Bem, parece que muito diálogo cria confusão. Nessas coisas de diplomacia, quanto mais discrição melhor. Quem se aventura a falar muito, por aí, com outros objetivos que não do diálogo diplomático, corre o risco de ficar sem diálogo, entenderam?
Paulo Roberto de Almeida
Reunião Brasil-EUA é cancelada após polêmicapor Isabel De Luca / Flávia Barbosa / Eliane Oliveira
O Globo, 27/09/2014
Itamaraty e Departamento de Estado divergem sobre quem desmarcou encontro entre Figueiredo e Kerry
NOVA YORK e BRASÍLIA — Dois dias após o polêmico discurso em que a presidente Dilma Rousseff criticou a intervenção militar dos EUA na Síria, um esperado encontro confirmado na véspera entre o ministro das Relações Exteriores, Luiz Alberto Figueiredo, e o secretário de Estado americano, John Kerry — no qual a coalizão que o governo Obama vem formando para combater o Estado Islâmico certamente seria um dos principais temas — foi cancelado, com os dois lados divergindo sobre os motivos.
Segundo fontes, a conversa não aconteceu por problemas de agenda do secretário de Estado. Perguntado sobre o que ocorreu, o chanceler relatou que ele e Kerry se encontraram rapidamente nesta sexta-feira, durante um evento sobre direitos dos homossexuais, em Nova York, e que os dois combinaram de se reunir nos próximos dias, para tratarem da situação no Oriente Médio.
— Nós vamos remarcar o encontro — disse.
Já o Itamaraty informou que a reunião não aconteceu devido a questões de agenda interna, embora não houvesse nenhum compromisso oficial preciso para sexta-feira. De qualquer forma, lembraram assessores do chanceler, Figueiredo e Kerry conversam com frequência, inclusive por telefone.
O Departamento de Estado, por sua vez, afirmou que "o ministro Figueiredo teve de voltar ao Brasil e por isso não pôde comparecer ao encontro com o secretário Kerry que estava marcado para esta sexta-feira" e instruiu o GLOBO a buscar mais esclarecimentos com o governo brasileiro sobre os motivos do cancelamento.
Em Brasília, Figueiredo, afirmou que as declarações dadas pela presidente Dilma durante a viagem para a Assembleia Geral foram mal interpretadas. Segundo ele, quando Dilma defendeu o diálogo — e não a força — na questão do combate ao terrorismo cometido por fundamentalistas radicais islâmicos, ela queria dizer que é preciso a formulação de uma estratégia mundial com base nos princípios do multilateralismo.
Dilma disse "lamentar enormemente" o ataque aéreo realizado pelos Estados Unidos contra o grupo extremista Estado Islâmico, após discursar na Cúpula do Clima das Nações Unidas. Disse que o Brasil sempre vai acreditar que a melhor forma é o diálogo, o acordo e a intermediação da ONU. No dia seguinte, ela voltou a criticar os bombardeios e afirmou que eles não resolveriam o problema.
— O Brasil não quer dialogar com bandido. O Brasil não acha que se deve dialogar com o Estado Islâmico. A presidenta da República quer o diálogo entre Estados, o mesmo que levou ao desmantelamento do arsenal químico na Síria. Atacar apenas não resolve. É preciso solucionar as causas profundas da questão — disse o ministro ao GLOBO.
Figueiredo lembrou que a resolução aprovada unanimemente pelo Conselho de Segurança da ONU na última quarta-feira não é uma autorização para ataque, e sim tratava sobre o recrutamento de terroristas em outros países. A medida recomenda aos Estados que dificultem esse arrebanhamento.
— O uso da força nas relações internacionais só pode ser feito por duas razões: por autorização do Conselho de Segurança, ou em caso de legítima defesa. Vamos dizer que o Iraque peça ajuda aos árabes, ou aos EUA, para ajudar a vencer militarmente esses terroristas, o que é perfeitamente viável nos termos da Carta da ONU. Agora, atacar eventualmente áreas de outros países que não pediram [no caso dos bombardeios americanos, a Síria], aí já não é. Daí a importância de se ter um diálogo internacional que monte uma resposta ao terrorismo — afirmou o chanceler.
Apesar das críticas do Brasil e do desencontro entre os chanceleres, o governo norte-americano afirmou ainda ter "esperança" na participação do Brasil na campanha internacional contra o grupo terrorista Estado Islâmico. Segundo a subsecretária para o Hemisfério Ocidental do Departamento de Estado, Roberta Jacobson — diplomata e principal interlocutora norte-americana para América Latina —, a despeito do repúdio manifestado pela presidente Dilma Rousseff à operação militar liderada pelos americanos na Síria, o país, por ser "grande e importante", pode ter um papel a desempenhar nos esforços aliados.
— No caso de um país grande e importante como o Brasil, definitivamente há um papel a ser desempenhado aqui. Pode ser em áreas como ajuda humanitária, em que o Brasil teve papel importante em vários outros conflitos, e em áreas como combatentes estrangeiros e financeira. Nós ainda temos esperança nisso — disse a diplomata, sem oferecer detalhes.
Roberta Jacobson concedeu entrevista à imprensa em Nova York, onde participa de eventos relacionados e paralelos à 69ª Assembleia Geral das Nações Unidas. Ele não soube informar se o governo norte-americano fez algum pedido específico ao Palácio do Planalto ou ao Itamaraty, lembrando que a semana foi muito corrida para as autoridades dos EUA.
— O que eu posso dizer é que as conversas sobre todos os países serem capazes de fazer alguma coisa nessa luta certamente estão em curso. Se houve ou não pedidos específicos ao Brasil, o que eu não sei e não tenho certeza de que ocorreu, certamente nós esperamos que todo país pode contribuir — explicou ela, que esquivou-se de comentar as críticas de Dilma.