988, prometia o estabelecimento de um mercado comum em dez
anos, por meio de protocolos setoriais de integração, numa visão de
complementaridade das duas economias. Em 1990, os presidentes Carlos Menem e
Fernando Collor decidiram acelerar o processo, com posterior adesão do Paraguai
e do Uruguai: o novo esquema de liberalização, consagrado no tratado de
Assunção (de 26 de março de 1991), passou a ser automático, geral e de
características fundamentalmente livre-cambistas. Os novos prazos de integração
foram reduzidos pela metade e o “mercado comum” deveria ter sido alcançado até
o início de 1995. Não é preciso dizer que tal não ocorreu.
A despeito de
graves problemas de estabilização macroeconômica no Brasil e na Argentina, em
meados daquela década, a liberalização comercial caminhou de forma mais ou
menos rápida, abrindo espaço para o aumento do comércio intrarregional. Não
obstante a expansão de comércio, dentro e fora do bloco, não foram criadas as condições
estruturais para que os dois principais países – Brasil e Argentina –
realizassem uma das premissas do tratado constitutivo, qual seja, a da abertura
econômica continuada e a inserção de ambos na economia mundial. Ocorreu,
contraditoriamente às expectativas dos primeiros anos, uma introversão do
comércio, configurando aquela consequência nefasta dos processos de integração,
que os economistas chamam de “desvio de comércio” (e de investimentos). Foi
registrada uma espécie de “Brasil-dependência” na Argentina, uma vez que esta
tinha no seu maior vizinho o destino para mais de um terço de suas exportações
totais e um volume praticamente similar nas importações. O Brasil, embora menos
dependente do comércio regional, também construiu para si uma espécie de
“reserva de mercado ampliada”, o que pode ter arrefecido a busca de novos
mercados.
O protocolo de
Ouro Preto, assinado no final de 1994 para “completar” o tratado de Assunção,
não criou instituições novas (com exceção de uma Comissão de Comércio que
jamais conseguiu aprovar um código aduaneiro efetivo), nem estabeleceu
mecanismos para facilitar a coordenação das políticas macroeconômicas dos
países membros. Não obstante os avanços, não se chegou ao prometido “mercado
comum” ou mesmo à união aduaneira completa, mantendo-se várias exceções à
Tarifa Externa Comum. Muitos produtos continuaram fora da zona de
livre-comércio, como açúcar e automóveis, por exemplo. Na verdade, depois da
fase de transição, as orientações de política comerciais dos principais
protagonistas jamais voltaram a se guiar pelas promessas de abertura e
liberalização, caminhando no sentido contrário ao esperado.
Em 1996, Chile e
Bolívia tornaram-se parceiros da “zona de livre-comércio”, mas a associação ao
Mercosul dos demais parceiros do Grupo Andino teve de aguardar até os anos
2003-2005. A “ameaça” da Alca – projeto dos EUA para unificar numa mesma zona
de livre-comércio todos os países do hemisfério – fez com que o Mercosul
desenvolvesse uma estratégia comercial defensiva da qual ele jamais se
separaria nos dez anos que se seguiram de processo negociador.
A desvalorização
da moeda brasileira em 1999 representou um choque para a Argentina e o início
de uma fase crítica para o Mercosul, que se prolongou até os nossos dias. A
Argentina entrou em crise no final de 2001, o que coincidiu com o decréscimo nos
fluxos de comércio: ela começou a recorrer, de modo frequente, a mecanismos de
defesa comercial (salvaguardas unilaterais). A despeito da retomada do
crescimento do comércio intrarregional a partir de 2003 permaneceram os
desequilíbrios, motivando demandas de proteção por parte da União Industrial
Argentina; o processo foi levado a extremos, com recurso a medidas claramente
ilegais no âmbito do bloco e até mesmo do ponto de vista do sistema
multilateral de comércio. Deve-se reconhecer que a atitude do governo
brasileiro revelou-se estranhamente compreensiva com as infrações regulares às
normas do bloco.
Em 2004 a
Argentina começou a pressionar pela adoção de um instrumento de salvaguardas
automáticas, eufemisticamente caracterizado como sendo um “mecanismo de
adaptação competitiva”, que ela pretendia implementar de maneira unilateral.
Antes, ela já tinha insistido num “gatilho cambial”, o que foi abandonado, em vista
da persistente valorização da moeda brasileira a partir de 2003. No início de
2006, os dois países adotaram o projeto argentino para salvaguardas setoriais,
recebido com reclamos por parte da indústria brasileira. No plano político, houve
a criação de um fundo corretor de assimetrias estruturais – a ser utilizado
sobretudo pelos dois sócios menores, mas com maior volume de financiamento por
parte do Brasil – e a instituição de um “parlamento” do Mercosul, considerado
um aperfeiçoamento institucional. Nem um, nem outro instrumento tocaram, de
fato, nas pendências comerciais ou permitiram superar os obstáculos políticos à
realização das metas inscritas do tratado de Assunção.
Assistiu-se,
retoricamente, a demandas recorrentes pelo estabelecimento de “cadeias
produtivas setoriais conjuntas”, iniciativas inviabilizadas na prática pela
incapacidade dos governos de cada um dos países de prestar assistência
financeira ou empreender investimentos em base a recursos públicos. Mas
voltou-se a dar ênfase, naquele período, sobretudo sob impulso político do
governo brasileiro, aos projetos de integração física continental, intenção consagrada
na criação da “Comunidade Sul-Americana de Nações” (dezembro de 2004), depois
convertida em União, pela ação do governo “socialista” da Venezuela.
A Venezuela,
justamente, foi admitida “politicamente” no Mercosul, em dezembro de 2005, tendo
os termos de sua incorporação comercial sido consagrados no protocolo de adesão
de 2006; ela nunca chegou a completar, porém, os requerimentos estabelecidos
neste e em outros instrumentos do Mercosul. Com a diluição da “ameaça” da Alca
– inclusive a partir de sua virtual paralisação na terceira cúpula hemisférica,
em Mar del Plata, no final de 2005, por atuação conjunta da Argentina, do
Brasil e da Venezuela –, os países sul-americanos passaram a construir, com
estratégias e objetivos muito diversos, uma nova agenda integracionista para a
região, menos voltada para a liberalização comercial e mais orientada para a
cooperação política e o estabelecimento de ligações físicas. Esse esforço
redundou na Unasul e em diversos outros mecanismos (Calc, e depois Celac,
ademais de um conselho de defesa), de importância mais retórica do que efetiva:
para todos os efeitos práticos, a América Latina encontra-se fragmentada em
diferentes esquemas de integração, indo do livre-comércio ampliado a um retorno
do nacionalismo estatizante, o que também diluiu a importância do Mercosul na
região.
Com a crescente
importância econômica da Ásia Pacífico, alguns países da região – notadamente
México, Colômbia, Peru e Chile – voltam-se para diferentes iniciativas voltadas
para essa grande bacia oceânica, num cenário que também se caracteriza pela
existência de acordos bilaterais de livre comércio entre esses países e os
Estados Unidos. Os países do Mercosul parecem ter se conformado a um papel
menor nesses grandes desenvolvimentos da economia regional e mundial.
Na verdade, o
bloco atravessou sua maioridade formal enfrentando a maior crise de sua
história. Em 2012, usando como pretexto o afastamento do presidente eleito do
Paraguai numa crise política puramente interna, Argentina e Brasil suspenderam
a participação do país nas reuniões do bloco e procederam à admissão irregular
da Venezuela, num gesto altamente controverso, tanto no plano do direito
internacional como no das regras próprias do bloco. Permanecem indefinidas as
condições sob as quais a Venezuela poderá cumprir os requisitos formais de sua
adesão ao bloco, processo não concluído nos quatro anos estabelecidos no
protocolo de 2006, quando as condições econômicas no país bolivariano não se
tinham deteriorado como na atualidade. De fato, não há muito o que comemorar
neste início de segunda década do Mercosul: o bloco ainda não conseguiu retomar
sua agenda de integração regional e de inserção na economia mundial.
Hartford, 24 de março
de 2013