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quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Universidade para o povo? - Simon Schwartzman


A aprovação, pelo Senado, do Projeto de Lei da Câmara 180/2008, que reserva 50% das vagas das universidades públicas e escolas técnicas federais para alunos que tenham cursado todo o ensino médio na rede pública, parece ser exatamente o que demandavam em 1961 os estudantes da Universidade Federal de Minas Gerais, entre os quais Vinícius Caldeira Brant, Theotônio dos Santos Jr., Ivan Otero Ribeiro, Herbert José de Souza (o Betinho) , Guido Antônio de Almeida, Antônio Octávio Cintra e eu, em artigos publicados em Mosaico, a revista de nosso DCE.  Dizíamos então que era necessário “abrir as portas da Universidade para o povo e, em toda parte, lutar por aquilo que é do povo. Democratizar o acesso ao ensino, mas reformular completamente sua estrutura, devotá-la à pesquisa criadora, instrumento de formação de uma cultura popular. Cultura popular que consistirá, para as classes exploradas, na consciência de sua destinação histórica. Até hoje a cultura tem consistido na contemplação do mundo. Posta a serviço do homem, erigida em consciência popular, ela constituirá um ponto de partida para a luta de transformação social”.
Levou cinquenta anos, mas parece que finalmente conseguimos! O tema da revista eram as diferentes alienações e como superá-las, e ela está disponível aqui. O texto sobre a Universidade, além da ilustração inicial de Amaury de Souza, está ao final da revista,  na página 115.
Não se equivoca quem vê na idéia que tínhamos de Universidade a Tese 11 sobre Fueuerbach de Marx, que dizia que os filósofos (e, por extensão, os cientistas e intelectuais)  até hoje interpretaram o mundo, mas o que se trata é de transformá-lo. Estava embutida também a idéia de que a separação entre cultura popular e cultura científica e técnica era uma forma entre outras de dominação, e que desapareceria quando, finalmente, as portas das universidades, pela ação revolucionária de nós estudantes, fossem finalmente abertas para o povo.
Alguns de nossos companheiros de Mosaico já não estão entre nós, e eu não  poderia falar por ninguém, mas desde então entendi que não era bem assim. Entendi, por exemplo, que a diferença entre conhecimento especializado e conhecimento popular não é um simples artifício, mas o resultado de um processo complexo e difícil de formação, capacitação e especialização profissional que nem todos conseguem cumprir, e que não se pode resolver por um ato revolucionário como o que um dia Mao Tsé Tung tentou com sua famosa e trágica revolução cultural. Entendi também que a tentativa de Marx de romper a separação entre conhecimento e ação levaria, como levou na antiga União Soviética e seus defensores, à politização extrema do conhecimento e suas instituições, típica dos regimes políticos e das seitas totalitárias, com a degradação do trabalho intelectual. Entendi que sociedades modernas necessitam de universidades aonde deve predominar os valores do mérito e da qualidade do trabalho intelectual tanto de professores quanto dos alunos, e que o princípio de justiça da educação superior deve estar baseado na igualdade de oportunidades para o desenvolvimento da capacidade intelectual de cada um. Entendi que  as universidades não deveriam ser um instrumento de militância revolucionária, e sim um componente central da sociedades democráticas e abertas.
Isto não significa, no entanto, que o caráter elitista das universidades de então não fosse verdadeiro, como continua sendo até hoje. Basta olhar os dados de renda familiar dos estudantes de nível superior para constatar que eles provêm, em sua grande maioria, de setores de renda média e alta.  Em parte, isto tem a ver com os custos do setor privado, que hoje é responsável por 75% das matrículas do ensino superior brasileiro. Mas também com os processos seletivos tradicionais das universidades públicas, que tendem a selecionar, para os cursos mais procurados, os jovens que se beneficiaram de uma educação média de mais qualidade, graças aos recursos financeiros de suas famílias. Segundo os dados do Ministério da Educação, os investimentos diretos por estudante no ensino superior público e gratuito eram, em 2010, de 18 mil reais por estudante, em comparação com 3.580 gastos por estudante da educação básica. Este gasto tão elevado com a educação superior seria justificável se todo o ensino superior brasileiro fosse de alta qualidade, e se todos ou pelo menos a maior parte dos benefícios da formação de alto nível das universidades revertesse para a sociedade, e não para os alunos individualmente. Sabemos, no entanto, que a qualidade do ensino superior público brasileiro é muito variável, e que os diplomas servem muitas vezes para que as famílias consigam manter seus padrões de renda e acesso ao emprego, reproduzindo assim o círculo vicioso da desigualdade. Esta não é, seguramente, toda a história, mas é inegavelmente uma parte importante dela.
Diante desta situação, me parece perfeitamente razoável que o país decida, através de seus representantes no Congresso, que as universidades públicas passem a atender prioritariamente aos filhos das famílias de renda mais baixa, que estudam na rede pública de educação básica cuja qualidade é bastante precária, restringindo o espaço para os filhos de classe média e alta, que podem pagar por seus próprios estudos. O uso de critérios raciais na seleção dos alunos me parece absurdo, como já argumentei em outras partes, mas o critério de dar preferência aos oriundos de escola pública me parece bastante razoável, embora sujeito também a problemas. Aceita esta premissa, a questão que se coloca é como as universidades vão lidar com esta nova realidade de ter metade dos alunos admitidos por processos competitivos e metade admitidos sem maiores considerações de desempenho.
A maneira mais fácil de resolver o problema é postular que ele não existe. Nossas idéias de 1961 sobre a união da teoria com a prática, da pesquisa e da militância, e do desaparecimento da separação entre  o conhecimento das elites e do povo, assim como da separação entre o trabalho manual e intelectual,  não morreram de todo, e  podem ser reconhecidas no conceito de “politecnia” que circula entre certos meios no Brasil e que tem sido utilizado para justificar a transformação dos antigos centros federais de formação profissionais, os CEFETs, em Institutos Nacionais de Tecnologia, equiparados para todos os efeitos às universidades federais.
O suposto é que todas diferenças de formação desapareceriam se os alunos fossem expostos a uma educação de qualidade. Infelizmente, não há evidência de que isto seja assim, da mesma maneira de que não há evidência de que cursos de nivelamento ou reciclagem consigam superar, com facilidade, déficits de formação no uso da linguagem, de conceitos básicos de ciências e de uso de aritmética e matemática acumulados ao longo dos anos. Ao contrário, a evidência é que este tipo de nivelamento, embora não impossível, é extremamente caro e de resultados incertos. A opção mais adequada é oferecer uma variedade de formações profissionais para pessoas com níveis distintos de formação prévia, proporcionando tanto competências cognitivas como não cognitivas (relacionadas por exemplo à capacidade de trabalho em grupo, liderança, responsabilidade e motivação), permitindo ao mesmo tempo que as pessoas avancem em suas carreiras e formação conforme as características de cada um.
Sem isto, cursos mais competitivos em áreas como medicina ou engenharia ou nas faculdades de direito mais disputadas, que hoje oferecem por exemplo 100 vagas para os estudantes mais qualificados, passarão a ter somente 50, tornando muito mais difícil o acesso por esta via, e estimulando os alunos mais qualificados a buscar outras instituições, provavelmente no setor privado. Com 50% de alunos selecionados por mérito   de forma mais competitiva do que antes, e outros 50% por cotas, caberá às universidades decidir se ensinarão predominantemente para uns ou para outros (expulsando na prática a outra metade) se dividirão as turmas em duas, ou se seguirão apostando em que tudo será resolvido pelo conceito mágico de “politecnia”.
O encaminhamento correto desta questão seria criar instituições e carreiras diferentes para estudantes diferentes, tratando de atender com competência a cada setor, e criando mecanismos para permitir que os estudantes que queiram e possam circulem de um setor de formação tecnológica de curta duração, por exemplo, para outro mais acadêmico. A diferenciação é inevitável quando o ensino superior se massifica, e ela ocorre seja através de políticas deliberadas, seja por processos descontrolados em que cada um procura se salvar como puder, com prejuízo para todos.. Seria bom se fosse possível, no Brasil, combinar um número relativamente pequeno de instituições  de alta qualidade e seletividade com um número muito maior de instituições voltadas para a educação de massas, com diferentes níveis de exigência e projetos pedagógicos,  com políticas adequadas para tratar de forma diferentes as as questões de acesso e as questões de qualidade e excelência,  tanto no setor público quanto no privado. Não é este, no entanto, o caminho que parece que temos pela frente.

Um comentário:

Anônimo disse...

Abrir as portas para o povo ou para o pobre ?
Sim, pois na imagem, acima, há um negro ingressando na universidade, mas ele é pobre ? Ou é de classe média ? Ele ingressou por mérito na universidade ou através de cotas ?
Este negro - acima - está ingressando na faculdade por que é pobre ? Mas será que todo pobre teria mérito para ingressar em uma universidade? Está sugerindo cota para pobres ? Pobres sem mérito ?

Professor "PRA", não respondeu a pergunta no post anterior e ainda me deixou mais confusa...