A contraofensiva liberal
Mariano Grondona
O Globo, 2/04/2012
Mariano Grondona é colunista do La Nación (Argentina)/ GDA.
Junto com a década de 90, que supostamente representa, o liberalismo foi demonizado entre nós. Esta condenação ideológica, que não é exclusiva do kirchnerismo porque convoca inclusive partidos supostamente opositores, como a União Cívica Radical (UCR), parte de premissas falsas. É falso como considerar que o menemismo, também demonizado por identificação com os anos 90, foi autenticamente “liberal”. Ele o foi apenas parcialmente na área econômica, tanto por sua política de privatizações como por sua aliança com a UCeDe dos Alsogaray. Mas não o foi na área política, já que as reeleições de Menem pouco tiveram a ver com a ideia liberal de que os mandatos presidenciais não se devem alongar no tempo, na maneira chavista ou kirchnerista.
Também é falso que a ofensiva antiliberal seja, na América Latina, majoritária. Crer nisso é supor que a demonização do liberalismo que campeia entre nós encarna uma corrente regional, quando seu eixo está centrado unicamente no governo kirchnerista e outros governos afins, como os que imitam a Venezuela de Chávez, francamente minoritários se comparados com o que ocorre no México, Brasil, Chile, Colômbia e no próprio Peru, onde o giro à centro- direita de seu presidente, Ollanta Humala, já é manifesto.
Que a guinada à centro-direita predomina em nossa região foi visível durante os últimos dias em dois acontecimentos. O primeiro ocorreu, paradoxalmente, em Buenos Aires, quando a Universidade Argentina da Empresa (Uade) outorgou ao ex-presidente do governo espanhol José María Aznar, do Partido Popular que governa a Espanha, o título de forte impacto. O segundo aconteceu na Universidade de Lima, que acolheu mês passado um seminário internacional promovido pelo Prêmio Nobel de Literatura Mario Vargas Llosa, de notável irradiação no Peru e além. Passo a resumir suas conclusões, não sem antes advertir que a suposição de que o que hoje ocorre nas esferas oficiais de nosso país seja representativo do pensamento regional responde a um paroquialismo que às vezes nos aflige por supor que o mundo e a América Latina se espelham em nós e não, ao inverso, que o governo argentino é percebido hoje, no resto da região, como uma exceção bizarra ao curso que seguem a Europa e os EUA.
A jornada da última terça-feira na Universidade de Lima, convocada pela Fundação Internacional para a Liberdade, de Vargas Llosa, reuniu um notável conjunto de políticos e intelectuais, entre os quais os ex-presidentes da Colômbia, Alvaro Uribe; da Bolívia, Jorge Quiroga; do Uruguai, Luis Alberto Lacalle; do Peru, Alejandro Toledo, além do economista chileno José Piñera, irmão do atual presidente, da mexicana Josefina Vázquez, candidata presidencial do PAN, e de intelectuais e escritores do porte do cubano Carlos Alberto Montaner, do mexicano Enrique Krauze, do chileno Maurício Rojas e do argentino Marcos Aguinis.
Chamou-me a atenção o entusiasmo contagiante que demonstraram os participantes ante a doutrina liberal. Vindo de um país cujo oficialismo condena tudo que assuma um ar liberal, e onde o liberalismo é chamado pejorativamente de neoliberalismo para agravar sua condenação, porque com esse neologismo faz-se com que pareça reincidente num velho erro, o surpreendente fervor dos presentes demonstrou que consideram a doutrina em pleno apogeu, instalada mais no futuro que no passado. É fácil esquecer, em nosso país, em meio ao clima de repulsa que o rodeia, que o liberalismo triunfa hoje no mundo e na América Latina.
Impressionou-me a exposição do chileno Rojas, um ex-comunista que, em sua longa passagem pela Suécia, converteu- se à liberdade e cuja palestra se concentrou na denúncia do populismo como causa dos graves problemas que hoje enfrenta nada menos que a Europa, por essa espécie de “facilitário” em que caiu ao exagerar a ilusão do estado de bem-estar, por causa do qual os homens são tentados pelo enganoso direito de receber tudo grátis, sem a contrapartida do trabalho e do esforço. Uma deformação a que Rojas atribuiu as enormes dificuldades que hoje enfrenta o Velho Continente. Aguinis dedicou sua exposição ao “neopopulismo”, mais que uma doutrina uma forma contemporânea de demagogia que já havia denunciado, com uma linguagem surpreendentemente “moderna”, o próprio Aristóteles.
O ex-presidente Uribe foi recebido com extraordinários aplausos porque, tendo-se alçado em seu país contra todas as formas de demagogia, numa atitude supostamente suicida, cansou-se de ganhar eleições. Um parágrafo à parte merece o historiador Enrique Krauze, discípulo de Octavio Paz e autor de um livro notável e recente, “Redentores”, no qual descreve a patologia de uma série de caudilhos latino-americanos, de Eva Perón a Che Guevara e de Fidel Castro ao próprio Chávez. Todos fundaram sua atração na ideia semirreligiosa com que se apresentaram ante o povo latino-americano como os novos profetas, os novos “redentores” de uma salvação que nunca chegou nesse novo mundo que se caracteriza, ao contrário, pela eficiência e competitividade.
A chave do êxito de uma ideologia consiste em convencer os contemporâneos de que nela pulsa o futuro. Assim se expandiu por décadas o marxismo quando difundiu a ideia de que o futuro pertence ao socialismo. Através dessa imagem “redentora”, o marxismo pôde condenar o liberalismo como seu próprio passado, como reacionário. Segundo essa premissa, que se impôs entre nós, ser liberal era ser “anti-histórico” e ser socialista era ser progressista. Mas a reunião de Lima difundiu entre seus participantes um entusiasmo de sinal invertido, já que o que prova o mundo moderno, não com ideologias mas com fatos, é que o futuro começa a coincidir cada dia mais com a liberdade política da democracia e a liberdade econômica da iniciativa privada. Esta dupla convicção brilhou na reunião de Lima.
Se esta é a perspectiva histórica que deveria caracterizar a Europa e a América, não só à luz de seus inegáveis resultados mas também à sombra dos penosos fracassos do coletivismo, que começou a naufragar na União Soviética para culminar em todas as sociedades submetidas ao estatismo, é porque o papel principal do Estado nas sociedades modernas é estimular a concorrência política entre os partidos e a concorrência econômica entre as empresas. Que lugar então ocupam hoje na caravana das nações o chavismo e o kirchnerismo? Onde estamos os argentinos sob a condução de Cristina Kirchner, dona de 54% dos votos? Estamos na vanguarda ou na retaguarda da história? Estamos acompanhando o mundo ou isolados? O grande problema que enfrentamos os argentinos hoje talvez não resida em nossos recursos, mas em nossas mentes, que continuam confundindo o passado com o que chamam de “futuro” e um “futuro” que ainda chamam de “passado”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Comentários são sempre bem-vindos, desde que se refiram ao objeto mesmo da postagem, de preferência identificados. Propagandas ou mensagens agressivas serão sumariamente eliminadas. Outras questões podem ser encaminhadas através de meu site (www.pralmeida.org). Formule seus comentários em linguagem concisa, objetiva, em um Português aceitável para os padrões da língua coloquial.
A confirmação manual dos comentários é necessária, tendo em vista o grande número de junks e spams recebidos.