Medidas econômicas às vezes têm alma. O momento e a forma como são apresentadas transmitem sinais que vão além do escrito. Sinalizam as motivações e os receios do governo, fatores fundamentais para moldar as expectativas sobre a direção da política econômica que afetam as tão importantes decisões econômicas (investimento, consumo, etc.). Nem sempre o sinalizado vai na direção do pretendido. Nesta virada do ano testemunhamos dois anúncios: a elevação do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) para pagamentos e saques no exterior e a antecipação do resultado fiscal do governo central em 2013. O primeiro sinalizou escassez de dólares (sem que estejam de fato faltando) e o segundo, preocupação com a imagem da política fiscal.
Na sexta-feira 27 de dezembro, à noite, o governo encareceu as viagens internacionais dos brasileiros. Aumentou a alíquota do IOF de 0,38% para 6,38% para gastos em cartões de débito e pré-pagos, para saques de dinheiro no exterior e para cheques de viagem. O imposto sobre gastos em cartões de crédito já havia sido elevado antes. Vários turistas foram apanhados de surpresa nesse período do ano. Alguns se apressaram a trocar dinheiro por dólares antes de viajar para evitar o custo extra (não pagar alíquota total, nesse caso). Houve até falta temporária de dólares à vista para alguns viajantes. Sinalizou-se a intenção de diminuir os gastos dos turistas por meio de aumento de impostos. E, também, a preocupação com a piora do déficit externo do Brasil. Mas qual é a situação do déficit externo do País? Qual o papel dos gastos no exterior?
Medido pela conta corrente do balanço de pagamentos, o déficit somou US$ 81,1 bilhões, equivalentes a 3,7% do PIB, nos últimos 12 meses. Esse déficit tem aumentando nos últimos anos. Em 2012 o déficit foi de 2,4% e em 2011, de 2,1% (há menos de dez anos o saldo em conta corrente era positivo).
Um déficit entre 3,5% e 4% do PIB é de fato desconfortável, já que mostra nosso excesso de gastos em relação ao montante produzido localmente, que precisa ser financiado. Mas esse montante está longe de valores que internacionalmente estão necessariamente associados a crises cambiais. O problema é a piora nos últimos anos. Quais itens foram responsáveis pelo aumento do déficit?
Uma boa parte desse aumento foi resultado da queda do superávit da balança comercial (exportações menos importações), que passou de US$ 30 bilhões em 2011 para US$ 2,6 bilhões no ano passado. Um dos itens mais relevantes para a piora foi a queda do saldo comercial de petróleo e derivados em razão das dificuldades de oferta nesse setor. Parte dessa queda do saldo no setor será revertida, por ter caráter temporário (interrupções, adiantamentos).
Mas não foi só a balança comercial que piorou, já que houve aumento no déficit da balança de serviços e rendas (viagens internacionais, aluguéis, juros, lucros, dividendos). O déficit de serviços aumentou de US$ 38 bilhões em 2011 para US$ 48 bilhões nos últimos 12 meses terminados em novembro. Especificamente, os gastos dos brasileiros no exterior aumentaram de US$ 21,3 bilhões em 2011 para US$ 25,1 bilhões nos últimos 12 meses, quase US$ 4 bilhões a mais. É um aumento considerável, em menos de dois anos, embora não represente o grosso da piora da conta corrente.
À medida que aumenta, o IOF não deve alterar a dinâmica da conta corrente. Esta vai depender, de forma geral, de uma combinação de ajustes nos gastos (via políticas monetária e fiscal), da depreciação cambial (parte já ocorrida) e, principalmente, de medidas e reformas que aumentem a produtividade no Brasil, para torná-lo mais competitivo. No médio e no longo prazos, a abertura de mercados por meio de acordos comerciais será essencial.
O simbolismo de uma medida que atua nos sintomas (turistas comprando no exterior) pode dar a impressão de que os fundamentos não estão recebendo a atenção devida. Pode passar a ideia de que o problema atual é de perda de reservas, que requer medidas de controle cambial, pois interfere no cotidiano das pessoas. O problema é que, para alguns, a medida lembra, em escala e situação econômicas completamente distintas, as adotadas na Argentina, onde a perda de reservas já levou a alíquota do imposto sobre gasto no exterior a atingir 35%.
Mas não há falta de dólares no Brasil, já que as reservas cambiais alcançam US$ 376 bilhões. A intervenção do Banco Central no mercado de câmbio tem-se concentrado no mercado de derivativos, evidenciando que as pressões atuais não vêm da demanda para saques e remessas de dólares.
Uma das medidas que poderiam atacar o fundamento da piora das contas externas seria uma política fiscal mais restritiva, que simultaneamente reduzisse o excesso de gastos e facilitasse o financiamento externo pelo ganho de credibilidade. Nesse sentido, o anúncio do resultado fiscal de sexta-feira poderia passar esse sinal, principalmente por causa do cumprimento da meta do governo central.
O problema é que o cumprimento da meta do governo central não muda a tendência de queda do resultado do superávit primário consolidado, que deve ficar abaixo de 2% do PIB no ano passado. O resultado fiscal recorrente ainda é menor, dado que quase 1% a 1,2% do PIB do resultado veio de receitas extraordinárias.
O anúncio do cumprimento da meta foi antecipado em quase um mês para adiantar o bom resultado e melhorar as expectativas. Indica preocupação com a imagem da política fiscal e mostra desejo de ganhar credibilidade com a antecipação.
Tanto o aumento da alíquota do IOF quanto a antecipação do resultado fiscal mostram que o governo está corretamente preocupado com o desenrolar das contas externas e fiscais e com a necessidade de transmitir uma melhora futura. Mas é preciso adicionar medidas concretas que venham a alterar os fundamentos da dinâmica recente.
*Ilan Goldfajn é economista-chefe e sócio do Itaú.
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