Bom dia Paulê,
Estou lhe escrevendo vinte
anos à frente do seu tempo, no que é, obviamente, apenas um recurso literário
para falar de várias coisas destas últimas duas décadas, como uma espécie de
balanço, e de especulação sobre o futuro, o que todos temos o direito de fazer.
Como você vai receber, vai ler, ou reler, esta carta daqui a exatas duas
décadas (vou ajustar minha agenda eletrônica para isso, como uma garrafa
atirada ao mar, e programada para chegar ao seu porto, à sua praia, na data
exata que vai acima), posso esquecer as questões do presente e me concentrar no
que será o seu mundo em 2032. Feita esta introdução técnica, vamos ao que
interessa.
Bom dia, portanto!
Em 2032, você já está
aposentado há mais de dez anos e suponho que você ainda esteja vivo, se a
medicina e a sua saúde assim o permitirem. Enfim, esta carta só tem sentido se
você estiver vivo e com plena capacidade de trabalho ainda, a despeito da idade
avançada. Se não fosse assim, eu teria feito esta carta apenas uma década mais
à frente, quando o Brasil estiver completando dois séculos de independência, e
você tendo se aposentado apenas dois anos atrás. Não importa, vamos manter a ficção
de que sua boa disposição para o trabalho e as tecnologias médicas o permitirão
chegar a 2032 e que ali começa nossa aventura prospectiva. O que serão, como
serão o mundo, a América Latina e o Brasil, vinte anos mais a frente, e o que
eu terei feito, em face e no contexto dessa interação, no intervalo que nos
separa do ponto de destino?
Sei que minhas capacidades
prospectivas são limitadas, ou até deficientes, a julgar pelo que pude “prever”
nos últimos dez anos. Mas vou tentar mesmo assim. Em 2002, por exemplo, eu
tinha absoluta certeza de que os companheiros que então chegavam no poder iriam
praticar uma política econômica conservadora, ou de corte neoliberal, como eles
depreciativamente se referiam às orientações então em curso no governo
anterior. Não estou inventando nada agora: está tudo documentado em meu livro A Grande Mudança e não mudaria uma
palavra do que escrevi ainda antes da eleição de Lula (ver aqui: http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/58GrdeMudanca.html). Nisso fui presciente,
embora esperasse alguma deterioração maior da posição fiscal, em vista dos
previsíveis gastos sociais. Não esperava, está claro, a amplitude dos
“investimentos” sociais, embora esperasse todos os benefícios feitos a
banqueiros, industriais e outros membros da elite (velhas e novas, oportunistas
ou não), e já previa, de certa forma, o aumento da carga fiscal, via tributos
diretos ou indiretos. Meu grande erro – mas creio que esse foi de todos – foi
acreditar que as alegações sobre a “ética na política” eram verdadeiras, e
nisso pratiquei a mesma ingenuidade de muitos observadores: o governo dos
companheiros revelou-se o mais corrupto já conhecido na história do Brasil, e
isso porque o partido – habituado a velhas práticas bolcheviques da pior
espécie – já era inerentemente corrupto em sua formação e em suas práticas
políticas.
Independentemente dessas
previsões, mais ou menos certas, o fato é que o Brasil conheceu certos
progressos sociais, mais à custa de redistribuição de renda e de estímulo ao
consumo do que de investimentos produtivos, e uma grande involução política,
institucional e educacional, com um aumento inédito da corrupção em todas as
esferas, e uma deterioração sensível das instituições públicas, a despeito
mesmo da relativa profissionalização das carreiras de Estado (mas convertidas
numa classe de mandarins que se apossou do Estado como coisa própria). Os
mesmos dez anos que vão de 2002 a 2012 foram minha travessia do deserto, em
todo caso muito produtivas em termos de diversos trabalhos acadêmicos, alguns
livros e muitos artigos publicados, sem contar as centenas de working files, aguardando uma
oportunidade para emergir do pipeline da produção intelectual. Os dez anos
seguintes, até 2022, foram os mais felizes no plano pessoal, com uma produção
ainda mais intensa, embora o Brasil tenha avançado muito pouco, em termos
educacionais e institucionais, para grande tristeza minha.
E o que fiz depois, até
chegar neste momento, vinte anos à frente desta carta, dez anos além de meu
retiro profissional, e bastante mais maduro e satisfeito comigo mesmo? Fiz
aquilo que sempre fiz, em toda minha vida, talvez em maior volume e extensão,
sempre quando possível: li, intensamente; escrevi, compulsivamente; publiquei,
no ritmo possível, dado pelas editoras ou permitido pelas novas formas de
comunicação; ensinei, bastante, o tempo todo, diretamente e à distância, para apenas
um punhado de alunos presenciais, a cada vez, mas provavelmente para milhares
de outros, desconhecidos, à distância, sem sequer saber quem tomava
conhecimento de meus materiais didáticos, dispersos nas correntes sempre
multiplicadas da internet; viajei, a cada oportunidade oferecida pelos
compromissos acadêmicos e visitei dezenas de novos lugares, por puro interesse
cultural e curiosidade propriamente turística; também pratiquei gastronomia,
das melhores, sempre acompanhando as viagens e desfrutando de novas cidades,
grandes e pequenas, nos mais diversos cantos do planeta, que percorri como
poucos que conheço.
Chegamos, pois, a 2032,
Paulê, e você faz agora a reconsideração dos anos que se passaram, e passa a explicar,
ao seu alter ego de 2012, como o mundo, a região, o Brasil se encontram, no
estado que é o deles, o que eles são, neste período que já assiste ao meu
ocaso. Vou tentar ser apenas sugestivo, uma vez que trabalho com tendências,
não com certezas ou determinações obrigatórias.
O mundo não é muito
diferente do que era no tempo em que foi pensada esta carta, embora ele certamente
seja mais rico, mais seguro e mais estável, no plano da segurança e da paz
internacionais. Os EUA e China, e as potências menores (ou seja Rússia e o que
sobrou das grandes do século 20) jamais vieram a se enfrentar numa guerra, que
necessariamente seria ou global, ou por atores interpostos (ou seja, local, ou
“setorial”). Eles sempre mantiveram muitos pontos de conflito entre eles, e
continuaram a gastar enormes somas com sua preparação militar, mas foram gastos
inúteis, pelo menos no cenário traçado pelos seus estrategistas. Todo esse
equipamento foi usado contra “vilões pés-de-chinelo”, se ouso dizer, ou seja,
os ditadores remanescentes do planeta, uma espécie em quase extinção, pelo
menos aqueles realmente malvados, não os ditadores de opereta, como os temos na
América Latina, ou aqueles ridicularizados por Sacha Cohen no cinema. A própria
China já enfrentou crises políticas, nos últimos 20 anos, e se encaminhou muito
lentamente para um tipo de “democracia”, muito deficiente, é verdade, mas ainda
assim, não mais o monopólio absoluto do PCC (enfim, um pouco parecida com
aquela “democracia de fachada” que Max Weber apontava no caso do governo provisório
saído da revolução de fevereiro de 1917, na Rússia).
Os países da América
Latina terão melhorado um pouco, não muito: políticos corruptos, bandidos,
traficantes, continuarão a frequentar o cenário, mas não mais dominarão países
inteiros, como ainda ocorre atualmente. Infelizmente, a educação e a
equalização de chances terão progredido muito lentamente em certos países,
entre eles o Brasil, graças às políticas absolutamente erradas que adotamos
durante o reinado dos companheiros (que pode se prolongar bem mais do que o
desejável, em virtude da mediocridade da oposição política, ou seja, das forças
centristas, para lidar com um partido neobolchevique a vocação totalitária).
Não se iluda, portanto,
Paulê, você terá passado os vinte anos que o separam desta data exatamente na
posição em que estava em 2012: em minoria absoluta no país e na região, lutando
contra a mediocridade intelectual, contra a erosão da moralidade na vida
política, contra a indigência intelectual (acho que o segundo termo não se
aplica) na academia, contra os mandarins do Estado extorsivo, ou seja, em
verdadeiro bunker isolado, em uma espécie de quilombo de resistência contra os
novos bárbaros. Não fique triste, Paulê, seu trabalho será reconhecido por
alguns poucos, um pequeno bando de libertários que acredita naqueles velhos
valores que não mais prevalecem – talvez nunca tenham prevalecido – entre nós,
o da honestidade intelectual, o da tolerância política, o da democracia sem
adjetivos, o da responsabilidade individual, do mérito e do esforço próprio.
Tudo isso vai ser muito difícil de defender, mas eles acabarão prevalecendo, um
dia... Talvez não para que você possa contemplar uma sociedade que você
gostaria de ver implantada no Brasil, mas vai ocorrer. Seu trabalho é o de não
desistir, persistir, lutar, resistir, continuar...
Os vinte anos decorridos
desde então terão sido os melhores de sua vida, Paulê, e você estará orgulhará
disso, mesmo sem glórias e sem vitórias. A paz com sua consciência, o fato de
estar bem consigo mesmo, a certeza de que você estará lutando pelas boas causas
são suas maiores recompensas.
Fique tranquilo e
trabalhe. Até 2032, quando você abrir esta carta novamente...
Paulo Roberto de Almeida
[Brasília, 27 de agosto de 2012; revisto em 30/09/2012]
Um comentário:
Conheço este recurso literário de algum lugar... Lindo texto, verdadeiro e absolutamente corajoso. Talvez, alguém em algum lugar, um dia queira escrever sobre o senhor, professor. Talvez, alguém já escreva...Quem sabe ?
Portanto, este texto será registrado para a posteridade, obviamente, respeitando os direitos autorais.
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