A Year After Putin's Invasion
Temas de relações internacionais, de política externa e de diplomacia brasileira, com ênfase em políticas econômicas, em viagens, livros e cultura em geral. Um quilombo de resistência intelectual em defesa da racionalidade, da inteligência e das liberdades democráticas.
O que é este blog?
Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.
sábado, 11 de fevereiro de 2023
How Might the Violence in Ukraine Come to an End? - René Pfister, Ann-Dorit Boy, Matthias Gebauer (Der Spiegel)
Russia's invasion of Ukraine began one year ago. But how might the war end? Russia seems further from victory than ever, but a Ukrainian triumph is also far from a foregone conclusion. What are the possible scenarios for an end to the conflict?
A prepotência americana no caso Bustani agora em vídeo e a cores: José Maurício Bustani - João Batista Natali (FSP)
Documentário mostra como razões de Estado produzem mentiras internacionais
'Sinfonia de um Homem Comum' conta atuação de brasileiro em mito das armas de destruição em massa do Iraque
FSP, 9.fev.2023 às 21h00
João Batista Natali
SÃO PAULO
Em meio às tensões em 2001 após os atentados terroristas do 11 de Setembro, uma das vítimas indiretas foi o embaixador José Maurício Bustani. O diplomata brasileiro era diretor-geral de uma importante agência da ONU, a Opaq (Organização para a Proibição de Armas Químicas).
Ele foi defenestrado de seu posto em manobra abertamente chefiada pelos EUA porque os inspetores a ele subordinados não podiam comprovar a tese americana de que o Iraque estava clandestinamente empenhado na produção de armas de destruição em massa.
O ditador iraquiano Saddan Hussein, que no passado chegou a usar armas químicas contra os iraquianos xiitas do sul de seu país, não tinha mais essas armas em seus arsenais.
Não que ele tivesse se convertido à ética. Mas o Iraque estava submetido a um forte embargo econômico, com o qual era difícil trapacear a proibição de fabricar armamentos. Mas a falsa certeza era necessária para justificar a invasão do Iraque em 2003 por americanos, britânicos e países a ambos alinhados.
A história do embaixador Bustani é contada pelo documentário "Sinfonia de um Homem Comum", que estreou nesta quinta-feira (9) nos cinemas. Dirigido por José Joffily, o filme é uma bem construída denúncia sobre como as chamadas razões de Estado produzem grandes mentiras internacionais.
Com relação ao Iraque, ocorreu a trombada entre duas lógicas. A do presidente George W. Bush consistia em fazer crer que a ditadura iraquiana tinha até armas nucleares escondidas dos ocidentais. A lógica da Opaq, ao contrário, era a de fazer com que o Iraque se tornasse signatário do tratado internacional que proíbe armas químicas, para que inspetores passassem a fazer uma varreduras de suas instalações.
Já havia inspeção dentro do Iraque. Mas ela cobria 95% dos arsenais. Os americanos achavam que os 5% restantes escondiam coisas proibidas. O documentário traz uma sucessão de depoimentos que provam a fragilidade da suposição de que Bustani deixava que armas perigosas passassem por debaixo de suas pernas. Do ex-chefe dos inspetores no Iraque ao ex-porta-voz de Bush, todos admitem erros.
Mas o cerco dos Estados Unidos era cerrado. A única parede não envidraçada do gabinete do diplomata brasileiro em Haia, na Holanda, estava forrada de aparelhos escondidos de escuta. O cidadão que os instalou desapareceu ao ser descoberto. Ele com certeza era agente americano.
O jogo era pesado ao ponto de o presidente Bush ter contornado o Senado (que estava em recesso) para nomear como embaixador na ONU o ultraconservador John Bolton. Este, ao não convencer Bustani a renunciar, disse saber onde moravam seus três filhos, numa pouco velada ameaça à segurança pessoal dos jovens.
Bolton voltou ao primeiro plano com o presidente Donald Trump e chegou a ser apontado como um dos bons amigos de Jair Bolsonaro.
Outro detalhe curioso. A sessão plenária da Opaq em que Bustani foi demitido inexiste em atas no site ou em gravações na biblioteca da agência. Tais registros, diz o diplomata, mostrariam de modo cabal as vaias ao representante americano e ao da Índia, que mudou seu voto para receber do Pentágono aviões militares.
Um dos inspetores afirma que o Iraque tinha tecnologia para conservar armas químicas durante no máximo cinco anos. E que, nos cinco anos anteriores, nada havia sido fabricado.
Bustanni diz acreditar que a única maneira de evitar o blefe de Saddam estaria em fazê-lo aderir ao tratado da Opaq para que o conteúdo de seus estoques de armas se tornasse transparente.
O documentário poderia ter ainda revelado que o establishment americano envenenou com falsas informações uma jornalista do New York Times, para quem Saddam produzia escondido até ogivas nucleares. A jornalista em questão, chamada Judith Miller, foi demitida tempos depois.
A demissão, ou "afastamento por comum acordo", foi uma maneira de o jornal americano se desculpar por ter engrossado o coro dos que acreditavam que Saddam, por ser um ditador horroroso, não poderia estar dizendo a verdade ao negar que estava lidando com as célebres armas de destruição em massa.
O fato é que, afastado em manobra americana, Bustani voltou ao Itamaraty, onde caiu no limbo dos mal-amados. Até que Lula, recém-eleito presidente, nomeou-o para a embaixada de Londres. A estrela do diplomata voltou a brilhar.
Ela também poderia tê-lo projetado como músico. Pianista amador, ele sempre demonstrou familiaridade pelo teclado. Tanto que o documentário começa com Bustani interpretando, com a Orquestra Jovem do Rio de Janeiro, o "Concerto para Piano e Orquestra nº 21", de Mozart.
General Assembly adopts resolution on Russian reparations for Ukraine (14 Nov 2022)
Esclarecer qual foi a postura adotada pelo Brasil. Provavelmente abstenção (a confirmar).
14 November 2022Peace and Security
The UN General Assembly on Monday adopted a resolution that calls for Russia to pay war reparations to Ukraine, as ambassadors met to resume their emergency special session devoted to the conflict.
Nearly 50 nations co-sponsored the resolution on establishing an international mechanism for compensation for damage, loss and injury, as well as a register to document evidence and claims.
The General Assembly is the UN’s most representative body, comprising all 193 Member States.
Ninety-four countries voted in favour of the resolution, and 14 against, while 73 abstained.
The vote took place in the morning, and countries returned in the afternoon to explain their decisions.
Ukraine: Hold Russia accountable
In presenting the resolution, Ukrainian Ambassador Sergiy Kyslytsya used the biblical adage that “there is nothing new under the sun” as a motif throughout his remarks.
He insisted that Russia must be held accountable for its violations of international law.
“Seventy-seven years ago, the Soviet Union demanded and received reparations, calling it a moral right of a country that has suffered war and occupation,” he said.
“Today, Russia, who claims to be the successor of the 20th century’s tyranny, is doing everything it can to avoid paying the price for its own war and occupation, trying to escape accountability for the crimes it is committing.”
Carnage and compensation
Mr. Kyslytsya pointed out that Russia also supported the creation of the UN Compensation Commission (UNCC), established in 1991 following Iraq’s invasion and occupation of Kuwait.
The Commission completed its mandate in February, he reported, having paid out over $52 billion in reparations to victims.
The Ambassador outlined the impact of the Russian war on his country, including bombings targeting residential buildings and infrastructure, the demolition of nearly half of the power grid and utilities, massive displacement, and atrocities such as murder, rape, torture and forced deportations.
“This proposal is not about Russia alone. It will work for the benefit of all those who are being threatened now or might be threatened later by use of force,” he said.
Russia criticizes draft
Speaking before the vote, Russian Ambassador Vasily Nebenzya characterized the draft resolution as “a classic example” of a narrow group of States acting not on the basis of international law, but rather trying to consecrate something that is illegal.
He said countries backing the resolution were attempting to position the General Assembly as a judicial body, which it is not.
“These countries boast about how committed they are to the rule of law, but at the same time, they are flouting its very semblance,” he added, speaking in Russian.
No role for the UN
Mr. Nebenzya said the proposed reparations mechanism will be created by a group of countries that will decide how it functions.
“The UN will play no role in this process because the proposed mechanism is suggested to be created outside of the UN, and no one has any plans to account to the General Assembly for its activity,” he continued.
Furthermore, he had “no doubt” that the funding will come from frozen Russian assets, which total billions.
Western countries have long wanted to unfreeze these assets, he said, not to return them to their owner, or to spend them on helping Ukraine, “but rather so as to fund their own constantly growing weapons supplies to Kyiv, and covering the debts for the weapons already supplied.”
About the emergency special session
The General Assembly emergency special session began on 28 February, or just days after the start of the war in Ukraine.
This marks only the 11th time such a meeting has been held since 1950, in line with a resolution widely known as ‘Uniting for Peace’.
Resolution 377A(V) gives the General Assembly power to take up matters of international peace and security when the Security Council is unable to act due to unanimity among its five permanent members – China, France, the United Kingdom, the United States and Russia – who have the power of veto.
The current special session was convened after the Council voted in favour of the General Assembly meeting following Russia’s veto of a resolution that would have deplored the assault on Ukraine.
sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023
Gelson Fonseca: Qual é a principal regra que o Brasil violou, segundo o diplomata mais citado em estudos acadêmicos - Diego Viana (Valor)
Qual é a principal regra que o Brasil violou, segundo o diplomata mais citado em estudos acadêmicos
“O Brasil tem 200 anos de tradição diplomática sólida. Vai recuperar seu lugar, usando suas vantagens no meio ambiente, no comércio”, diz Gelson Fonseca Junior
Por Diego Viana — Para o Valor, de São Paulo
10/02/2023 05h02 Atualizado há 2 horas
Após duas décadas em que as instituições multilaterais ganharam fôlego nas relações entre os países, com foros globais de tomada de decisão, como as conferências do clima, e debates no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU) e da Organização Mundial do Comércio (OMC), a ascensão da China como nova grande potência pode estabelecer uma nova bipolaridade no mundo, justamente quando os problemas do cenário internacional são mais claramente globais, a começar pela emergência climática.
Uma nova crise do multilateralismo seria apenas um novo capítulo de uma história composta de crises, aponta o embaixador Gelson Fonseca Junior, diretor do Centro de História e Documentação Diplomática (CHDD) da Fundação Alexandre de Gusmão (Funag), ligada ao Ministério das Relações Exteriores. Com todas as dificuldades, ferramentas multilaterais estão disponíveis e funcionam, diz. Os atritos entre americanos e chineses são decisivos para o futuro das instituições multilaterais, mas há temas em que os avanços são possíveis, sobretudo o meio ambiente. Nesse cenário, o Brasil pode ter posição de destaque, graças em parte a sua tradição diplomática realista.
Em janeiro, o Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri) e a Funag publicaram o livro “O Brasil no mundo: Estudos sobre o pensamento de Gelson Fonseca Junior”, com contribuições de diplomatas e professores sobre a obra do embaixador. Entre outros cargos, Fonseca foi representante permanente do Brasil na ONU de 1999 a 2003. É autor de obras que são referência no estudo das relações internacionais no Brasil, como o livro “A legitimidade e outras questões internacionais” (Paz e Terra, 1998), e dedicou diversos artigos à questão do multilateralismo. É o diplomata mais citado em estudos acadêmicos em relações internacionais no Brasil.
Valor: Um dos principais temas de sua trajetória é o multilateralismo. Hoje, com a escalada do atrito entre EUA e China, ele está em risco?
Gelson Fonseca Junior: Não me lembro de um momento em que o multilateralismo não estivesse em crise. A ONU foi criada com a expectativa de ter um grande papel na segurança internacional, mas isso foi logo antes de estalar a Guerra Fria. Então ela cumpriu esse papel em alguns momentos mais, em outros menos. Nos anos 90, pensávamos que, sem Guerra Fria, a ONU deslancharia. De fato, foram feitas conferências globais e criou-se um padrão de ação multilateral. Mas persistiu o problema do jogo de poder. Na Guerra Fria, os instrumentos de manutenção da paz eram prejudicados pela disputa global, mas as instituições multilaterais funcionaram. Muita coisa aconteceu, como a descolonização. Os países em desenvolvimento se juntaram para propor uma nova ordem econômica. Hoje, a questão de como vai evoluir a relação entre EUA e China é que vai definir o futuro do multilateralismo. Vai haver um confronto? Eles vão se acomodar? Esses países têm uma relação íntima na área financeira e na tecnológica. É possível desligar essa relação e partir para o confronto? O que as instituições multilaterais podem fazer para atenuar o conflito, que já se manifesta em protecionismo tecnológico? As respostas, quando vêm, envolvem muita torcida. Quem deseja a paz olha para o lado positivo: a China investe nos EUA, os dois ganham com as trocas. O quadro de instituições multilaterais está funcionando. Mas nada disso invalida a armadilha de Tucídides: a China cresce e os EUA querem manter a hegemonia, o que leva ao confronto. O militar pode ser descartado, porque daria cabo de ambos. Aliás, de nós também.
Valor: Um mundo bipolar fortalece a capacidade de negociação dos países emergentes?
Fonseca: Hoje, um problema ao falar de emergentes é: existe um pleito em comum dos emergentes? Nos anos 60, era fácil criar um grupo de emergentes, que partiam de realidades comuns e tinham demandas semelhantes. Hoje, esses países são muito diversos e os interesses idem. Não se pode ter política comum sem uma base comum. As posições estratégicas também mudam muito. Alguns são mais próximos da China, outros ligados aos EUA. E a agenda internacional ficou muito fragmentada. Qual seria a plataforma comum dos emergentes no meio ambiente? E em direitos humanos? Na reforma do Conselho de Segurança? Esse é o dilema. Em matéria de meio ambiente, tem algumas plataformas comuns. Nos direitos humanos, não. No caso do comércio, é complicado, porque temos problemas com a Índia, por exemplo.
Valor: E a governança global? O clima, por exemplo, exige um alto nível de articulação.
Fonseca: Temas como clima e saúde são por natureza globais. Mas outros também, como a aviação comercial e as telecomunicações. Alguns podem ser resolvidos tecnicamente, outros são mais complicados. Quando a humanidade vai perceber que é preciso ter regras mais constrangedoras em matéria ambiental? Para que houvesse ONU, morreram 40 milhões de pessoas. Só aí se decidiu avançar no sistema global de governança. Mas uma vez iniciado, é difícil controlar o processo. Entram questões políticas e de interesse. No clima, apesar das dificuldades, existe a consciência comum de que é preciso agir. Há pressão social e científica. Quando se chega ao plano da política, vemos que há perdas e renúncias, os países ricos não querem desembolsar tanto quanto os pobres exigem, e por aí vai.
Valor: O tema da governança revive a antiga questão da paz perpétua. É um beco sem saída?
Fonseca: O problema da governança global é imaginar uma racionalidade que resolva problemas irracionais. Hoje, instrumentos de governança existem. O primeiro é a ONU, cuja atuação é limitada. O problema não está nos instrumentos. Está na criação de vontade política para que os instrumentos funcionem. Por que a regulação do tráfego aéreo funciona? E por que os instrumentos da segurança não funcionam? Já a pergunta dos autores antigos, em seus projetos de paz perpétua, era: por que há guerras? Era o grande tema da humanidade. Ainda é, vide a Ucrânia. Teoricamente, o conselho de segurança poderia se reunir e mandar a Rússia voltar atrás. Mas pode? Pode no caso do Iraque. As instituições multilaterais têm sempre uma reserva de soberania. Na Carta da ONU, consta que os Estados têm o direito de atuar por fora em situações de legítima defesa. Então eles inventam uma razão para atacar uns aos outros invocando legítima defesa. Não tem como desligar um processo internacional da realidade do poder. As questões são levaas adiante se houver uma liderança que queira levar adiante. Quem lidera as negociações do clima? Não tem um país que seja o dono da história e possa se impor. É preciso articular, e esse é um processo difícil.
Valor: Lula assume com a mesma ambição do primeiro mandato: dar protagonismo global ao Brasil. O mundo atual não é o de 2003. Pode haver barreiras para esse protagonismo?
Fonseca: Por seu tamanho e a importância que temos em áreas como o meio ambiente, o Brasil é sempre protagonista. O mundo é outro, mas um lugar de importância para o Brasil está reservado. Nossa capacidade de mobilização é forte e conhecida na agenda multilateral, na OMC, na ONU. A expectativa de que o Brasil voltasse a ter papel relevante era natural. Somos protagonistas na cena internacional, não como superpotência, nem potência secundária, mas somos. Como, então? Tem um tipo de poder em que o Brasil se destaca. Não temos poder militar, nem ideológico, nem econômico, ou só em algumas áreas. Mas temos um poder diplomático. A tradição brasileira é de uma visão bem realista de como o mundo é e do que podemos fazer nele. E temos um comportamento diplomático que nos ajuda nesses processos de negociação. Tudo é negociado e o Brasil sabe negociar.
Valor: O período em que o Brasil abdicou desse realismo deixa cicatrizes?
Fonseca: Foi um período curto, em que se infringiram não só tradições da diplomacia brasileira, mas regras da diplomacia em geral. Um colega dizia que só há uma regra na diplomacia: seja gentil com as pessoas. E deixamos de fazer isso por alguns anos. Fechar a embaixada em Caracas foi inusitado. Nem os americanos, que impõem sanções a Cuba, deixaram de ter um escritório em Havana. Mas o Brasil tem 200 anos de tradição diplomática sólida. Vai recuperar seu lugar, usando suas vantagens no meio ambiente, no comércio e outras. Entre os parceiros, existe a torcida para que o Brasil volte ao protagonismo. Líderes da Europa, dos EUA, da América Latina, querem o Brasil participando das decisões. Os vizinhos querem que o Brasil ajude a consertar o Mercosul, a aumentar as relações comerciais desses países, a organizar uma frente comum de atuação.
Valor: Em 1981, sua tese no Itamaraty defendia a aproximação da diplomacia com o mundo acadêmico. Qual foi sua motivação?
Fonseca: Estava claro que a democratização iria acontecer. A pergunta era: como o Itamaraty vai viver a nova situação? Minha geração começou na ditadura e pensava a política externa na perspectiva dela. Nós nos preocupávamos com as limitações impostas por um governo militar. Meu primeiro chefe foi João Augusto de Araújo Castro, que tinha sido ministro de João Goulart e mantinha uma boa relação com jornalistas. E trabalhei com Ítalo Zappa, para quem o que dava legitimidade à política externa era o modo como ela era passada à sociedade. Mesmo na ditadura, o Itamaraty tinha uma relação com a imprensa diferente dos outros ministérios. Mas fui olhar para a relação para a universidade, onde, nos anos 80, havia um grupo muito pequeno, mas visivelmente de muita qualidade, estudando relações internacionais na universidade. Até então, não era comum que pessoas de formação acadêmica estudassem as relações internacionais. Meu chefe, Ronaldo Sardenberg, começou a interlocução com esse grupo. Hoje, o campo está consolidad.
“Saímos de cima do muro”, diz novo chanceler Mauro Vieira sobre guerra - Amanda Péchy (Veja)
“Saímos de cima do muro”, diz novo chanceler Mauro Vieira sobre guerra
Chefe do Itamaraty afirma que hoje o país defende a Ucrânia no conflito com a Rússia e garante que o Brasil vai se aproximar da China e dos Estados Unidos
Por Amanda Péchy
Revista Veja, 10 fev 2023
Em sua segunda passagem pela Esplanada dos Ministérios, o chanceler Mauro Vieira, 71 anos, está debruçado sobre uma agenda repleta de viagens que julga essenciais à tarefa de reinstalar o Brasil no tabuleiro geopolítico. O périplo começou ao lado de Lula em viagem cercada de polêmicas à Argentina e segue nos Estados Unidos, a partir desta sexta-feira, 10, onde a ideia é refazer “laços esgarçados” com o governo Joe Biden. Conhecido pelo temperamento apaziguador, ele chegou a ser criticado por alas do PT depois de, tendo ocupado a pasta na gestão Dilma Rousseff, comparecer à posse de seu sucessor, José Serra, no polarizado cenário pós-impeachment. Com um extenso currículo de embaixadas que comandou em variados momentos da história do país — Buenos Aires, Paris, Washington —, Vieira acabou, na era Bolsonaro, sendo alojado na representação da Croácia e ali ficou isolado, distante das discussões globais. Em entrevista concedida em seu gabinete no Itamaraty, ele diz: “O Brasil está de volta ao jogo.”
O que a visita de Lula aos Estados Unidos pode trazer de ganhos concretos para o Brasil?
Essa visita é essencialmente política. O objetivo é restabelecer laços que ficaram esgarçados na gestão anterior. Foi um período em que havia um alinhamento automático não exatamente com os Estados Unidos, mas com o então presidente Donald Trump. Quando ele perdeu as eleições, em 2020, o elo deixou de existir. Para se ter uma ideia, o governo Jair Bolsonaro demorou mais de um mês para reconhecer a vitória de Joe Biden.
Há alguma proposta de cooperação na mesa?
Por enquanto, não. Só depois dessa reaproximação será possível começar a conversar de forma mais palpável sobre comércio, ciência e tecnologia. Uma das pautas relevantes da visita será a política ambiental. Os presidentes ainda devem falar de futuros investimentos americanos no Brasil e sobre caminhos para abrir espaço à iniciativa privada brasileira lá. Os Estados Unidos sempre estarão em nosso rol prioritário. Depois da China, são nossos maiores parceiros.
E sobre a visita à China, prevista para ser a próxima escala, há chances de sair daí o tão alardeado acordo com o Mercosul?
Ainda não, isso leva mais tempo. Mas é um primeiro passo. O governo chinês convidou Lula e ele já aceitou. Deve embarcar entre março e abril. Fazendo as contas e olhando a agenda, nos primeiros quatro meses de mandato o presidente terá mantido contato com todos os grandes parceiros brasileiros. É um trabalho de refazer pontes que hoje não estão tão sólidas.
Quais assuntos devem vir à tona na ida a Pequim?
Discutirei a agenda em detalhes com o chanceler chinês nesse mês, na reunião do G20, na Índia. Eles são os parceiros comerciais número 1 do Brasil desde 2010, então há muitos interesses em jogo. Como a China ocupa uma posição de destaque na ciência e na tecnologia, essa é uma área que atrai a atenção do Brasil, entre muitas outras. Bolsonaro disparou comentários grosseiros sobre Pequim, criando rusgas que, agora, nos cabe dissolver.
Como o Brasil vai atuar no complexo tabuleiro em que a China tenta tirar dos Estados Unidos o posto de país mais poderoso?
Negociaremos com um e outro, indiscriminadamente. Isso não significa, porém, ir e voltar nos acordos, ao sabor das circunstâncias. Política externa é um esforço de longo prazo. O programa espacial que temos com a China foi selado quatro décadas atrás. Os Estados Unidos, por sua vez, foram nosso maior parceiro por um século inteiro, até 2010. Faremos o que for bom para o Brasil, com diplomacia e não com ideologia.
A atual política externa de Lula vem sendo comparada à dos mandatos anteriores, sobretudo por dar ênfase às relações com a América Latina, que, com as voltas que o mundo deu, perdeu relevância. Faz sentido enveredar por essa direção?
Garanto que, se ajustes forem necessários, serão feitos. Mas se a política do passado seguir nos beneficiando, não hesitaremos em voltar a mecanismos que deram certo. O retorno à Celac (reunião de países latino-americanos e caribenhos), por exemplo, é acertado, já que funciona como um eficiente espaço para o debate de interesses comuns.
A ideia de uma moeda comum na região, lançada na recente viagem de Lula à Argentina, vai mesmo sair do plano do discurso?
Primeiro, só para não haver confusão, o presidente nunca se referiu a uma moeda única, nos moldes do euro, mas a uma unidade comum para trocas internacionais, a começar pela Argentina. Isso pode agilizar o comércio bilateral. Agora, para sair do papel depende de muitas variáveis, não se cria algo assim de uma hora para outra. Afinal, os quatro países do Mercosul apresentam ritmos muito diferentes na economia.
Lula também citou a intenção de canalizar verbas do BNDES para investimentos no exterior. Como evitar que caiam na teia de corrupção que já enredou outros projetos do gênero?
Combatendo, investigando, punindo. Acho inacreditável como criticam investimentos brasileiros no exterior. Esse tipo de linha de financiamento existe justamente para ajudar negócios nacionais, passando por uma aprovação criteriosa. Um eventual aporte de dinheiro para o gasoduto argentino de Vaca Muerta, para ir até o Rio Grande do Sul, tem potencial para beneficiar uma relevante cadeia produtiva, gerando emprego e renda no Brasil, só para dar um exemplo.
Não é um problema Lula apoiar ditaduras como as de Cuba e da Venezuela, dizendo que temos de demonstrar “carinho” e “respeito” com países que atropelam os direitos humanos?
Não podemos deixar de conversar com Caracas e Havana por seguirmos linhas político-ideológicas divergentes e nos limitar àqueles que compartilham nossas visões — exatamente o que o antigo governo fez. A Venezuela não só é um país vital por deter as maiores reservas de petróleo do mundo, como tem uma fronteira de 2 000 quilômetros com o Brasil, na delicada região da Amazônia. Precisamos considerar nossos interesses. Podemos fazer críticas, mas não vamos fechar embaixadas.
Por que o Mercosul não deslanchou até hoje?
Não vejo assim. De 1991, quando foi criado, a 2011, seu auge, o volume de comércio entre os quatro países (Uruguai, Paraguai, Brasil e Argentina) passou de 4,5 bilhões de dólares a 48,9 bilhões de dólares. Na última década, houve oscilações em razão de crises econômicas regionais e mundiais, mas assistimos a uma forte recuperação. As críticas ao Mercosul estão mais relacionadas ao desejo de alguns países de selar acordos-solo de livre-comércio.
E por que o acordo do Mercosul com a União Europeia está há anos empacado?
Não sei por que ninguém fez nada desde 2019, quando foi assinado, sem ter sido ratificado. Estamos neste momento examinando o texto, e o presidente já deixou claro que é uma prioridade. Quer pôr um ponto-final na história até o fim deste semestre.
Lula disse que pretende revisar pontos do acordo. Isso não atravancaria ainda mais o processo?
A preocupação do presidente é justa: garantir que pequenas e médias empresas consigam ter acesso ao mercado europeu de forma competitiva, daí a necessidade de ajustes. Se não fosse por isso, poderíamos assinar imediatamente.
Segue na pauta o ingresso do Brasil no Conselho de Segurança da ONU como membro permanente?
O tema está na ordem do dia. Vamos manter, com esse objetivo, um firme trabalho junto aos membros permanentes e não permanentes do Conselho.
E a entrada na OCDE (organização que reúne os países mais desenvolvidos) é uma possibilidade?
O convite para ser membro foi apresentado ao governo brasileiro e será estudado. Lula já demonstrou interesse.
No recente encontro com o chanceler alemão Olaf Scholz, Lula afirmou que “quando um não quer, dois não brigam”, mantendo um discurso ambíguo sobre o conflito entre Ucrânia e Rússia. Não está na hora de um pronunciamento mais enfático?
Na minha interpretação, o que ele quis dizer com essas palavras é que, quando dois estão em guerra, se um lado fizer um gesto e o outro seguir, isso pode abrir chance para a negociação. A propósito, o presidente já afirmou inúmeras vezes que condena a invasão russa e a guerra. Ao contrário do governo Bolsonaro, agora o Brasil saiu de cima do muro.
Por que então o Brasil negou o pedido da Alemanha para fornecer munição aos tanques na Ucrânia?
O governo não quer dar armas para que as pessoas se matem, mas conversar sobre a paz. Aliás, se formos chamados para ajudar a mediar as negociações, estamos dispostos a participar.
Como avalia a política externa na gestão Bolsonaro?
Prefiro não cutucar o passado, mas, tudo bem, falo um pouquinho aqui. Bolsonaro interferiu em assuntos internos de outros países, criou saias-justas e fez comentários grosseiros sobre seus líderes. Nunca tinha visto em todos os meus anos de carreira nada parecido.
Ataques à democracia, como o de 8 de janeiro, são um freio de mão à diplomacia brasileira?
No dia do atentado, recebemos dezenas de ligações de chefes de Estado prestando solidariedade e se dizendo horrorizados com aquelas cenas. No final, acho que o episódio serviu para mostrar que temos uma democracia sólida, com instituições capazes de reagir de forma rápida e punir os culpados.
Haverá troca-troca de embaixadores e representantes do Brasil em instituições estrangeiras?
Haverá trocas em postos-chave naqueles países onde o presidente tem relação pessoal com os chefes de Estado. Júlio Bitelli, próximo de Lula, foi escolhido como embaixador na Argentina, e nomes indicados por Bolsonaro na França, na Holanda e na Itália serão substituídos. Foi ainda anulada a indicação da representação do Brasil junto à Organização Mundial do Comércio. Em quase todos os casos, os diplomatas estavam dentro do período de troca.
O senhor foi escalado na gestão Bolsonaro para assumir uma embaixada menos vistosa, na Croácia. Guarda ressentimento?
Nenhum. Fui para a Croácia porque quis. Tinha a opção de voltar ao Brasil, mas preferi me manter em exercício. Não falava com o governo nem o governo comigo. A solidão desse tempo felizmente ficou no passado.
Quando um Putin quer, um Putin briga, invade, tortura, estupra e mata - Lúcia Guimarães (FSP)
Quando um Putin quer, um Putin briga, invade, tortura, estupra e mata
Lúcia Guimarães - Opinião
Folha de S. Paulo, 8.fev.2023
"Quando um não quer, dois não brigam," disse nenhum chefe de Estado democrático quando Hitler invadiu a Tchecoslováquia em 1939, num reino de terror que custou a vida de 345 mil.
Metáforas pedestres não prestam, de maneira geral, para discutir política externa, especialmente como referência ao maior ataque militar não provocado desde a Segunda Guerra Mundial, lançado há um ano —uma ocupação cujas atrocidades valeriam múltiplas condenações no Tribunal de Haia.
Quando ouço o presidente que teve meu voto falar sobre a imensa tragédia ucraniana, sou transportada no tempo para minha adolescência de mimeógrafos, diretórios estudantis e esquerdismo infantil.
Se a pauta da reunião apressada da sexta-feira (10), em Washington, inclui o extremismo político que gerou tentativas de golpe no Brasil e nos EUA; se os dois aliados concordam sobre a gravidade da disseminação de informação falsa, Lula e Biden têm papo para um fim de semana inteiro ao pé da aconchegante lareira de pedra em Camp David.
Nesta quarta-feira (8), um time de investigadores internacionais revelou "fortes indícios" de que Vladimir Putin autorizou a transferência para os "separatistas" em território ucraniano de armas como o míssil Buk, que derrubou o avião da Malaysia Airlines sobre a Ucrânia em julho de 2014, matando 298 civis. A carnificina ocorreu quatro meses depois da invasão e anexação da Crimeia e foi rapidamente debitada da conta do Vladimir por valorosos repórteres investigativos cooperando em vários países da Europa.
Desde a primeira invasão da Ucrânia, há nove anos, assistimos ao deplorável relativismo moral de —deixo claro— apenas uma parte da esquerda, que emoldura crises no contexto da Guerra Fria e de clichês contra o imperialismo ianque —um mal que seria combatido com o imperialismo do cosplay de tzar, ex-agente bundão da KGB, gângster e assassino em massa, o cabra que precisa continuar aboletado no Kremlin para continuar vivo.
Nesta semana, uma reportagem suprimida em julho de 2020 viu a luz do dia no site britânico Byline Times. A reportagem foi encomendada pela mãe de todas as publicações protetoras da santidade da imprensa independente, a Columbia Journalism Review, ligada à mais prestigiada escola de jornalismo nos EUA, na Universidade Columbia.
De acordo com o jornalista investigativo britânico Duncan Campbell, a reportagem, encomendada para investigar o quanto a centenária publicação de esquerda The Nation estava no bolso de Moscou, foi censurada, numa acomodação stalinista repulsiva.
O cardinalato que informa Lula sobre a invasão da Ucrânia —injustificável sob qualquer critério moral ou ideológico— quer que acreditemos que há "duas lógicas" em jogo e reserva tolerância para a anexação da Crimeia e condenação idiota a noções expansionistas da Otan usando, como argumento, até comentários do impune genocida Henry Kissinger.
O Estado brasileiro –e a diplomacia é de Estado, não de partido— nada tem a ganhar acomodando o autoritarismo fascista de Vladimir Putin, Narendra Modi ou Recep Tayyip Erdogan. O governo que trouxe Marina Silva de volta precisa parar de relativizar o papel dos assassinos da democracia.
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