De vez em quando, personagens perfeitamente obscuros, que jamais deveriam ter saído dos bastidores (ou das catacumbas) da História, conseguem a ocupar posições de relevo em determinadas circunstâncias e em momentos excepcionais de processos dramáticos de transformação social e política de uma nação, como foi o caso, por exemplo, da Revolução francesa e dos momentosos episódios que se lhe seguiram: Assembleia Constituinte, Convenção, Diretório, Comitê de Salvação Pública no Termidor, consulado, primeiro cônsul, Império, Waterloo, Cem Dias (êpa!), Restauração, fracasso dos Bourbons, nova realeza (e depois a monarquia burguesa, antes de 1848 e sua segunda República, logo substituída por um novo Império).
Tal foi o caso de Fouché, que atravessou pelo menos cinco regimes políticos franceses, entre o Ancien Régime e a monarquia medíocre dos Bourbons – aqueles que, como disse Talleyrand, "nada esqueceram, nada aprenderam" –, e a todos eles serviu de forma subserviente, como muito bem descrito na genial biografia de Stefan Zweig sobre um dos mais execráveis personagens da história da França moderna e contemporânea. A genialidade de Zweig consiste justamente nisso: ter focado num personagem obscuro – que só tinha sido reconhecido como relevante pelo outro genial escritor que foi Balzac – e, através dele, seguir toda a trajetória da França do Antigo Regime até a Restauração. A sua biografia tem validade universal, pois podemos também encontrar na história do Brasil, até recente, personagens tão medíocres, traiçoeiros e nefastos, ainda que menos relevantes, quanto Fouché. Vocês sabem de quem estou falando (mas ele não é chefe da Polícia, ainda bem).
Leiam o Prefácio de Zweig à biografia de um dos maiores personagens menosprezados da história da França, texto que recolhi no site da Casa Stefan Zweig de Petrópolis, que visitei numa rápida estada na cidade serrana do Rio de Janeiro.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 16 de abril de 2019
Prefácio de Joseph
Fouché – retrato de um homem político
Stefan Zweig
Joseph Fouché, um dos
homens mais poderosos de sua época, um dos mais notáveis de todos os tempos,
encontrou pouca simpatia entre os contemporâneos e ainda menos justiça na
posteridade. Napoleão em Santa Helena, Robespierre entre os jacobinos, Carnot,
Barras, Talleyrand em suas Memórias, a pena de todos os historiadores
franceses, sejam monarquistas, republicanos ou bonapartistas, enche-se de fel
quando escreve seu nome. Traidor nato, intrigante miserável, réptil
escorregadio, desertor profissional, alma pequena de policial, amoralista
deplorável, não lhe poupam nenhum insulto, e nem Lamartine, nem Michelet ou
Louis Blanc tentam seriamente desvendar seu caráter, ou melhor, sua
admiravelmente obstinada falta de caráter. Seu retrato em contornos reais
aparece pela primeira vez naquela monumental biografia de Louis Madelin, ao
qual o presente estudo, como qualquer outro, deve a maior parte do material
factual. Com esta exceção, a história empurrou silenciosamente para a última
fileira dos figurantes insignificantes um homem que, numa guinada da história,
liderou todos os partidos e foi o único a sobreviver a eles, que no duelo
psicológico venceu um Napoleão e um Robespierre. Vez por outra, seu espectro
ainda ronda numa peça de teatro ou numa opereta sobre Napoleão, porém
geralmente como a caricatura gasta de um chefe de polícia astuto, de um
Sherlock Holmes anterior à sua época, pois uma caracterização pouco profunda
sempre relega a um papel secundário um ator que está em segundo plano, mas é
essencial.
Um único homem vislumbrou a dimensão desta
figura ímpar do alto de sua própria grandeza: Balzac. Este espírito elevado e
ao mesmo tempo perscrutador, que não observava apenas a cena da época, mas
espiava também sempre atrás dos bastidores, reconheceu Fouché sem reservas como
a personalidade psicologicamente mais interessante de seu século. Habituado, na
sua química dos sentimentos, a contemplar todas as paixões, não só as chamadas
heróicas como as consideradas baixas,como elementos de igual valor, habituado a
admirar da mesma forma um criminoso perfeito como Vautrin e um gênio como Louis
Lambert, sem jamais distinguir entre moral e falta de moral, mas sempre medindo
apenas a energia de uma pessoa e a intensidade de suas emoções, Balzac fez sair
de sua penumbra intencional este homem que está entre os mais desprezados e
difamados da Revolução e do Império. "O único ministro que Napoleão
teve", diz ele sobre este "gênio singular", depois “la
plus forte tête que je connaisse" [a
cabeça mais forte que conheci] e, em outro trecho, "um daqueles
personagens com tanta profundidade sob a superfície, que no momento em que agem
permanecem impenetráveis e só depois podem ser compreendidos".
Eis uma interpretação bem diferente das
ofensas dos moralistas! E no seu romance Une ténébreuse affaire dedica uma página especial a
esse"espírito sombrio, profundo e extraordinário, tão pouco
conhecido": "Seu gênio particular", escreve ele, "que
suscitou uma espécie de temor em Napoleão, não se revelou de uma vez. Este
obscuro membro da Convenção, um dos homens mais extraordinários e ao mesmo
tempo mais erroneamente julgados de seu tempo, cresceu em meio às crises. No
Diretório, alcançou uma altura de onde homens profundos conseguem divisar o
futuro por saberem julgar corretamente o passado. Depois, de repente dava
mostras de seu talento durante o 18 Brumário, assim como certos atores
medíocres que, iluminados por uma súbita inspiração, tornam-se excelentes. Este
homem de semblante pálido, educado na disciplina monacal, conhecia todos os
segredos da Montanha, facção à qual pertenceu inicialmente, como os dos
monarquistas, por cima dos quais finalmente passou. Este homem estudou gradual
e silenciosamente as pessoas, as coisas e as práticas do cenário político;
descobriu os segredos de Bonaparte, deu-lhe conselhos úteis e informações
preciosas (... ) nem os novos nem os antigos colegas suspeitavam então da
extensão de seu gênio, que era essencialmente um gênio de governo: exato em
todas as previsões e de uma argúcia inacreditável."
Assim escreveu Balzac. Tal homenagem chamou
minha atenção para Fouché, e há anos que me interesso por esse homem de quem
Balzac dizia ter "mais poder sobre as pessoas do que o próprio
Napoleão". Mas, tanto em vida quanto na história, Fouché sempre conseguiu
permanecer nos bastidores: não gostava que lhe vissem o rosto ou as cartas.
Quase sempre estava no meio dos acontecimentos, no seio dos partidos,
invisivelmente ativo e escondido atrás do véu anônimo de suas funções como o
mecanismo de um relógio. Raramente consegue-se fisgar-lhe a silhueta fugidia no
tumulto dos acontecimentos e nas curvas mais fechadas de sua trajetória. E o
que é mais estranho: à primeira vista,nenhum dos retratos fugazmente apanhados
de Fouché combina com outro. Custa algum esforço imaginar que a mesma pessoa,
com a mesma pele e os mesmos cabelos, tenha sido professor eclesiástico em
1790, já em 1792 saqueador de igrejas, em 1793 comunista, cinco anos depois
multimilionário e outros dez anos mais tarde duque de Otranto. Porém, quanto
mais ousadas suas transformações, mais interessante me pareceu o caráter, ou
melhor, a total falta de caráter desse mais perfeito Maquiavel da era moderna,
mais atraente se me afigurou sua vida política passada nos bastidores e na
clandestinidade, mais singular e demoníaca me pareceu sua figura. Foi assim
que, de maneira inesperada, por puro prazer psicológico, comecei a escrever a
história de Joseph Fouché como contribuição para um estudo biológico ainda
inexistente porém necessário dos diplomatas, esta raça intelectual ainda não
totalmente examinada, das mais perigosas do nosso mundo.
Sei que uma tal descrição de um homem sem
nenhuma moral, de alguém tão singular e importante como Joseph Fouché, vai de
encontro ao desejo evidente de nosso tempo. Nossa época quer e ama biografias
heróicas, pois, diante da carência de lideranças politicamente criativas, busca
no passado exemplos mais elevados. Não desconheço o poder das biografias
heróicas de elevar as almas, intensificar as forças, levantar o espírito. Desde
Plutarco, elas são necessárias para cada geração em ascensão, para cada nova
juventude. Mas é precisamente no âmbito político que elas correm o risco de
falsificar a história, ao levar a crer que – naquela época e sempre – os
verdadeiros líderes também determinam o destino do mundo. Sem dúvida, por sua
própria existência, uma natureza heróica domina a vida intelectual durante
décadas e séculos, mas apenas a intelectual. Na vida real, verdadeira, na
esfera do poder político – e isto deve ser frisado como alerta contra toda a
credulidade política –, raramente são as figuras superiores, as pessoas das
idéias puras que decidem, e sim uma categoria muito inferior, porém mais hábil:
os personagens dos bastidores.
Em 1914 e 1918, vimos como as decisões de
importância histórica universal sobre guerra e paz foram tomadas não conforme à
razão ou à responsabilidade, mas por indivíduos ocultos, de caráter duvidoso e
inteligência limitada. A cada dia verificamos que, no jogo ambíguo e muitas
vezes pecaminoso da política, ao qual os povos ainda confiam cegamente seus
filhos e seu futuro, não são os homens de visão ética e de convicções
inabaláveis que vencem, mas sim aqueles aventureiros profissionais que chamamos
diplomatas, esses artistas de mãos gatunas, palavras ocas e nervos gélidos. Se,
como já disse Napoleão há cem anos, a política realmente se tornou "la
fatalité moderne", o novo Destino,
tentemos reconhecer, em nossa defesa, os homens que estão por trás do poder e,
com isso, o segredo perigoso da sua força. Que esta história da vida de Joseph
Fouché seja uma contribuição para a análise do homem político.
Salzburgo, outono de 1929
in Joseph Fouché, retrato de um homem político. Rio de Janeiro: Editora Record,
1999. Tradução de Kristina Michahelles. (publicado com expressa autorização da
editora)