Um texto pessoal, corajoso, objetivo (a despeito de alguns adjetivos) e sobretudo sensato, sobre o estado atual do Mercosul, se de estado se trata...
Paulo Roberto de Almeida
Os negociadores dos tratados constitutivos do Mercosul foram, em seu
tempo, criticados por agir com timidez e não adotar todos os
instrumentos econômicos, políticos e sociais em vigor na Europa, modelo
para muitos do que deveria ser um programa de integração regional. Para
os açodados e românticos "integracionistas latino-americanos" de
plantão, o Mercosul deveria ter, desde logo, instituições
supranacionais, um Parlamento e um Tribunal, apesar do caráter
inter-governamental do agrupamento que surgia e das disparidades entre
as economias que o integravam. Da mesma forma, insinuavam a conveniência
da constituição de fundos para o desenvolvimento regional (nos moldes
do atual FOCEM), sem que tivessem sequer concluído, com êxito, essa
missão dentro do seu próprio território nacional. Essa corrente
maximalista sempre deu margem a uma avaliação do Mercosul como um
projeto institucionalmente incompleto, prejudicado por um "déficit
democrático" e voltado exclusivamente para a expansão do comércio
intra-regional ("neoliberal" era o rótulo mais simpático que merecia
desde essa ótica). Como esses críticos não buscassem alcançar uma
inserção competitiva do país no mercado internacional - preocupados que
estavam e estão em apenas proteger setores ineficientes em suas
respectivas economias - desmereciam os efeitos positivos da
complementariedade regional e seu impacto na otimização dos custos de
produção entre os países integrantes do Tratado de Assunção. Para eles, o
Mercosul deveria ser o "passe de mágica" que nenhuma das economias
soube produzir isoladamente. O fato de que o Brasil era (e é) a maior
economia do grupo lhes dava (e dá) uma sensação inebriante de
auto-confiança e poder, que justificaria que assumíssemos, desde logo,
uma posição de "benefactor" (proposta revestida de uma impecável
retórica de solidariedade regional, alicerçada nos ambiciosos propósitos
embutidos no parágrafo único do artigo 4 de nossa Constituição).
O Mercosul, tal como projetado, era (e é) um esquema de integração
essencialmente econômico e comercial (nisso concordamos). Sua crescente
metamorfose em instrumento político (simbolizada pela adoção da
"claúsula democrática", em 1996) e posteriormente social (com a
Declaração Sociolaboral de 1998, depois ampliada pelos programas
introduzidos a partir do Governo Lula, como o FOCEM) revelam não sua
evolução, mas sua dificuldade em consolidar os propósitos originais dos
"founding fathers" (claramente perceptíveis na proliferação de acordos
de restrição voluntária, na ampliação das listas de exceção à TEC e em
outras transgressões dos receituários do livre comércio e da união
aduaneira). Forçoso é admitir também que o Mercosul não foi muito
pródigo na assinatura de acordos com países fora da região (o único
concluído, com Israel, está longe de integrar a lista dos "dez mais" do
comércio exterior dos Quatro). A culpa, em geral atribuída a nossos
sócios, é também brasileira, em função de nossas limitações negociais,
por pressão de setores internos vulneráveis à concorrência externa.
Nessas condições, o Mercosul já vinha perdendo progressivamente
consistência conceitual e funcionalidade para os interesses nacionais.
As alterações introduzidas no desenho original do Tratado de Assunção,
com a adoção de medidas de promoção do desenvolvimento regional voltadas
para a superação das assimetrias regionais (eufemismo para a adoção de
instrumentos para reduzir as desigualdes econômicas entre seus membros),
obrigará o país a acompanhar o ritmo de comboio imposto pelas
economias menos desenvolvidas (mormente agora, quando se anuncia a
próxima incorporação de Equador, Bolívia, Guiana e Suriname, países
cujos interesses econômicos estão longe de ser coincidentes com os do
setor produtivo nacional). O Mercosul - abalado juridicamente de morte
pelo ingresso da Venezuela ao arrepio da lei e politicamente pela
crescente presença bolivariana (com todas as implicações em termos de
relacionamento externo) - deixa definitivamente de ser um instrumento
para o desenvolvimento econômico e comercial e passa a se constituir em
um grande programa assistencial brasileiro. Sua ampliação, nessas
condições, o torna cada vez mais um "alter ego" da UNASUL, cujas
identidades começam a se confundir. A estabilidade política, econômica e
social na região é um indiscutível e legítimo objetivo de nossa
política externa, mas ao adotar as medidas destinadas a alcançar esse
propósito via organismos multilaterais, perde-se o controle das
iniciativas e submete-se o país a uma camisa de força indesejada.
Além disso, embarcamos em uma iniciativa já malograda na Europa,
conforme está nitida e dramaticamente comprovado pela crise da eurozona e
pelo reiterado desperdício de recursos (até a pouco quase infinitos) em
regiões como o Mezzogiorno italiano (a Sicília ameaça neste momento
"default" e compromete os planos de austeridade do governo Monti).
Décadas de aplicação de uma cornucópia de recursos comunitários na
Europa mediterrânea produziram apenas economias vulneráveis, destituídas
de sustentabilidade própria. Fica assim exposto à luz do dia o
artificialismo do sistema assistencial a essas economias (via fundos
estruturais que nunca promoveram um desenvolvimento real, nem a
competitividade desejada). Os grandiosos investimentos na
infra-estrutura dessas regiões são hoje um grande monumento à
prodigalidade em tempos de bonanza. A rede viária implantada é
totalmente descolada da existência de atividades econômicas rentáveis
(serviram apenas aos interesses das grandes empreiteras locais).
A crise atual da eurozona expõe assim os limites do solidarismo
econômico e revela o irrealismo das propostas de igualitarismo regional.
Onde estão as novas Alemanhas? (esta, afetada pelo mau desempenho das
economias da região, está inclusive ameaçada de perder seu grau de
investimento AAA). O bloco europeu também teve esgarçada sua solidez
pela admissão apressada, em caráter político, de países que não haviam
concluído as reformas internas necessárias para atender às exigências
técnicas de seus protocolos de adesão, de acordo com os requerimentos
europeus. É como se a Alemanha tivesse que incorporar novas Alemanhas
Orientais, com seus modelos industriais ineficientes, sobreemprego e,
muitas vezes, uma generosa legislação social .
O Brasil deveria fazer uma leitura correta desses acontecimentos, de
forma a não repetir os erros acumulados além-mar. E também repensar o
Mercosul. A TEC está hoje pulverizada, como resultado de repetidas
perfurações, como reflexo das distintas estruturas produtivas e do
atendimento a nossos setores menos competitivos, carentes de proteção.
Por outro lado, o custo dos novos programas regionais será crescente e
recairá sobre o Brasil (ainda inebriado com os superávits minguantes de
suas exportações de "commodities" agrícolas e minerais). Os novos
mercados - mesmo quando significativos, como é o caso da Venezuela -
estariam ao alcance das exportações brasileiras via acordos de livre
comércio. A estrutura produtiva dos novos sócios torna improvável sua
adoção da TEC do Mercosul, tal como hoje definida, o que faz supor a
apresentação de repetidos pedidos de revisão. A Venezuela é um país
essencialmente importador (sobretudo nas condições atuais, em que sua
competitividade está ameaçada por sucessivas estatizações). O que banca
suas compras externas é a conta petróleo. Supor que esse país adotará
uma tarifa externa compatível com os interesses brasileiros é
ingenuidade ou má fé. Os demais (Equador, Bolívia, Suriname e Guiana)
representam economias menos dinâmicas do que a paraguaia (marcada por
sua vocação estritamente comercial até agora) e certamente estarão ainda
menos propensos a adotar uma TEC de inspiração brasileira, por razões
absolutamente compreensíveis (basta ver seu quadro produtivo interno).
A regressão do Mercosul a uma simples área de livre comércio - embora
politicamente onerosa - eximiria o Brasil de compromissos indesejados e
resguardaria nossos principais interesses (posto que a região absorve
boa parte das exportações brasileiras de maior valor agregado). Essa
medida liberaria nossos sócios (atuais e futuros) para eventuais acordos
com a China ou os EUA. No caso chinês, entretanto, suas exportações
tenderão - graças aos baixos salários ainda praticados e à
desvalorização de sua moeda - a superar, com espetaculares saltos
olímpicos, a barreira tarifária do Mercosul .
No Brasil, a China já tem livre trânsito nos setores de
eletroeletrônicos, componentes para a indústria e bens de capital, que
integram o esforço produtivo nacional (nesse caso, valendo-se de nossas
próprias exceções à TEC e a nossos ex-tarifários). Supõe-se que o mesmo
ocorra nos demais sócios, que certamente se valem de suas exceções para
isentar de tarifas os produtos não produzidos( que são em maior número
do que no Brasil). O impacto da eliminação da TEC não tenderia assim a
ser de grande monta e propiciaria ao Brasil, desvencilhado dos programas
multilaterais assistencialistas, produzir seu Plano Marshall para a
região com nome próprio (e não através de recursos postos à disposição
de uma burocracia regional voltada para interesses não necessariamente
coincidentes com os nossos). O principal ator, na nova configuração,
seria o BNDES que, em última instância, é quem paga a conta (para não
mencionar o contribuinte brasileiro). Passaríamos assim a ter uma
liberdade de ação e de critérios mais condizente com os interesses
nacionais.
Renato L. R. Marques - 1/8/2012
LI-Letras Internacionales
ResponderExcluir"LA VENEZUELA DE CHÁVEZ (II)"
*Carlos Fedele
http://www.ort.edu.uy/facs/boletininternacionales/contenidos/160/fedele160.html
Vale!