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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

domingo, 22 de novembro de 2020

A revolta CONTRA as elites - Brendan O’Neill, entrevista com Thomas Frank

 "As pessoas têm toda a razão em desconfiar das elites"


Thomas Frank fala sobre seu novo livro, 'The People, No', e por que o populismo pode ser uma força para o bem. Entrevista de Brendan O'Neill, da Spiked, com o historiador Thomas Frank, via Oeste:


Populismo se tornou um palavrão. Cada vez mais, é usado pelas elites para descrever movimentos políticos de que não gostam, em especial aqueles que são populares entre o público mais amplo. Sem conseguirem explicar de nenhuma outra forma as recentes revoltas democráticas desde o Brexit até Donald Trump, essas elites caracterizam suas derrotas humilhantes como resultado da manipulação de eleitores ingênuos por demagogos sinistros. Mas, quando apresentam essas revoltas populares como as agitações ignorantes dos pobres incultos, elas ignoram a história radical e democratizante do populismo.

O mais recente livro do historiador Thomas Frank, The People, No: A Brief History of Populism (O povo, não: uma breve história do populismo), conta essa história democrática. Frank conversou sobre o tema com o editor-chefe da revista Spiked, Brendan O’Neill.

BRENDAN O’NEILL — Em seu livro, você descreve a persistência do antipopulismo. Somos constantemente alertados sobre o “populismo autoritário”, os idiotas, as massas iletradas, que são apresentados como ameaça à democracia. Mas a verdade é o oposto. Os antipopulistas — as pessoas que quiseram anular a maior votação democrática na história da Inglaterra, o Brexit, ou anular a eleição de Trump em 2016 — é que são a ameaça. Você destaca que os antipopulistas contemporâneos não se veriam como os capitalistas dos anos 1890 ou 1930, ou os racistas de Jim Crow da década de 1950. No entanto, eles têm algo bem importante em comum. Eles vêm da classe dominante e estão tentando defender sua autoridade contra as revoltas das classes mais baixas. Ainda que reconheça que o antipopulismo mudou com o tempo, você estabelece uma linha explícita entre a reação antipopulista dos anos 1890 e a dos anos 2020.

THOMAS FRANK — Sim, com algumas ressalvas. Não acho que Trump seja populista — eu o considero um demagogo e uma fraude. Os Estados Unidos têm uma tradição de demagogos e de fraudes. Reagan fez uma performance populista muito boa, assim como Bill Clinton e também o movimento Tea Party. Mas tudo pareceu desenvolvido em laboratório — de tão maligno. O antipopulismo estava e ainda está lá, e ele hoje envenena qualquer tentativa de construção de uma oposição de fato a Trump e ao trumpismo.

As pessoas que desprezam e denunciam o populismo representam a classe dominante. Foi criada uma casta que é definida por onde seus membros são formados e pelo desempenho deles lá. Para eles, os Estados Unidos são o país das maravilhas, e o resto de nós fica para trás. Cada vez mais, eles se identificam com os democratas. Eu nem deveria dizer “cada vez mais” — está feito. A mudança foi feita. O Partido Democrata é o partido dessas elites administrativas, de colarinho-branco, dessa classe de profissionais. Aonde quer que você vá em bairros muito abastados dos Estados Unidos que costumavam ser republicanos, todo mundo está se tornando democrata. Os antipopulistas usam o termo populismo para descrever o que desprezam. Todos deixam de fora o fato de os especialistas terem estragado bastante as coisas ultimamente. É possível escrever um livro inteiro sobre o fracasso da elite. Está diante de você e acontece o tempo todo. No entanto, eles nunca reconhecem isso. Vamos pensar na Guerra do Iraque e na bolha dos subprimes. Vamos pensar no colapso de Wall Street — foram as pessoas mais espertas ali que fizeram isso.

Meu exemplo favorito de fracasso da elite é a campanha de Hillary Clinton em 2016, coordenada pelos consultores políticos com a melhor formação nos Estados Unidos. Sua campanha foi muito mais bem financiada que a de Trump. Houve um encontro de tribos da elite que foram contra o candidato mais odiado da história dos Estados Unidos — Donald Trump. A campanha dele foi comandada por Steve Bannon, que nunca tinha administrado uma campanha política antes, quanto mais uma campanha presidencial. E a máquina do Partido Democrata perdeu para esse cara! Foi como um mestre do xadrez ser derrotado por um jogador do time da escola. Foi absolutamente esmagador.

O momento do Brexit foi bem parecido com muitas das coisas que você descreve em seu livro. Na corrida para o referendo em 2016, toda instituição supostamente especializada estava praticamente de joelhos implorando ao povo britânico para votar no Ficar. Teve o efeito previsível de fazer com que as pessoas refletissem sobre como tinham visto esses especialistas errar e prever coisas que não aconteceram. As pessoas sentiram que os experts tendem a defender os próprios interesses, em vez dos nossos.

As pessoas têm todo o motivo para desconfiar das elites. Não sei como eu teria votado no Brexit, porque não vivo no Reino Unido. Mas lembro do FMI emitindo um alerta para a população britânica dizendo para não ousar votar a favor. Sinto muito — se o FMI me diz para fazer uma coisa, sei muito bem que vou fazer o contrário.

Quero voltar a um momento hilário em 1936, depois de outra reunião das tribos da elite. Elas tinham se juntado e se voltado contra Franklin D. Roosevelt, e perderam de forma impressionante. Os jornais se uniram contra Roosevelt, foram para cima dele com tudo e perderam. Depois que a poeira baixou, as pessoas refletiram sobre o que tinha dado errado. Uma das coisas que notaram foi que Roosevelt foi melhor nas cidades onde não havia um único jornal do lado dele. Ou seja: a unanimidade da elite afastou as pessoas. Existe uma lição para os nossos tempos que parecemos incapazes de aprender.

Quando estava lendo seu livro, pensei na Guerra Civil Inglesa dos anos 1640. O movimento radical Leveller foi descrito por Oliver Cromwell — ele mesmo bastante radical — como uma tentativa de “atiçar a grosseria das multidões contra a sentimentalidade da elite”. Então, nos anos 1700, veio John Wilkes, um grande guerreiro pela liberdade de imprensa, e a reação contra ele. E houve o movimento cartista e as sufragistas, e tudo o que você descreve no livro nos Estados Unidos nos anos 1890 e 1930. Nos últimos trezentos ou quatrocentos anos, um argumento bem parecido foi defendido: as elites sabem o que é melhor, e a grande esperança das pessoas comuns é a democracia representativa, porque ela é bem mensurada e temperada. Qualquer coisa mais direta e exigente é sempre denunciada como estupidez em massa ou ignorância. Você é otimista quanto à possibilidade de esse preconceito antipopulista ser combatido ou transformado?

É aqui que eu rompo com o populismo. O populismo assume um tipo de otimismo que eu simplesmente não tenho. Um dos grandes heróis de meu livro, Lawrence Goodwyn, foi um historiador que escreveu sobre o populismo. Para resumir, é muito difícil. É por isso que esses movimentos são tão raros. Uma das coisas que ele disse é que você precisa praticar o que chamou de paciência ideológica. A razão é porque está trabalhando com pessoas simples — pessoas que não chegaram à universidade. Elas não conhecem o jargão. Você não pode simplesmente usar o jargão policial com elas, estalar o chicote e esperar e voltem para a fila.

Não conheço ninguém que queira praticar a paciência ideológica hoje. Estamos no que chamo de utopia da reprimenda. As pessoas acham que, se repreenderem, riscarem da lista e cancelarem todos os demais, vão vencer algum tipo de competição cósmica. Não faz sentido para mim, porque não é assim que se constrói um movimento.

Brendan O’Neill é editor da Spiked e apresentador do podcast The Brendan O’Neill Show. No Instagram: @burntoakboy.

When the World Seems Like One Big Conspiracy - Yuval Noah Harari

 Conhecemos um pouco dessas teorias no Brasil, disseminadas pelo bando de lunáticos que cerca o presidente. Tem até um chanceler no meio...

Opinion


When the World Seems Like One Big Conspiracy

Understanding the structure of global cabal theories can shed light on their allure — and their inherent falsehood.

By Yuval Noah Harari

Mr. Harari is a historian and author.

 

The New York Times, November 20, 2020



Credit...Max Löffler


Conspiracy theories come in all shapes and sizes, but perhaps the most common form is the global cabal theory. A recent survey of 26,000 people in 25 countries asked respondents whether they believe there is “a single group of people who secretly control events and rule the world together.”

Thirty-seven percent of Americans replied that this is “definitely or probably true.” So did 45 percent of Italians, 55 percent of Spaniards and 78 percent of Nigerians.

Conspiracy theories, of course, weren’t invented by QAnon; they’ve been around for thousands of years. Some of them have even had a huge impact on history. Take Nazism, for example. We normally don’t think about Nazism as a conspiracy theory. Since it managed to take over an entire country and launch World War II, we usually consider Nazism an “ideology,” albeit an evil one.

But at its heart, Nazism was a global cabal theory based on this anti-Semitic lie: “A cabal of Jewish financiers secretly dominates the world and are plotting to destroy the Aryan race. They engineered the Bolshevik Revolution, run Western democracies, and control the media and the banks. Only Hitler has managed to see through all their nefarious tricks — and only he can stop them and save humanity.”


Understanding the common structure of such global cabal theories can explain both their attractiveness — and their inherent falsehood.


The Structure

Global cabal theories argue that underneath the myriad events we see on the surface of the world lurks a single sinister group. The identity of this group may change: Some believe the world is secretly ruled by Freemasons, witches or Satanists; others think it’s aliens, reptilian lizard people or sundry other cliques.

But the basic structure remains the same: The group controls almost everything that happens, while simultaneously concealing this control.

Global cabal theories take particular delight in uniting opposites. Thus the Nazi conspiracy theory said that on the surface, communism and capitalism look like irreconcilable enemies, right? Wrong! That’s exactly what the Jewish cabal wants you to think! And you might think that the Bush family and the Clinton family are sworn rivals, but they’re just putting on a show — behind closed doors, they all go to the same Tupperware parties.

From these premises, a working theory of the world emerges. Events in the news are a cunningly designed smoke screen aimed at deceiving us, and the famous leaders that distract our attention are mere puppets in the hands of the real rulers.


The Lure

Global cabal theories are able to attract large followings in part because they offer a single, straightforward explanation to countless complicated processes. Our lives are repeatedly rocked by wars, revolutions, crises and pandemics. But if I believe some kind of global cabal theory, I enjoy the comforting feeling that I do understand everything.


The war in Syria? I don’t need to study Middle Eastern history to comprehend what’s happening there. It’s part of the big conspiracy. The development of 5G technology? I don’t need to do any research on the physics of radio waves. It’s the conspiracy. The Covid-19 pandemic? It has nothing to do with ecosystems, bats and viruses. It’s obviously part of the conspiracy.

The skeleton key of global cabal theory unlocks all the world’s mysteries and offers me entree into an exclusive circle — the group of people who understand. It makes me smarter and wiser than the average person and even elevates me above the intellectual elite and the ruling class: professors, journalists, politicians. I see what they overlook — or what they try to conceal.


The Flaw

Global cabal theories suffer from the same basic flaw: They assume that history is very simple. The key premise of global cabal theories is that it is relatively easy to manipulate the world. A small group of people can understand, predict and control everything, from wars to technological revolutions to pandemics.

Particularly remarkable is this group’s ability to see 10 moves ahead on the global board game. When they release a virus somewhere, they can predict not only how it will spread through the world, but also how it will affect the global economy a year later. When they unleash a political revolution, they can control its course. When they start a war, they know how it will end.


But of course, the world is much more complicated. Consider the American invasion of Iraq, for example. In 2003, the world’s sole superpower invaded a medium-size Middle Eastern country, claiming it wanted to eliminate the country’s weapons of mass destruction and end Saddam Hussein’s regime. Some suspected that it also wouldn’t have minded the chance to gain hegemony over the region and dominate the vital Iraqi oil fields. In pursuit of its goals, the United States deployed the best army in the world and spent trillions of dollars.

Fast forward a few years, and what were the results of this tremendous effort? A complete debacle. There were no weapons of mass destruction, and the country was plunged into chaos. The big winner of the war was actually Iran, which became the dominant power in the region.

So should we conclude that George W. Bush and Donald Rumsfeld were actually undercover Iranian moles, executing a devilishly clever Iranian plot? Not at all. Instead, the conclusion is that it is incredibly difficult to predict and control human affairs.

You don’t need to invade a Middle Eastern country to learn this lesson. Whether you’ve served on a school board or local council, or merely tried to organize a surprise birthday party for your mom, you probably know how difficult it is to control humans. You make a plan, and it backfires. You try to keep something a secret, and the next day everybody is talking about it. You conspire with a trusted friend, and at the crucial moment he stabs you in the back.

Global cabal theories ask us to believe that while it is very difficult to predict and control the actions of 1,000 or even 100 humans, it is surprisingly easy to puppet master nearly eight billion.


The Reality

There are, of course, many real conspiracies in the world. Individuals, corporations, organizations, churches, factions and governments are constantly hatching and pursuing various plots. But that is precisely what makes it so hard to predict and control the world in its entirety.

In the 1930s, the Soviet Union really was conspiring to ignite communist revolutions throughout the world; capitalist banks were employing all kinds of dodgy strategies; the Roosevelt administration was planning to re-engineer American society in the New Deal; and the Zionist movement pursued its plan to establish a homeland in Palestine. But these and countless other plans often collided, and there wasn’t a single group of people running the whole show.

Today, too, you are probably the target of many conspiracies. Your co-workers may be plotting to turn the boss against you. A big pharmaceutical corporation may be bribing your doctor to give you harmful opioids. Another big corporation may be pressuring politicians to block environmental regulations and allow it to pollute the air you breathe. Some tech giant may be busy hacking your private data. A political party may be gerrymandering election districts in your state. A foreign government may be trying to foment extremism in your country. These could all be real conspiracies, but they are not part of a single global plot.

Sometimes a corporation, a political party or a dictatorship does manage to gather a significant part of all the world’s power into its hands. But when such a thing happens, it’s almost impossible to keep it hush-hush. With great power comes great publicity.

Indeed, in many cases great publicity is a prerequisite for gaining great power. Lenin, for example, would never have won power in Russia by avoiding the public gaze. And Stalin at first was much fonder of scheming behind closed doors, but by the time he monopolized power in the Soviet Union, his portrait was hanging in every office, school and home from the Baltic to the Pacific. Stalin’s power depended on this personality cult. The idea that Lenin and Stalin were just a front for the real behind-the-scenes rulers contradicts all historical evidence.

Realizing that no single cabal can secretly control the entire world is not just accurate — it is also empowering. It means that you can identify the competing factions in our world, and ally yourself with some groups against others. That’s what real politics is all about.

Yuval Noah Harari is a historian and the author of “Sapiens: A Graphic History.”


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The Times is committed to publishing a diversity of letters to the editor. We’d like to hear what you think about this or any of our articles. Here are some tips. And here’s our email: letters@nytimes.com.

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A version of this article appears in print on Nov. 22, 2020, Section SR, Page 8 of the New York edition with the headline: One Big Conspiracy Theory.


 

 




sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Brasil se alia aos países ricos e acesso à vacina se transforma em crise - Jamil Chade (UOL)

 O argumento da diplomacia bolsolavista não se sustenta: o próprio GATT e as legislações nacionais sobre comércio e patentes ressalvam questões cruciais desse tipo, e em casos de saúde pública, segurança nacional e ordem doméstica podem ser derrogados ou suspensos determinados critérios e cláusulas de tratados e legislações internas.

E não se trata nem de investimentos: patentes podem ser objeto de licenciamento compulsório em casos como esse,  sendo que os contratos podem oferecer uma justa remuneração aos fabricantes.

O que ocorre aqui é que, mais uma vez, o chanceler acidental e a diplomacia bolsolavista se dobraram às ordens que vieram de Washington.

Paulo Roberto de Almeida

Brasil se alia aos países ricos e acesso à vacina se transforma em crise

Jamil Chade
Colunista do UOL
20/11/2020 11h38, Atualizada em 20/11/2020 13h56

Se a vacina contra a covid-19 começa a se transformar em realidade, a disputa por seu controle ganha dimensões políticas e ares de um novo confronto comercial.

Nesta sexta-feira, a OMC voltou a se reunir para debater a proposta liderada pela Índia e África do Sul de suspensão da propriedade intelectual de todos os produtos relacionados com o tratamento contra a covid-19. Mas os países ricos e o Brasil se recusaram a aceitar a ideia, abrindo um impasse.

No total, 99 dos cerca de 160 países membros da entidade anunciaram o apoio ao projeto de suspender a aplicação de patentes para produtos relacionados com a covid-19. A meta é a de garantir que a propriedade intelectual não seja um obstáculo para o acesso de bilhões de pessoas pelo mundo à vacina, até que haja uma imunidade de rebanho contra o vírus no mundo. Entidades internacionais, como a OMS, saíram em apoio da ideia, além de movimentos sociais e igrejas de todo o mundo.

Mas, revertendo décadas de uma postura tradicional da diplomacia brasileira, o Itamaraty optou por se recusar a se unir ao grupo que sugere a suspensão das patentes.

Sem um acordo, a OMC anunciou uma nova reunião para o dia 10 de dezembro. Mas, segundo diplomatas, dificilmente haverá uma mudança na postura dos governos até la.

O argumento dos países ricos e do Brasil é de que suspender patentes poderia afetar os incentivos que suas empresas farmacêuticas teriam para investir em inovações. Hoje, as três grandes promessas de vacinas contra a covid-19 vêm justamente de companhias com sede na Europa ou EUA. Nas negociações para a venda de produtos, nenhuma delas abriu mão de suas patentes.

Sem patentes, a ideia é de que países poderiam ampliar a produção de genéricos ou reduzir o pagamento de royalties para essas empresas. Além disso, as condições favoráveis que estão sendo negociadas apenas são válidas por um período de pandemia. No caso do Brasil, o acordo com a AstraZeneca revela que é a empresa quem tem o poder de declarar quando esse período de pandemia termina.

Para o Itamaraty, as regras do comércio sobre propriedade intelectual - conhecidas como TRIPS - já permitem uma flexibilidade suficiente para que, em caso de necessidade, governos solicitem a quebra de patentes. Nos anos 90 e início do século 21, o Brasil liderou o movimento global por um acesso mais justo ao tratamento contra a Aids.

No caso do Brasil e dos países ricos, a ordem na reunião de hoje era de se opor firmemente à proposta, observando que não há indicação de que os direitos de propriedade intelectual tenham sido uma verdadeira barreira ao acesso a medicamentos e tecnologias relacionados com a COVID-19.

Brasil questiona proposta e alerta que não seria solução global 
No caso do Brasil, depois de já pedir esclarecimentos, o Itamaraty voltou a usar a reunião para solicitar novas explicações por parte dos emergentes. O governo questiona por qual motivo haveria uma suspensão em copyright ou desenhos industriais.

O Brasil também questionou se a proposta seria mesmo a via mais rápida para ter acesso aos produtos, já que tais medidas precisariam passar por parlamentos nacionais.

"Neste cenário, a utilização de flexibilidades do TRIPS, tais como licenças obrigatórias, poderia ser uma via rápida para aceder a fornecimentos vitais de medicamentos e terapêuticas relacionados com a COVID-19", defendeu o Itamaraty.

O governo também deixou claro que a suspensão das patentes não seria uma solução global. "Uma suspensão dificilmente seria uma solução global se considerarmos que vários membros podem não a implementar", alertou. Isso por optarem não seguir o caminho ou por dificuldades legislativas. A recusa em suspender as patentes ainda poderia estar vinculada a obrigações que esses governos teriam por acordos bilaterais ou regionais.

Para o Brasil, a estratégia deve ser outra. "Gostaríamos de reiterar a nossa opinião de que as flexibilidades TRIPS, entre outros instrumentos à disposição dos estados membros, tais como a colaboração internacional e o licenciamento voluntário, poderiam e deveriam ser utilizados para aumentar a produção de produtos médicos e garantir uma oferta suficiente e acessível", defendeu o governo.

O Itamaraty sugeriu aos emergentes que essas vias sejam exploradas para "atingir os seus objetivos de política de saúde".

Países ricos dizem que não são as patentes que impedem acesso

Já os Estados Unidos, a União Europeia, o Japão, o Canadá e a Suíça reconheceram que o fornecimento sustentado e contínuo de tais medicamentos e tecnologias é uma tarefa difícil.

Mas alertaram que os sistemas de saúde e de compras não eficientes e sem recursos, a demanda e a falta de capacidade de fabricação são muito mais susceptíveis de impedir o acesso a estes materiais que patentes.

Para os países ricos, a suspensão das patentes, mesmo durante um período de tempo limitado, não só era desnecessária, como prejudicaria também os esforços de colaboração para combater a pandemia que já estão em curso.

Carência
Já os autores da proposta - Índia, África do Sul e Quênia - alertaram que a pandemia requer um acesso rápido a produtos médicos acessíveis, tais como kits de diagnóstico, máscaras médicas, outros equipamentos de proteção pessoal e ventiladores, bem como vacinas e medicamentos.

Para ele, o surto levou a um rápido aumento da procura global, com muitos países a enfrentarem carências, limitando a capacidade de responder eficazmente ao surto. Segundo o grupo, à medida que novos diagnósticos, terapêuticas e vacinas para a COVID-19 são desenvolvidos, continuam a existir preocupações significativas sobre como elas serão disponibilizadas rapidamente, em quantidades suficientes e a preços acessíveis para satisfazer a procura global.

A defesa dos emergentes foi no sentido de que a OMC deve agir para derrotar a pandemia e que os governos devem assumir responsabilidade coletiva e colocar a vida das pessoas acima de qualquer outra coisa.

"Como guardiães da ordem comercial mundial, creio que ninguém gostaria de ser conhecido por salvar peixe, mas não vidas humanas", disse o Paquistão.

Outro grupo de membros, incluindo China, Ucrânia, Chile, Equador, México, Turquia e El Salvador, aplaudiram a proposta, mas disseram que ainda a estavam estudando seus detalhes e pediram esclarecimentos sobre certos pontos.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2020/11/20/brasil-se-alia-aos-paises-ricos-e-acesso-a-vacina-se-transforma-em-crise.htm


A diplomacia bolsonarista servil a Trump continua impérvia - Jamil Chade (UOL)

 A maior parte dos países que seguem os EUA na submissão em votações na ONU é extremamente dependente da ajuda americana, em vários casos em questões cruciais de segurança militar ou ajuda humanitária. 

Não é certamente o caso do Brasil, o que torna ainda mais inaceitável a sabujice de Bolsonaro e de Ernesto Araujo em relação a Trump e ao Departamento de Estado. Inaceitável e vergonhoso para a diplomacia profissional brasileira.

Paulo Robeto de Almeida


Brasil se transforma em um dos últimos aliados dos EUA de Trump na ONU

Jamil Chade
Colunista do UOL
20/11/2020 04h00

Derrotado nas urnas nos Estados Unidos (EUA), Donald Trump vê seu apoio internacional também desaparecer e poucos países ainda votam ao lado do governo do republicano em decisões internacionais. Mas um deles não da sinal de trair o presidente derrotado: o Brasil.

Em votações na ONU (Organização das Nações Unidas) nesta semana, o Itamaraty optou por manter seu alinhamento automático com os EUA, o que passou a ser a marca da diplomacia do chanceler Ernesto Araújo, admirador declarado de Trump. Hoje, o Brasil é um dos raros países do mundo que não reconhece a vitória do democrata Joe Biden nas eleições americanas.

Numa resolução colocada em votação sobre o compromisso de todos os governos a eliminar qualquer tipo de violência contra a mulher, a Casa Branca exigiu que um parágrafo inteiro fosse abolido do texto. O Brasil apoiou.

O trecho que deveria ser eliminado indicava que governos deveriam "garantir" o direito das mulheres à saúde sexual e reprodutiva, além de assegurar que sistemas de saúde dessem acesso a tais serviços. Entre eles: métodos contraceptivos modernos.

O texto ainda pedia que governos garantissem que, onde a lei permita, serviços para abortos seguros sejam prestados.

Os americanos ainda pediram que fosse retirado do texto um trecho que indicava que mulheres têm o direito de ter "controle e decidir livremente e de forma responsável em assuntos relacionados com sua sexualidade, incluindo saúde sexual e reprodutiva, livre de coerção, discriminação e violência".

17 fiéis aliados
113 países votaram contra a proposta americana e 33 optaram pela abstenção. Mas 17 fieis aliados de Trump decidiram manter sua postura e votaram ao lado do americano. Além do governo Bolsonaro, apoiaram a proposta americana países como Líbia, Belarus, Paquistão, Iraque e Egito.

O Brasil ainda não votou contra uma emenda apresentada pelos americanos para modificar outro trecho da resolução, também sobre educação sexual. Nesse caso, o Itamaraty optou por uma abstenção.

Derrotado em seus votos, o Itamaraty ainda assim acabou se juntando aos demais países que aprovaram a resolução.

O Brasil ainda foi um dos raros países que se absteve em uma proposta americana para eliminar de uma outra resolução qualquer referência ao trabalho da OMS (Organização Mundial da Saúde). O texto original se referia a um compromisso de governos para garantir tratamento de obstetrícia adequado para mulheres.

153 votaram contra o projeto americano e a Casa Branca contou com apenas 11 países que optaram por se abster. Um deles foi o Brasil.

Antes da derrota de Trump nas urnas, o Brasil foi um dos cerca de 30 países que assinou uma declaração conjunta com o governo americano para montar uma aliança antiaborto nos organismos internacionais. Uma das metas do grupo era a de frear qualquer tipo de resolução que pudesse abrir brechas para o aborto como método contraceptivo.

Na primeira votação após a derrota do americano, porém, nem todos os países que se aliaram ao consenso seguiram o compromisso de votar ao lado dos EUA.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2020/11/20/bolsonaro-se-transforma-em-um-dos-ultimos-aliados-de-trump-na-onu.htm

Eliana Cantanhede: “Não levamos nada“ na subordinação aos EUA : embaixador Mario Vilalva

 'Não levamos nada'

Elina Cantanhede

O Estado de S. Paulo, 20/11/2020

Mário Villalva: 'A diplomacia brasileira foi ingênua, amadora ou imprudente?'


Depois de ser alvo de todas as críticas e de o Brasil sofrer todo o desgaste, o presidente Jair Bolsonaro está prestes a reconhecer finalmente, talvez ainda hoje, a vitória de Joe Biden nos Estados Unidos. Desta vez, porém, os últimos não serão os primeiros, serão os últimos mesmo, para desconforto de diplomatas, militares, empresários, exportadores e analistas. Mas o "capitão" é o "capitão", o que fazer?

É agora que vai ficar mais evidente ainda a tragédia da política externa brasileira que, segundo o embaixador Mário Villalva, "jogou todas as fichas numa só cesta, transformou os EUA na única referência". Isso, destaca, "não combina com o nosso DNA, a nossa índole, a nossa tradição de política externa, que sempre foi ecumênica e universal".

Diplomata de carreira, ex-embaixador no Chile, Portugal e Alemanha, Villalva presidiu a Apex no início do governo Bolsonaro, mas saiu três meses depois, botando aboca no trombone contra o aparelhamento político. Ainda "na ativa", está licenciado e se soma a ex-chanceleres e a mentes brilhantes da história do Itamaraty na crítica à atual política externa.

Na sua opinião, Biden tem habilidade política, com 36 anos de Legislativo, e vai restabelecer a liderança dos EUA no mundo, não mudando tudo mecanicamente, nem na base do confronto e da agressão, mas sim conversando, articulando, negociando. E, claro, como qualquer líder que se preze, priorizando o interesse do seu País.

Ele, Biden, em algum momento vai olhar para o Brasil, "não com antagonismo, mas com pressões políticas legítimas para que o País mostre resultados no meio ambiente e volte a valorizar o multilateralismo". Não será fácil, porque Bolsonaro replica Donald Trump até contra OMS (Saúde), OMC (Comércio) e a própria ONU, mas o Brasil não tem o que perder, já que não ganhou nada com Trump: "o governo brasileiro foi extremamente solícito em tudo, o tempo todo, mas os americanos não cederam nada e extraíram o máximo que puderam".

Resumindo a longa lista de Villalva: suspensão de visto para americanos (sem reciprocidade), cessão de dados de brasileiros para o "Global Entry", desistir de um brasileiro para os EUA quebrarem a tradição e presidirem o BID, cota livre de tarifa para o trigo, acesso de carne de porco americano sem contrapartida para a carne bovina brasileira, desequilíbrio em etanol, aço e alumínio, abrir mão do tratamento diferenciado na OMC sem entrar na OCDE. E o Brasil nem mesmo saiu da lista negra dos EUA para propriedade intelectual...

"Não levamos nada", diz o embaixador, apontando o acordo de facilitação de comércio como repetição "bilaterizada" do que foi feito em bloco pela OMC em 2017. Além disso, "só serve para diminuir a burocracia, a papelada, e não representa redução de barreiras tarifárias e não-tarifárias, que é o que a gente precisa". Logo, "é uma política de enxuga-gelo", diz ele, que é diplomata. E de "engana trouxa", acrescento eu, que não sou.

Se houve avanço, foi em defesa, mas sem chegar aonde realmente interessa: acesso a financiamento, ou seja, a um naco dos US$ 140 bilhões dos EUA para o setor. E, diante da lista de concessões para lá e nenhum retorno para cá, Mário Villalva pergunta: "A diplomacia brasileira foi ingênua, amadora ou imprudente?" Vale acrescentar: E vai mudar?

Para Villalva, 44 anos de carreira, o Itamaraty "tem uma das melhores burocracias da República, com pessoas bem selecionadas, bem treinadas, que pensam o Brasil 24 horas por dia, mas não é suficiente ter um Boeing, é preciso um bom piloto". Que tal o atual piloto? Resposta: "Os resultados estão aí..." Não custa lembrar que "o piloto é o executor da política externa, mas o formulador é o presidente".

*

COMENTARISTA DA RÁDIO ELDORADO, DA RÁDIO JORNAL E DO TELEJORNAL GLOBONEWS EM PAUTA