Leviatã manda lembranças
Duas resoluções baixadas pela entidade (Resoluções 24 e 25, de janeiro de 2013), sob o escudo do combate aos crimes de lavagem de dinheiro, constituem o eixo da polêmica. Obrigam pessoas físicas ou jurídicas que prestem serviços de assessoria, consultoria, contadoria, auditoria, aconselhamento ou assistência em operações a fazer um cadastro de clientes e guardá-lo por cinco anos. A par da exigência de declarar bens ou serviços prestados no valor igual ou superior a R$ 5 mil, o "agente" que o conselho está criando é obrigado a "denunciar" seu cliente, caso, seis meses depois, este fizer nova operação que implique valor igual ou superior a R$ 30 mil. E se o prestador se recusar a entrar nesse "grupamento"? Será submetido a multa de até R$ 200 mil, cassação do registro profissional e vedação do exercício da atividade.
É mais que sabido que cabe ao Estado a tarefa de investigar, fiscalizar, controlar e combater todas as veredas que levam às ilicitudes, a partir do tráfico de drogas, de armas, lavagem de dinheiro, peculato, furtos e roubos. Passar o Brasil a limpo deve ser anseio contínuo dos órgãos públicos, o que demanda medidas e ações para defender a sociedade, investigar as máfias que agem nos intestinos do Estado e extirpar os tumores que corrompem os sistemas produtivos. A premissa se torna mais premente ante o paradigma do "puro caos", que o professor Samuel P. Huntington tão bem descreve em seu Choque de Civilizações: "Uma quebra no mundo inteiro da lei e da ordem, Estados fracassados, anarquia crescente, uma onda global de criminalidade, máfias transnacionais, cartéis de drogas, crescente número de viciados, debilitação generalizada da família, declínio na confiança e na solidariedade social em muitos países, violência étnica, religiosa e civilizacional e a lei do revólver predominando em grande parte do planeta". Tal moldura sugere a maximização de energias pelas estruturas que executam controles na frente das finanças. Mas qualquer ação ou medida há de se ajustar aos primados consagrados na Carta Magna.
Emerge, aqui, a primeira indagação: a ordem de obrigações e punições emanadas nas duas resoluções do Coaf fere ou não princípios da livre iniciativa e do sigilo de dados pessoais, garantidos na Constituição? O tributarista Raul Haidar lembra que apenas leis abrigam o poder de gerar obrigações e sanções. O princípio de que o direito deve se fundar na Constituição, jamais em medidas, decretos, resoluções e até em leis consideradas inconstitucionais, é um dos mais sagrados das Nações democráticas. Desvios e ilegalidades que ocorrem na vida institucional revelam muito sobre o estado civilizatório que o país atravessa. É o caso de enxergar um viés politiqueiro na planificação e execução de políticas de monitoramento do universo dos negócios, não se descartando a hipótese de que grupos, hoje imperando na administração pública, se esforçam para impor uma visão onipotente, onisciente e onipresente.
A onipresença fica patente na intenção escancarada de multiplicar os olhos do Big Brother, não deixando nenhum espaço fora de sua vista (George Orwell ficaria embasbacado); a onisciência se apresenta no modo unívoco de entender que o Estado encarna a moral, é a razão efetivada, um Todo ético organizado, na expressão de Hegel, não cometendo erros; e a onipotência se apresenta na atitude rude de rasgar a letra constitucional.
Mais uma observação. Ao contrário da cultura anglo-saxã, de rígida obediência a normas, a cultura tupiniquim usa frequentemente as curvas para se moldar aos climas impostos. Será que os inventivos controladores do conselho não imaginaram o cadastramento de operações falsas, malandragem para atrapalhar concorrentes? Perfis mafiosos ou de má-fé não produzirão denúncias apenas para embaralhar as cartas do jogo? É razoável a hipótese de que alguns, entre esses "agentes do Estado", agirão em causa própria, usando a norma para preencher conveniências pessoais. Na conta das probabilidades, não se descarta a beligerância entre amigos e clientes, quando uns descobrirem que outros apontaram o "dedo-duro".
Nessa moldura, entra bem a imagem de Sólon, um dos sete sábios da Grécia antiga, também conhecido como o pai da Democracia. Perguntaram a ele se as leis que outorgara aos atenienses eram as melhores. Respondeu: "Dei-lhes as melhores que podiam eles aguentar". A resposta do filósofo exprime moderação e clareza mental, valores que construíram a grandeza de Atenas. Ao longo da história da civilização, as Nações beberam nessa fonte de conhecimento, produzindo boas leis, plasmando bons princípios e sólidos valores sobre os quais repousam o edifício das liberdades e os fundamentos do Estado Democrático.
É o caso de indagar aos dirigentes do Coaf se as disposições que outorgaram aos brasileiros são condizentes com o império do Direito ou desenham a imagem do Leviatã, o monstro bíblico, cruel e invencível, plasmado pelo ideário absolutista de Thomas Hobbes. Talvez seja o caso de Suas Excelências refletirem sobre a lição de Montesquieu em seu Espírito das Leis: "A única vantagem que um povo livre exerce sobre outro é a segurança que tem de que o capricho de um ou de outro não lhe tirará seus bens ou sua vida. Um povo com esse bom senso seria tão feliz quanto um povo livre".
*JORNALISTA, É PROFESSOR , TITULAR DA USP, CONSULTOR , POLÍTICO, DE COMUNICAÇÃO , TWITTER: @GAUDTORQUATO
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