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segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Carta a mim mesmo, 20 anos à frente - Paulo Roberto de Almeida


Carta a mim mesmo, 20 anos à frente

Paulo Roberto de Almeida 

(Anywhere), 27 de Agosto de 2032


Bom dia Paulê,
Estou lhe escrevendo vinte anos à frente do seu tempo, no que é, obviamente, apenas um recurso literário para falar de várias coisas destas últimas duas décadas, como uma espécie de balanço, e de especulação sobre o futuro, o que todos temos o direito de fazer. Como você vai receber, vai ler, ou reler, esta carta daqui a exatas duas décadas (vou ajustar minha agenda eletrônica para isso, como uma garrafa atirada ao mar, e programada para chegar ao seu porto, à sua praia, na data exata que vai acima), posso esquecer as questões do presente e me concentrar no que será o seu mundo em 2032. Feita esta introdução técnica, vamos ao que interessa.

Bom dia, portanto!
Em 2032, você já está aposentado há mais de dez anos e suponho que você ainda esteja vivo, se a medicina e a sua saúde assim o permitirem. Enfim, esta carta só tem sentido se você estiver vivo e com plena capacidade de trabalho ainda, a despeito da idade avançada. Se não fosse assim, eu teria feito esta carta apenas uma década mais à frente, quando o Brasil estiver completando dois séculos de independência, e você tendo se aposentado apenas dois anos atrás. Não importa, vamos manter a ficção de que sua boa disposição para o trabalho e as tecnologias médicas o permitirão chegar a 2032 e que ali começa nossa aventura prospectiva. O que serão, como serão o mundo, a América Latina e o Brasil, vinte anos mais a frente, e o que eu terei feito, em face e no contexto dessa interação, no intervalo que nos separa do ponto de destino?
Sei que minhas capacidades prospectivas são limitadas, ou até deficientes, a julgar pelo que pude “prever” nos últimos dez anos. Mas vou tentar mesmo assim. Em 2002, por exemplo, eu tinha absoluta certeza de que os companheiros que então chegavam no poder iriam praticar uma política econômica conservadora, ou de corte neoliberal, como eles depreciativamente se referiam às orientações então em curso no governo anterior. Não estou inventando nada agora: está tudo documentado em meu livro A Grande Mudança e não mudaria uma palavra do que escrevi ainda antes da eleição de Lula (ver aqui: http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/58GrdeMudanca.html). Nisso fui presciente, embora esperasse alguma deterioração maior da posição fiscal, em vista dos previsíveis gastos sociais. Não esperava, está claro, a amplitude dos “investimentos” sociais, embora esperasse todos os benefícios feitos a banqueiros, industriais e outros membros da elite (velhas e novas, oportunistas ou não), e já previa, de certa forma, o aumento da carga fiscal, via tributos diretos ou indiretos. Meu grande erro – mas creio que esse foi de todos – foi acreditar que as alegações sobre a “ética na política” eram verdadeiras, e nisso pratiquei a mesma ingenuidade de muitos observadores: o governo dos companheiros revelou-se o mais corrupto já conhecido na história do Brasil, e isso porque o partido – habituado a velhas práticas bolcheviques da pior espécie – já era inerentemente corrupto em sua formação e em suas práticas políticas.
Independentemente dessas previsões, mais ou menos certas, o fato é que o Brasil conheceu certos progressos sociais, mais à custa de redistribuição de renda e de estímulo ao consumo do que de investimentos produtivos, e uma grande involução política, institucional e educacional, com um aumento inédito da corrupção em todas as esferas, e uma deterioração sensível das instituições públicas, a despeito mesmo da relativa profissionalização das carreiras de Estado (mas convertidas numa classe de mandarins que se apossou do Estado como coisa própria). Os mesmos dez anos que vão de 2002 a 2012 foram minha travessia do deserto, em todo caso muito produtivas em termos de diversos trabalhos acadêmicos, alguns livros e muitos artigos publicados, sem contar as centenas de working files, aguardando uma oportunidade para emergir do pipeline da produção intelectual. Os dez anos seguintes, até 2022, foram os mais felizes no plano pessoal, com uma produção ainda mais intensa, embora o Brasil tenha avançado muito pouco, em termos educacionais e institucionais, para grande tristeza minha.
E o que fiz depois, até chegar neste momento, vinte anos à frente desta carta, dez anos além de meu retiro profissional, e bastante mais maduro e satisfeito comigo mesmo? Fiz aquilo que sempre fiz, em toda minha vida, talvez em maior volume e extensão, sempre quando possível: li, intensamente; escrevi, compulsivamente; publiquei, no ritmo possível, dado pelas editoras ou permitido pelas novas formas de comunicação; ensinei, bastante, o tempo todo, diretamente e à distância, para apenas um punhado de alunos presenciais, a cada vez, mas provavelmente para milhares de outros, desconhecidos, à distância, sem sequer saber quem tomava conhecimento de meus materiais didáticos, dispersos nas correntes sempre multiplicadas da internet; viajei, a cada oportunidade oferecida pelos compromissos acadêmicos e visitei dezenas de novos lugares, por puro interesse cultural e curiosidade propriamente turística; também pratiquei gastronomia, das melhores, sempre acompanhando as viagens e desfrutando de novas cidades, grandes e pequenas, nos mais diversos cantos do planeta, que percorri como poucos que conheço.

Chegamos, pois, a 2032, Paulê, e você faz agora a reconsideração dos anos que se passaram, e passa a explicar, ao seu alter ego de 2012, como o mundo, a região, o Brasil se encontram, no estado que é o deles, o que eles são, neste período que já assiste ao meu ocaso. Vou tentar ser apenas sugestivo, uma vez que trabalho com tendências, não com certezas ou determinações obrigatórias.
O mundo não é muito diferente do que era no tempo em que foi pensada esta carta, embora ele certamente seja mais rico, mais seguro e mais estável, no plano da segurança e da paz internacionais. Os EUA e China, e as potências menores (ou seja Rússia e o que sobrou das grandes do século 20) jamais vieram a se enfrentar numa guerra, que necessariamente seria ou global, ou por atores interpostos (ou seja, local, ou “setorial”). Eles sempre mantiveram muitos pontos de conflito entre eles, e continuaram a gastar enormes somas com sua preparação militar, mas foram gastos inúteis, pelo menos no cenário traçado pelos seus estrategistas. Todo esse equipamento foi usado contra “vilões pés-de-chinelo”, se ouso dizer, ou seja, os ditadores remanescentes do planeta, uma espécie em quase extinção, pelo menos aqueles realmente malvados, não os ditadores de opereta, como os temos na América Latina, ou aqueles ridicularizados por Sacha Cohen no cinema. A própria China já enfrentou crises políticas, nos últimos 20 anos, e se encaminhou muito lentamente para um tipo de “democracia”, muito deficiente, é verdade, mas ainda assim, não mais o monopólio absoluto do PCC (enfim, um pouco parecida com aquela “democracia de fachada” que Max Weber apontava no caso do governo provisório saído da revolução de fevereiro de 1917, na Rússia).
Os países da América Latina terão melhorado um pouco, não muito: políticos corruptos, bandidos, traficantes, continuarão a frequentar o cenário, mas não mais dominarão países inteiros, como ainda ocorre atualmente. Infelizmente, a educação e a equalização de chances terão progredido muito lentamente em certos países, entre eles o Brasil, graças às políticas absolutamente erradas que adotamos durante o reinado dos companheiros (que pode se prolongar bem mais do que o desejável, em virtude da mediocridade da oposição política, ou seja, das forças centristas, para lidar com um partido neobolchevique a vocação totalitária).

Não se iluda, portanto, Paulê, você terá passado os vinte anos que o separam desta data exatamente na posição em que estava em 2012: em minoria absoluta no país e na região, lutando contra a mediocridade intelectual, contra a erosão da moralidade na vida política, contra a indigência intelectual (acho que o segundo termo não se aplica) na academia, contra os mandarins do Estado extorsivo, ou seja, em verdadeiro bunker isolado, em uma espécie de quilombo de resistência contra os novos bárbaros. Não fique triste, Paulê, seu trabalho será reconhecido por alguns poucos, um pequeno bando de libertários que acredita naqueles velhos valores que não mais prevalecem – talvez nunca tenham prevalecido – entre nós, o da honestidade intelectual, o da tolerância política, o da democracia sem adjetivos, o da responsabilidade individual, do mérito e do esforço próprio. Tudo isso vai ser muito difícil de defender, mas eles acabarão prevalecendo, um dia... Talvez não para que você possa contemplar uma sociedade que você gostaria de ver implantada no Brasil, mas vai ocorrer. Seu trabalho é o de não desistir, persistir, lutar, resistir, continuar...
Os vinte anos decorridos desde então terão sido os melhores de sua vida, Paulê, e você estará orgulhará disso, mesmo sem glórias e sem vitórias. A paz com sua consciência, o fato de estar bem consigo mesmo, a certeza de que você estará lutando pelas boas causas são suas maiores recompensas.
Fique tranquilo e trabalhe. Até 2032, quando você abrir esta carta novamente...

Paulo Roberto de Almeida
[Brasília, 27 de agosto de 2012; revisto em 30/09/2012]

Um comentário:

Anônimo disse...

Conheço este recurso literário de algum lugar... Lindo texto, verdadeiro e absolutamente corajoso. Talvez, alguém em algum lugar, um dia queira escrever sobre o senhor, professor. Talvez, alguém já escreva...Quem sabe ?
Portanto, este texto será registrado para a posteridade, obviamente, respeitando os direitos autorais.