O Brasil pelo método
confuso
Paulo Roberto de Almeida
A História do Brasil pelo Método Confuso
foi escrita por Mendes Fradique (na verdade o médico capixaba José Madeira de
Freitas) entre o final da Primeira Guerra Mundial e o início dos anos 1920,
tendo saído primeiro em caráter esparso na imprensa carioca, antes de virar
livro. Foi um imediato sucesso, mas mergulhou em seguida num injusto anonimato
até ser resgatado por uma edição bem cuidada a cargo da
historiadora Isabel Lustosa (Companhia das Letras, 2004).
Nesse
livro, Mendes Fradique recolhe os mais diversos elementos do non sense e da paródia para compor um
volume que deveria, atualmente, ser adotado como leitura obrigatória pelos
nossos dirigentes políticos e líderes de partidos, levados que são estes personagens
da vida pública a se tomarem muito a sérios no desempenho das funções de
comando do país. Trata-se, como o próprio título indica, de uma reconstituição
da história pátria com grandes doses de humor e uma inspiração elevada: ridicularizar
atos, fatos, atores e personagens imaginários e da literatura, tudo confundido
numa grande salada político-humorística. Em suma, trata-se de uma grande
leitura para os dias que correm, haja visto, por exemplo, o espetáculo das
alianças políticas que se desenham nas próximas eleições, juntando
gregos e goianos numa Babel de siglas partidárias.
Apenas
um exemplo da imaginação geográfica do nosso médico escritor: o Brasil, segundo
Mendes Fradique seria um dos países mais originais do globo. Do ponto de vista
astronômico, ele está situado no mundo da lua, tendo como limites geográficos:
“ao sul, o Borges de Medeiros; a leste, o cabo submarino; a oeste, o Acre. Não
tem Norte”. Será que ele continua sem norte? Como superfície, “foi sempre um
país muito superficial”. “O ponto culminante do Brasil é o Sr. Rui Barbosa”.
Quanto à economia, uma característica da época não parece ter mudado muito
ainda hoje: “O comércio mais ativo era o de princípios, de opiniões, de votos,
de caráter e até o de alma”.
De
fato, a julgar pelo comércio de apoios recíprocos que fazem hoje em dia os
políticos e os partidos, tudo leva a crer que o mesmo comércio de votos e de
opiniões que existia nos tempos da Velha República continua a marcar a vida
política brasileira. Mendes Fradique dizia que “toda a gente era negociante” e
que “até a própria Justiça tinha uma venda”. Os habitantes da terra tinham o
seu próprio decálogo, que comportava regras tão edificantes quanto estas: o
bocado não é para quem o faz, é para quem o come; ladrão que rouba ladrão tem
cem anos de perdão; em terra de cego, quem tem um olho é rei; venha a nós:
tudo, ao vosso reino: nada; o futuro a Deus pertence; água passada não move moinho,
e algumas outras desse gênero. Melhor que isso, só a Constituição do país, que
tinha uma grande lei: a do menor esforço. Quanto ao Conselheiro Acácio, ele
cunhou uma frase que bem parecia refletir a alma nacional (aliás até hoje):
“Todo cidadão tem o direito de cometer um ou dois desatinos antes de criar
vergonha”.
Incrível
atualidade a de Mendes Fradique. Ele lamentava as derrotas de Rui Barbosa em
todos os pleitos de que tinha participado o grande jurista e internacionalista,
achando, provavelmente, com o Conselheiro Acácio, que “cada povo tem o governo
que merece”. Mas, o senso da maioria traduz, talvez, um bom senso: “Presidente
da República, Rui Barbosa seria um mau chefe de Estado: não se monta uma
locomotiva para puxar um carrinho de mão”. Avançamos em matéria de artes e
técnicas, mas em matéria de tecnologia política estamos aparentemente
estacionados nos mesmos costumes que fizeram os jovens tenentes se levantarem
contra o presidente Artur Bernardes: a corrupção política e os conchavos
partidários, por cima dos interesses na Nação.
O
mais incrível e surpreendente é que o partido que mais prometeu, durante anos,
reformar costumes políticos pornográficos como a compra de votos, de almas e de
consciências, atira-se sem nenhuma vergonha às mesmas práticas vilipendiadas e
condenadas quando era oposição. Deve ser algum mal atávico desta terra, o que nos
remete, uma vez mais, a um dos argumentos preferidos de Mendes Fradique: “não
devemos deturpar amanhã o que podemos deturpar hoje”. As mesmas pessoas que
consideravam ser o congresso formado por dois terços de “picaretas”,
refestelam-se hoje em banquetes e conchavos com esses picaretas, elogiando-lhes
as qualidades e traçando planos conjuntos para a continuidade dos velhos
hábitos.
A
versão sarcástica e caótica da história do Brasil de Mendes Fradique não está
muito distante da versão real e alegadamente séria dessa mesma história. Ela
talvez até lhe fique atrás, em imaginação e colorido. Alguns personagens
parecem diretamente saídos das páginas deste livro dos anos 1920: o mesmo
oportunismo político, as mesmas frases ocas, as mesmas promessas vazias, o
mesmo surrealismo nas palavras e nos atos, enfim, a vida imitando a ficção.
Seria este o país Lavoisier?
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