Continuando meu trabalho de escavação arqueológica em trabalhos antigos, para fazer uma lista dos textos relativos à política externa e relações internacionais do Brasil, deparo-me, de vez em quando, com alguns textos, sob forma de entrevista ou questionário, que foram respondidos bilateralmente e permaneceram "escondidos" desde então. Não tenho nenhum motivo para mantê-los reservados ainda, inclusive porque eles reproduzem exatamente o que eu pensava no momento da elaboração. As circunstâncias e a conjuntura podem ter mudado, fatos novos podem desmentir alguns dos argumentos, mas me parece útil expor aqui os textos, para ver o que se mantém e o que se tornou perempto. O texto abaixo foi para uma dissertação de mestrado numa universidade do sul do Brasil.
Entrevista sobre Política Externa no Governo Lula
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, em 7 de maio de 2005
1. Qual sua visão sobre a OMC de
2000 até os dias atuais?
Em 2000, a OMC, que já tinha completado cinco anos de existência,
tinha sofrido um revés, com o fracasso da conferência ministerial de Seattle,
nos EUA, em novembro de 1999. Esse fracasso, assim como outros percalços que
ela possa ter tido nesse periodo de dez anos desde sua inauguração, não se deve
propriamente à OMC, e sim ao aspecto político do comportamento dos países
membros. Com efeito, a organização não pode, ela mesma, determinar suas
orientações e ênfases em matéria de liberalização do comércio internacional e
de criação, consolidação e respeito das normas relativas ao sistema
multilateral de comércio, como é o seu mandato constitutivo. Para isso, ela
depende da cooperação e da colaboração dos próprios países membros, que têm a
faculdade de fazer avançar ou deixar paralisados os trabalhos que a OMC conduz,
seja na administração dos acordos existentes, seja na negociação e
implementação de novos acordos. Se os países membros são pouco cooperativos,
seu trabalho ficará ipso facto paralisado. Se eles decidem avançar, ela
consegue, então cumprir seu mandato e seus ideais.
Em todo caso, minha visão sobre a OMC é eminentemente positiva,
pois ela consegue, ainda que a duras penas, fazer avançar, mesmo modesta e
lentamente, a causa da liberalização do comércio internacional. Já em novembro
de 2001, por exemplo, ela conseguir fazer aprovar na ministerial de Doha, um
mandato para a atual rodada de negociações, que incluia a discussão sobre
alguns dos temas mais importantes, e difíceis, do sistema multilateral de comércio,
como podem ser os das práticas de subvenção à produção e exportação de produtos
agrícolas, ademais da continuidade do trabalho em matéria de serviços,
anti-dumping, investimentos e outros mais.
A ministerial de Cancun, no México, em setembro de 2003, foi um
fracasso relativo, nãoa tanto devido ao capítulo agrícola – no qual o
Brasil atuou de modo inteligente, ao constituir o atual G-20, de países que se
opõem ao protecionismo e ao subvencionismo agrícolas –, mas mais devido a
problemas em outras áreas, como os chamados novos temas, ou a agenda de
Cingapura (investimentos, propriedade intelectual etc).
Nos próximos meses, isto é, no que resta de 2005 até a conferência
ministerial de Hong-Kong, em novembro, a OMC tem pela frente o desafio de fazer
avançar as negociações para completar a rodada Doha. Não acredito que haverá
tempo hábil para finalizar todos os capitulos da negociação, e como sempre
ocorrerá um mini-drama, nas vésperas da cúpula, e provavelmente durante a
própria, alguns progressos serão feitos, a duras penas, mas o exercício não
estará obviamente concluído. Provavelmente se chegará, em meados de 2006 ou
mais provavelmente ao início de 2007, a algum resultado sob a forma de acordos
complementares de liberalização em algumas áreas (como agricultura, mas ainda
assim parcial e insatisfatório do nosso ponto de vista), e de estabelecimento
de normas tentativas em outras áreas. Os países não mudarão muito o seu
comportamento obstrucionista, o que é obviamente uma pena, mas é compreensível
do ponto de vista político, tendo em vista o quadro habitual nesse gênero de
diplomacia.
2. Qual sua opinião sobre a
renovação do acordo brasileiro com o FMI e quais as conseqüências que este
acordo poderia trazer para o Brasil?
O governo brasileiro, justamente, depois de quatro acordos sucessivos,
em 1998, 2001, 2002 e 2003, decidiu, em março de 2005, não renovar, ou não
negociar um novo acordo com o FMI, ficando portanto livre das condicionalidades
associadas aos acordos precedentes (geralmente relativas ao atingimento de
metas fiscais, como o superávit primário no orçamento). Não tenho certeza se
teria sido melhor renovar o acordo existente, ou se, como decidido, não
extendê-lo ou negociar um novo. Ambas as soluções têm suas vantagens e
desvantagens. No caso da existência de acordo, trata-se de uma garantia de
linha de crédito em caso de necessidade, como uma nova crise financeira
internacional ou uma deterioração sensível das contas externas que colocasse em
risco nossa capacidade de pagamento das obrigações externas (juros da dívida,
amortização dos empréstimos contraídos, transferências de divisas por pagamento
de fatores e outras saídas de capitais).
Por outro lado, as contas externas do Brasil estão relativamente
em ordem atualmente, com superávit comercial amplo, o que permite cobrir o déficit
crônico dos serviços (e portanto das transações correntes) e outras saídas de
capital. Os investimentos diretos estrangeiros também estão sendo retomados, o
que é uma garantia adicional. Não havia, assim, necessidade, stricto sensu, de renovação do acordo.
Mas, o Brasil ainda possui algumas fragilidades, internas e externas, como a
grande dívida pública e a existência de déficit nominal no orçamento, mesmo com
acúmulo de superávits primários (que não chegam, entretanto, a cobrir os
pagamentos de juros da dívida pública).
Em síntese, um acordo com o FMI pode representar a garantia de
saldo disponível, em caso de necessidade, e sobretudo um aval sobre a qualidade
das políticas econômicas, mas ele também representa uma espécie de sinal de
alerta sobre a fragilidade de nossas contas externas. Em última instância, nós
mesmos é que devemos realizar esforços para colocar as contas públicas,
sobretudo as internas, em condições de sustentabilidade.
3. Qual o seu posicionamento a
respeito da política Externa do Brasil com o atual Presidente?
Trata-se, como o próprio governo proclama, de uma política ativa,
de uma diplomacia altiva. Apenas não tenho certeza de que todo esse ativismo se
dirige para o lado correto, pois que existe, em substituição à antiga “diplomacia
presidencial” do período FHC, uma espécie de “diplomacia partidária”, que
mobiliza todas as crenças, valores e princípios de política externa do PT, que
não necessariamente tem o melhor julgamento da realidade ou que não
necessariamente pratica a melhor política externa de que o Brasil precisa.
Essa política externa “partidária” é feita de um anti-imperialismo
instintivo, como corresponde a um partido esquerdista e ainda teoricamente
socialista como o PT, de um preconceito contra a globalização e o capitalismo
financeiro – como se o PT e mesmo o Brasil tivesse o poder de mudar certos
processos existentes no mundo atual – e feita de muitas ilusões quanto à
liderança, pelo Brasil, de outros países em desenvolvimento, sobretudo na
região mas também no chamado Terceiro Mundo, objetivando mudar o mundo, a
região e o próprio Brasil.
O PT e este governo mantêm certas ilusões quanto à mudança no
“eixo do poder mundial” e na “geografia comercial do mundo”, como várias vezes
proclamado. Para isso, o governo colocou dificuldades em algumas negociações
comerciais, sob o pretexto de preservar “espaços nacionais para políticas de desenvolvimento”,
que não se sabe bem quais sejam (mas que representam a continuidade do velho
estatismo econômico, que já conhecemos tão bem). Não tenho certeza de que essa política
feita de ativismo no mundo em desenvolvimento possa representar adequadamente
os interesses de uma economia avançada e diversificada como é hoje a brasileira.
4.Comparando a política e o
andamento do Brasil com FHC e agora, com Lula, o que o senhor acha que se está
levando mais em consideração? Prevalece ainda o pensamento de esquerda e de
direita?
Certamente, prevalece, infelizmente, esse maniqueismo de esquerda
e direita, o que diga-se de passagem nunca existiu muito dentro do Itamaraty.
Pode-se dizer que, em certo sentido, esse pensamento foi introduzido agora, a
partir de fora, com a assunção do PT a uma posição predominante na determinação
das principais linhas da política externa, o que realmente é uma pena, pois
diplomacia ideológica nunca combina bem com o interesse nacional.
No mais, creio a que a diplomacia brasileira tem mais traços de
continuidade do que de ruptura, que se exerce mais no estilo do que na
substância. Elaborei um trabalho no qual faço uma comparação das duas
diplomacias, justamente, cuja referência é: “Um
exercício comparativo de política externa: FHC e Lula em perspectiva”,
publicado na revista Achegas (Rio de
Janeiro: nº 17, 12 de maio de 2004; ISSN 1677-8855;
link: http://www.achegas.net/numero/dezessete/paulo_r_a_17.htm),
depois expandido para “Uma política externa engajada: a
diplomacia do governo Lula”, publicado na Revista
Brasileira de Política Internacional (Brasília: IBRI, ano 47, nº 1, 2004,
ISSN: 0034-7329; pp. 162-184).
Paulo Roberto de Almeida
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