domingo, 3 de novembro de 2019

Perguntas em palestra na Liberty Conference - Paulo Roberto de Almeida


Perguntas em palestra na Liberty Conference


Paulo Roberto de Almeida
 [Objetivo: responder a questões; finalidade: atender demandas da audiência]


Tendo sido convidado, pelo grupo liberal Students for Liberty, para fazer uma palestra sobre um tema escolhido por eles, que acolhi sem contestação, compareci, no último sábado 2 de novembro, ao local da conferência, onde deveria abrir um dos painéis. O tema era este: “Um diplomata liberal em face dos extremismos políticos”. Comecei por dizer que antes de ser liberal, e antes de ser diplomata, eu era um marxista, a coisa mais normal do mundo no ambiente de Guerra Fria e de estudos universitários no Brasil de meados dos anos 1960; depois fui evoluindo, com estudos, viagens, experiências, leituras, reflexões.
Numa breve introdução, para deixar mais tempo aos debates e perguntas e respostas, discorri, em primeiro lugar, sobre a distinção que caberia fazer entre políticas públicas, no plano interno, e posições diplomáticas do país no contexto internacional. O que vale no ambiente doméstico não necessariamente vale no plano da política externa. As posturas assumidas nesse âmbito devem ser avaliadas em sua dimensão própria, em função do interesse nacional, não porque sejam de direita ou de esquerda. Exemplifiquei com o caso da China, um país perfeitamente autocrático no plano interno, ainda que não mais totalitário como no passado, mas que não pretende impor a nenhum outro país seu modelo político, não pretende exportar autocracia, e cuja administração apenas pretende elevar o nível de bem-estar de seu povo, mediante comércio, investimentos, interações as mais diversas, enfim, ações perfeitamente compatíveis com o sistema multilateral de comércio, ainda que a China faça um uso malicioso de suas regras.
Como expliquei em seguida, apenas porque o tema sugerido da palestra prendia-se à minha condição pessoal, que eu era um antigo observador das posturas em política externa de todos os partidos políticos, e que desde muito antes da ascensão ao poder do PT eu já havia identificado perfeitamente as características específicas desse partido na configuração doutrinal dos partidos brasileiros: um típico partido esquerdista latino-americano, com todas as deformações que poderíamos esperar dessa tomada de posição: um terceiro-mundismo anacrônico, um anti-imperialismo infantil, um antiamericanismo démodé, receitas ultrapassadas em matéria de política econômica, enfim, o que se poderia esperar de um partido de esquerda congelado no tempo. Minha oposição à política externa do PT, e às suas políticas públicas em geral, que me valeram um longo período de ostracismo no Itamaraty, não derivaram em nada do fato de ser o PT um partido de esquerda, e sim o fato de que ele era inepto no plano administrativo e tremendamente corrupto, em contradição com sua mentirosa mensagem de campanha, na qual prometia “ética na política”.
Justamente, no plano externo, as opções do governo do PT no sentido de adotar o terceiro-mundismo anacrônico, o anti-imperialismo infantil, suas alianças ideológicas com países supostamente anti-hegemônicos e antiocidentais me pareciam ridículas e totalmente inconsistentes com os interesses nacionais do Brasil. Assim, em lugar de assumir a direção do programa de mestrado do Instituto Rio Branco, fiquei sem qualquer designação na Secretaria de Estado durante todo o longo período dos governos do PT, passando a maior parte do tempo na Biblioteca do Itamaraty. Numa fase inicial, até trabalhei para o governo, no Núcleo de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, embora nunca tivesse abandonado meu espírito crítico à muitas das propostas de políticas formuladas pelo PT e seus funcionários. Nunca hesitei em expressar minha opinião, dentro e fora do governo, dentro e fora do Itamaraty.’
Meu percurso do marxismo juvenil a um liberalismo bem temperado, no campo doutrinal, acompanhou a evolução de meus estudos, leituras e reflexões; no terreno da prática, fui observando todos os experimentos de políticas públicas, em todos os países que visitei ou nos quais vivi, sem qualquer catalogação primária do tipo esquerda-direita, apenas com a preocupação principal na eficácia do combate à pobreza. Deixei o registro dessa evolução em alguns textos que ainda se encontram disponíveis em meu blog Diplomatizzando, em especial nos textos “Sete Pecados da Esquerda” e “Contra a Anti-Globalização”, que resumem um pouco dessa experiência adquirida em viagens e estudos, com muita reflexão sobre as políticas mais eficazes, independentemente de sua coloração ideológica ou caráter mais privatista ou mercadista, ou estatal-dirigista.
Com isso encerrei a exposição inicial e dediquei-me a responder às primeiras perguntas, que tocaram nos temas mais esperados: antiglobalismo – que não hesitei em classificar como uma idiotice completa –, os desafios do Mercosul na sequência da derrota de Macri – que eu disse não ter muita relação com o futuro do bloco, e sim a inadimplência constante dos dois membros principais em cumprir os termos do Tratado de Assunção –, a questão da China – sempre presente em 100% das palestras e seminários que ocorrem desde vários anos – algumas questões que demandei que chegassem por escrito já antecipando que não teríamos tempo para responder a todas elas no tempo alocado para a palestra. De fato, recebe uma dúzia ou mais de questões que vou transcrever neste textos, sem que eu possa assegurar, neste momento, que terei tempo de responder a todas elas no tempo exíguo que me resta depois de uma extenuante jornada de palestras, conferências, encontros e conversas com algumas dezenas de colegas, amigos, estudantes, novos e velhos conhecidos de eventos similares a este a que assisti ou de que participei nos anos recentes. Tínhamos de interromper o nosso evento, uma vez que a mesma sala sediaria um outro encontro, e eu mesmo tinha de participar de um painel sobre o “Brasil no mundo”, mediado pelo professor de Relações Internacionais da USP, Leandro Piquet, com a participação da economista Sandra Polónio Rios e o deputado (e diplomata) Marcelo Calero.
Eu tinha tomado algumas notas preliminares para esse evento em forma de painel, como sempre faço, ainda que nunca leio o que escrevi, num hábito que apenas serve para organizar as ideias e deixar registro, justamente, desse tipo de evento, para o benefício daqueles que não podem estar presentes. As notas que fiz, imediatamente postadas em meu blog Diplomatizzando na madrugada anterior, receberam este registro:
3529. “Debate sobre o Brasil no mundo: questões de política externa”, São Paulo, 2 de novembro de 2019, 5 p. Notas para debate em conferência Liberty, São Paulo. Postado no Diplomatizzando (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2019/11/debate-sobre-o-brasil-no-mundo-politica.html).
Procedo agora à transcrição das perguntas manuscritas enviadas à mesa, retendo para mim eventuais endereços de correio eletrônico para envio posterior de minhas respostas, o que também vou fazer de forma genérica, postando minhas respostas e comentários adicionais no meu blog, para que todos possam acessar de forma independente.

1) Por que o discurso de Bolsonaro é tão atrativo?
2) Como e quando surgiu a atuação/pensamento Sul-Sul no Brasil e qual seria a inclinação diplomática no atual período?
3) O Brasil, como membro “extra-Otan”, faria o país ter algumas obrigações com a organização, como fazer parte de coalizões em guerra?
4) O Sr. acha que com uma possível abertura do mercado externo brasileiro irá (?) desgastar as ideias e sandices ditas por pessoas como o Felipe G. Martins, Ernesto Araújo, etc.?
5) Gostaria de saber se o Sr. vê o mundo político-discursivo em cinco ou dez anos como moderado; se o Sr. enxerga uma superação dos discursos e das políticas extremistas (principalmente na extrema-direita) que vemos no mundo de hoje.
6) Estou ajudando Relações Internacionais em uma faculdade de ideias majoritariamente coletivistas. Qual a sua perspectiva para a entrada de estudantes de RI, que defendem a liberdade na diplomacia do futuro?
7) Em minha universidade, os docentes têm uma visão desenvolvimentista nacionalista, inclusive muitos denominam-se anti-imperialistas. Segundo ele, o Brasil ser um país agroexportador é um erro, portanto devemos incentivar a nossa indústria, como no passado. É realmente necessário forçar nossa industrialização? Temos alguma vantagem diplomática graças à agroexportação?
8) Numa recente entrevista, Celso Amorim falou que não há nada errado com o empréstimo do BNDES dos governos petistas; queria que você comentasse sobre isso e se pudesse sobre a questão dos calotes.
9) O Sr. acha realmente necessária a “tortura” (?) de acordos bilaterais com outros países para estabelecer comércio? Se eu fosse o presidente, eu simplesmente abriria as portas do Brasil. Teria algum efeito negativo?
10) Conforme seu [meu] livro, como a inteligência da diplomacia brasileira se tornou miserável? E como isso pode ser revertido?

Todas perguntas altamente interessantes, como se vê, para cujas respostas eu vou pedir a leniência dos seus autores para responder nos próximos dias, dado o adiantado da hora nesta madrugada do domingo 3 de novembro e uma longa viagem de volta a Brasília, contando ainda com aula, banca de mestrado e outras obrigações acadêmicas e profissionais a partir desta segunda-feira 4/11/2019. Voltarei às questões tão pronto possível.
Grato pelo prestígio, pelo interesse, e pelas questões interessantes, que me permitirão aprofundar um pouco mais esses temas de interesse geral.
Paulo Roberto de Almeida
São Paulo, 2-3 novembro 2019.
Brasília, ??/11/2019

sábado, 2 de novembro de 2019

Debate sobre o Brasil no mundo: a politica externa e a diplomacia bolsonarista


Debate sobre o Brasil no mundo: questões de política externa

Paulo Roberto de Almeida
  
Dez meses do novo governo: já se pode fazer um balanço da política externa?
A despeito das muitas dúvidas sobre o possível itinerário exposto durante a campanha e no seu imediato seguimento, assim como ao início do governo Bolsonaro, bem como sobre as muitas mudanças observadas em sua implementação prática, é possível, sim, tentar um balanço da política externa do Governo Bolsonaro, ainda que persistam enormes incertezas quanto à adequação desses títulos: “política externa do governo Bolsonaro” ou “diplomacia do governo Bolsonaro”. Isso se deve a que nunca tivemos, antes, ao início ou depois, uma exposição clara, abrangente, sistemática sobre o que seria a política externa desse governo, pois nem o presidente, nem o seu chanceler, ou os assessores envolvidos nessa área jamais apresentaram um documento ou discurso organizado sobre quais seriam as prioridades estratégicas, os objetivos táticos, os desdobramentos multilaterais, regionais ou bilaterais daquilo que poderia se apresentar como uma diplomacia própria, ou uma política externa clara e definida.
Sempre tivemos invectivas, começando pelo fato de que tanto o presidente quanto o chanceler proclamaram que, com eles, teríamos uma “política externa sem ideologia”, e um “comércio exterior sem ideologia”. Ora o que mais tivemos, do começo até aqui, com algumas poucas correções pragmáticas – devidas a outros agentes, não aos dois – foi uma política externa ou uma diplomacia com ideologia, muita ideologia, em vários aspectos revertida pela ação dos homens de negócios ou funcionários mais racionais desse governo. Sob esse aspecto, portanto, o balanço a ser feito é o de uma desconstrução quase completa da “diplomacia sem ideologia”, uma completa revisão das invectivas lançadas ao início.
Num certo sentido, nunca tivemos, até aqui, uma “política externa brasileira” ou uma “diplomacia brasileira”, e sim uma “diplomacia do bolsonarismo”, que é um ajuntamento heteróclito, confuso e muito pouco coerente de slogans, de grandes frases e de sonhos bizarros, que combinam posturas absolutamente heterodoxas advindas, sugeridas ou impostas por um guru estranho, expatriado do Brasil, que foi várias vezes indicado como o inspirador de várias “ideias”, se de ideias se tratam, do presidente e dos seus três filhos ativos na política. Acrescente-se que o chanceler escolhido jamais foi conhecido por ser um discípulo ou aderente a essas ideias estranhas, tendo construído artificialmente um perfil adaptado ao cargo, fazendo publicar um bizarro arrigo no qual colocava Trump como um pretenso salvador do Ocidente expressamente concebido e divulgado para conquistar o posto.
Quais eram, finalmente, os grandes objetivos do bolsonarismo diplomático? Em primeiro lugar, havia a pressão da bancada evangélica – uma das bases do eleitorado bolsonarista – para a mudança da embaixada brasileira junto ao governo de Israel da capital reconhecida, Tel Aviv, para a capital política do Estado judeu, Jerusalém. Como sabemos, esse objetivo, totalmente ideológico, se frustrou, uma vez que surgiram reações da ampla comunidade de produtores e de negócios vinculados à exportação de carne halal aos países árabes, ou muçulmanos, da região e em outros continentes. Em seu lugar, anunciou-se a abertura de um escritório de comércio e investimentos em Jerusalém, uma localização totalmente desprovida de sentido, uma vez que as principais áreas vinculadas à tecnologia e negócios se situa justamente em Tel Aviv, Haiffa e outras localidades próximas da costa.
O outro objetivo, nebuloso, consistiria em revisar as relações com a China, pois ela estaria, supostamente, “comprando o Brasil”, nas palavras do presidente, e não comprando do Brasil. A alegação, completamente sem fundamento, foi desmontada ainda antes da posse do governo, por uma hábil reação da embaixada e do próprio governo da China, a que se seguiu um posicionamento consistente do vice-presidente Hamilton Mourão, responsável pela representação brasileira na COSBAN, a comissão bilateral de alto nível, tendo ele chegado a defender a autonomia brasileira na questão do sistema 5G da Huaiwei, sob pressão do governo Trump, ao qual o governo Bolsonaro devota indisfarçável admiração e seguimento.
O aspecto mais importante das mudanças anunciadas na política externa do Brasil seria, justamente, uma aliança estreita, não com os Estados Unidos, mas com o governo Trump, segundo antecipavam, desde antes do mandato, o próprio candidato e sobretudo o seu filho com pretensões “diplomáticas” que por duas vezes passeou pelos Estados Unidos com o boné da campanha Trump 2020. Proferiu outras barbaridades também, mas nenhuma tão gigantesca quanto o oferecimento de uma base militar americana no Brasil, feito pelo chanceler no próprio dia da posse, ao Secretário de Estado americano, atitude tão submissa que foi prontamente rejeitada pelo ministro da Defesa e pelos demais militares do governo. Mas a adesão ao programa de Trump para a região – em outras esferas igualmente – teve continuidade pela aderência aos planos aventureiros (e eleitorais) de Trump e de seu antigo conselheiro de Segurança Nacional, John Bolton, para a Venezuela, no sentido de provocar uma ruptura no seio do Exército chavista, forçando ajuda “humanitária” nas fronteiras do país com a Colômbia e o próprio Brasil, em Roraima. Os militares brasileiros foram prudentes o suficiente para descartar completamente qualquer solução militar para a “resolução” do problema venezuelano e por uma segunda vez paralisaram o chanceler em seus propósitos.
Registre-se, por importante, que a postura do chanceler nessa questão contrariou não apenas as tradições rigorosamente aderentes ao direito internacional da diplomacia profissional do Brasil, como sobretudo princípios constitucionais do país, em especial aquele que trata da não intervenção nos assuntos internos de outros Estados. Pode parecer incrível, mas é um fato que tanto o presidente – com suas invectivas contra ou a favor de dirigentes estrangeiros – quanto o chanceler, que segue de forma canina o presidente, são capazes de afrontar valores e dispositivos constitucionais, assim como princípios de direito internacional há muito tempo consagrados em nossas cultura e prática diplomáticas. O mesmo cenário de confrontação externa manifestou-se na questão das queimadas na Amazônia, suscitando legítimas preocupações na opinião pública internacional, como tal repercutidas em declarações de dirigentes estrangeiros, que receberam acerbas respostas do presidente brasileiro. Manifestações de total descortesia e em contradição com os novos requerimentos do politicamente correto permearam visitas externas do presidente ao Chile e ao Paraguai, quando aproveitou para elogiar ditadores de triste memória na repressão implacável contra opositores políticos nesses países. A indignidade chegou ao clímax ao ter o presidente ofendido a ex-presidente do Chile, Michelle Bachelet, atual Comissária de Direitos Humanos da ONU, cujo pai morreu na prisão da ditadura Pinochet, da mesma forma como já tinha ofendido o pai do atual presidente da OAB do Brasil, morto pela ditadura militar.
Todas essas graves distorções das práticas diplomáticas do Brasil foram amplamente superadas pela extrema grosseria com que o presidente recebeu a dupla vitória – primeiro nas primárias, depois nas eleições – do novo presidente argentino Alberto Fernández, o que representa praticamente um rompimento unilateral de relações com nosso principal vizinho. Em suma, os desastres diplomáticos já produzidos em dez meses pelo presidente e seus assessores nessa área causaram imensos prejuízos concretos ao Brasil, e diminuíram sensivelmente o prestígio da diplomacia brasileira em âmbito mundial, sobretudo nos temas ambientais, em direitos humanos e também na sua adesão aos líderes da nova direita mundial.

Impactos das rupturas diplomáticas em setores de interesse concreto do Brasil
Dois “triunfos” diplomáticos foram pomposamente saudados pelo governo Bolsonaro nos primeiros meses de sua gestão: o apoio do governo Trump ao ingresso do Brasil na OCDE, e a conclusão do acordo de liberalização comercial entre o Mercosul e a União Europeia, apresentados como realizações prometedoras de um novo papel para o Brasil no cenário internacional. Ambos se revelaram de fugaz sustentação, e de fato se encontram concretamente num impasse que promete se prolongar pelo futuro indefinido, e a causa de ambos se encontram em gestos desastrados que se originam no próprio Brasil. Vejamos.
A adesão à OCDE pode estar ameaçada pela retirada do apoio americano – numa terrível derrota da carta trumpista da diplomacia brasileira –, mas o fator principal de obstrução pode estar localizado na paralisia imposta ao compartilhamento de informações sobre operações fraudulentas e lavagem de dinheiro entre órgãos brasileiros de investigação e controle, por força de liminar monocrática do presidente do STF; esse gesto pode deixar o Brasil de fora da OCDE, independentemente do apoio político de todos os atuais membros, uma vez que rompe compromissos brasileiros assumidos no âmbito do combate nacional e cooperação internacional contra crimes financeiros transnacionais, ademais da adesão do Brasil à Convenção sobre Corrupção nos Negócios Internacionais (Anti-Bribery Convention).
A outra grande frustração é ver enviado às calendas o acordo Mercosul-EU, dados os gestos negativos já anunciados por diversos países europeus, essencialmente pela política julgada excessivamente leniente do governo brasileiro em face de desmatamento e queimadas amazônicas e o seu frouxo comprometimento com metas do desenvolvimento sustentável. É um fato que o presidente mantém a mesma postura de “desenvolvimentismo destrutivo” dos recursos naturais a que assistiu na era militar do Brasil Grande Potência, quando o próprio conceito de sustentabilidade não existia e as preocupações com isso eram precárias ou mesmo inexistentes. Acoplada a esse fato, o desprezo pela causa indígena é evidente em sua postura de aproveitamento das terras indígenas para fins produtivos (agrícolas ou minerais), no mesmo sentido das práticas adotadas durante o regime militar.
Os equívocos que apareceram ao início tanto nas relações com a China – nosso principal parceiro comercial desde mais de dez anos e provedor da maior parte dos saldos de comércio exterior – quanto em relação à comunidade árabe-muçulmana parecem próximos de ser contornados, por visitas mais marcadas por pragmatismo do que impulsos ideológicos ou religiosos. Mas, um desastre maior pode estar à espreita, na relação bilateral com a Argentina e na questão do Mercosul, em função da agressividade inusitada demonstrada pelo presidente em face do retorno dos peronistas ao poder. A (falta de) diplomacia bolsonarista insiste em queimar todas as pontes na importantíssima relação Brasil-Argentina, alimentando uma birra unilateral que pode resultar em cizânia bilateral, com efeitos e consequências imprevisíveis no futuro de curto prazo. Por causa de um presidente totalmente inconsequente, despreparado e pouco instruído pelo seu chanceler acidental, os dois países – ou seja, centenas de milhares de empresas, milhões de trabalhadores e consumidores, investidores, todos – podem sofrer perdas irrecuperáveis no terreno econômico, sem mencionar os possíveis prejuízos políticos, na região e fora dela, advindos dessa quase ruptura de relações cordiais. Junto com a adesão inconsequente ao presidente americano, o afastamento igualmente inconsequente do novo presidente argentino constitui um dos problemas de grande relevo no presente momento, e ambos seriam impensáveis caso a diplomacia brasileira fosse administrada de maneira responsável, não com as tonalidades ideológicas que lhe foram impostas por amadores despreparados.
Muitas outras questões poderiam ser levantadas a propósito dos equívocos conceituais da política externa bolsonarista, bem como dos erros de gestão de uma diplomacia entregue a decisores completamente ineptos no trato da agenda internacional e das relações exteriores do Brasil. Esses equívocos de concepção e erros de implementação decorrem, obviamente, de fatores ideológicos altamente bizarros para os padrões tradicionais da diplomacia brasileira, geralmente conduzida de modo profissional, em bases sumamente técnicas e dotadas de certo equilíbrio de posturas que preservam o caráter não partidário na defesa dos grandes interesses nacionais, exatamente o contrário do que se assiste atualmente na formulação e execução de nossa política externa. Até quando isso pode durar? Pode-se estender por todo o atual mandato presidencial ou ser oportunamente corrigido quando os desastres já criados e outros a serem certamente criados causarem prejuízos sensíveis à comunidade de negócios do país, que então forçarão uma mudança de postura no atual ministério das alucinações exteriores.

Paulo Roberto de Almeida
São Paulo, 2/12/2019

Sobre leões e hienas: O Brasil na América do Sul - Leonardo Coutinho (GP)

Sobre leões e hienas

O presidente da Bolívia, Evo Morales, em coletiva de imprensa em La Paz, 31 de outubro de 2019

Leonardo Coutinho
Gazeta do Povo, 1/11/2019

A Polícia Federal realizou uma operação em três estados brasileiros com o objetivo de desmontar uma organização criminosa especializada em lavagem de dinheiro e migração ilegal. Em resumo, era o seguinte: os bandidos traziam para o Brasil pessoas do Afeganistão, Bangladesh, Índia, Nepal e Paquistão e depois os despachavam para a fronteira sul dos Estados Unidos. Os criminosos aproveitavam-se da frouxidão das leis migratórias brasileiras para transformar o país em uma escala até os Estados Unidos.
No Brasil, não precisa nada. Literalmente nada. Estou falando sequer de um passaporte ou documento simples de identidade para que um imigrante possa desembarcar em um de nossos aeroportos, fazer os procedimentos migratórios e ingressar no país. As leis que regulamentam os pedidos de refúgio consideram que basta uma autodeclaração – que inclui nome, idade e nacionalidade – para permitir o ingresso, um protocolo para acompanhar e, acreditem, um documento de identidade.
Quando redigiram a lei, as autoridades brasileiras consideraram que uma pessoa que embarca em qualquer aeroporto internacional para chegar ao Brasil está passando pela mesma situação extrema daquelas que atravessam desertos e fronteiras a pé, fugindo de um massacre iminente, como vimos nas imagens recentes de curdos fugindo da Síria. É evidente que nenhuma companhia aérea do planeta permitiria a viagem de um indocumentado. Mas, na ficção brasileira tudo pode.
A investigação no Brasil foi possível porque nos Estados Unidos identificaram um problema. Imigrantes provenientes de países com alto nível de risco para a segurança nacional, por serem uma maternidade de terroristas, começaram a ser barrados tentando se mimetizar entre os latinos que tentam atravessar a fronteira guiados por coiotes. Vários desses presos relataram terem iniciado a jornada pelo Brasil.
Em 2018, os Estados Unidos estiveram diante de um problema inédito. Caravanas com milhares de imigrantes centro-americanos marcharam com o objetivo de atravessar na marra a fronteira americana. No final do ano passado, escrevi um artigo que trazia as provas de que nas caravanas estavam 232 infiltrados. Pessoas provenientes da Ásia, Oriente Médio e África – os chamados “Special Interest Aliens” (SIA) –, que se valeram do caos para tentar ingressar nos Estados Unidos. Entre eles, estavam dezenas de pessoas que passaram antes pelo Brasil.
Recentemente, o Ministério da Justiça apresentou novas regras para melhorar o controle migratório no Brasil. Não faltou quem reclamasse acusando o ministro Sérgio Moro de descriminação, xenofobia e dos mais populares xingamentos políticos atuais, fascista. Sem fazer a menor ideia do que se passa (ou no pior dos casos sabendo muito bem), o pessoal da resistência acha que para ser um país bacana, o Brasil tem que ser um país bocó.
Em 2007, ainda no seu segundo ano de mandato, o boliviano Evo Morales roubou, sob a justificativa de "nacionalizar", duas refinarias da Petrobras. O Brasil, então sob o comando de Lula, assistiu impassível a pilhagem do patrimônio que é de todos nós brasileiros. Treze anos depois, Lula deixou escapar, em uma entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, que a operação havia sido comunicada antecipadamente por Morales e avalizada por ele.
Friamente, se não fosse a pilhagem do patrimônio da Petrobras, Evo Morales poderia ser considerado apenas um problema dos bolivianos. Mas tal como Hugo Chávez e depois Nicolás Maduro, o presidente boliviano é uma fonte inesgotável de instabilidade. A Bolívia é um dos três produtores mundiais de cocaína, ao lado de Colômbia e Peru. Os bolivianos são responsáveis pela maioria da droga que chega ao Brasil. O país de Morales se converteu na principal base dos brasileiros PCC no exterior e principal provedor de cocaína e crack para o tráfico no Brasil.
Quem é Evo Morales? Ele é muito conhecido por seu papel como presidente da Bolívia. Posto que ele conquistou em 2005 e não está disposto a largar. Além de comandar o país, Morales nunca deixou de chefiar um conjunto de associações de produtores de folhas de coca da região do Chapare, epicentro da produção de matéria-prima para a produção de cocaína. Para simplificar, Morales está para o tráfico de cocaína como o líder dos produtores de trigo está para indústria da farinha. Indissociáveis.
Em 2018, foram registrados 57.341 homicídios no Brasil. Diversos especialistas em segurança estimam que o número de ocorrências que possuem relação direta ou indireta com o tráfico pode chegar a 80% do total. Não existe um número preciso. Mas considerando que ele é o que mais chega próximo da realidade, é possível afirmar que 126 morrem naquele ano vítimas do tráfico. A Bolívia está na origem de um dos maiores problemas brasileiros.
Entre 2009 e 2014, o governo da Bolívia mentiu pelo menos 100 vezes para a diplomacia brasileira alegando que usaria o espaço aéreo nacional para voos de ajuda humanitária e outras atividades do gênero. Segundo uma denúncia apresentada por um ex-piloto que atuou diretamente nesses voos, o que era levado no interior dos aviões era cocaína pura embarcada em uma base militar na Bolívia e entregue na Venezuela e depois em Cuba.
Há duas semanas, uma parcela significativa dos bolivianos iniciou uma luta solitária contra o presidente socialista. Morales declarou-se vitorioso para um quarto mandato, em um processo eleitoral nebuloso sob suspeitas evidentes de fraude.
A crise pós-eleitoral na Bolívia era previsível, pois não faltaram sinais do colapso institucional do país. Morales seguiu os passos de Hugo Chávez em todos os elementos que levaram à implosão da Venezuela. Mudou a constituição, o nome e a bandeira do país, violou as regras constitucionais para se reeleger indefinidamente e torrou as reservas nacionais para manter uma taxa de câmbio artificial e políticas assistencialistas.
O Itamaraty soltou uma nota adiando o reconhecimento da vitória de Morales, preferindo uma auditoria que está sendo negociada com a Organização dos Estados Americanos (OEA). O presidente Jair Bolsonaro deu um passo atrás. Disse não querer problemas com o vizinho. Mas se tratando de Morales, não basta querer.
Na savana geopolítica latino-americana, o Brasil é o mais poderoso dos leões. Mas por falta de convicção se comporta como o leão caquético do vídeo-meme que tocou fogo no debate político no início da semana. As hienas não veem problema algum em nos cercar e dar umas mordidinhas. Está na hora do Brasil se ver no espelho. Descobrir seu tamanho, habilidade e complexidades. O Estado brasileiro tem formas não-violentas de mostrar suas garras e dentes. Algumas delas passam pela diplomacia e legislação moderna e rígida. Pelo contrário continuaremos sendo vistos como o leão moribundo que não só perdeu a liderança do bando, como está um passo de ser devorado.

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Livro Marxismo e Socialismo finalmente disponível - Paulo Roberto de Almeida

Meu mais recente livro – que não tem nada a ver com o governo atual ou com sua diplomacia esquizofrênica, já vou logo avisando – ficou final...