PLANO REAL – 20 ANOS
Correio Braziliense – Entrevista Fernando Henrique Cardoso
Vinte anos depois, como o senhor avalia os resultados do Plano Real? Foram plenamente alcançados?
O Plano Real visava à estabilidade ao longo do tempo, com melhoria contínua das condições de vida do povo, não só de renda. Ou seja, melhores serviços públicos. Conseguimos manter a inflação sob relativo controle, iniciou-se um processo de recuperação de salários e de redução da pobreza. Mas a restruturação do Estado para assegurar serviços de melhor qualidade ficou pela metade. De modo que os objetivos foram apenas parcialmente alcançados.
O que ainda precisa ser feito para consolidar a estabilidade e o dinamismo da nossa economia, de modo a acelerar o crescimento do PIB sem criar desequilíbrios?
O principal para consolidar a economia é retomar o aumento das taxas de produtividade, olhando para o longo prazo. Não se precisa de um “arrocho”, mas de correção de rumos na política econômica (mais respeito às metas de inflação e maior controle nos gastos públicos). Mas, sobretudo, precisamos de mais e melhor investimento público e privado. Para isso, é conveniente restabelecer a confiança quebrada na continuidade de políticas sérias que favoreçam o crescimento, sem voluntarismos inúteis por parte dos governos.
O senhor acha que os governos posteriores ao seu trabalharam em direção a esses objetivos? Como?
Certamente os governos posteriores ao meu deram ainda maior impulso à melhoria de salários e à distribuição de renda. Verdade também é que, principalmente entre 2004 e 2008, beneficiaram-se enormemente da situação mundial favorável. Entretanto, paralisaram as reformas necessárias para assegurar o crescimento da produtividade e a oferta de bons serviços públicos, além da penetração de interesses partidários na máquina pública. Mais ainda, principalmente no governo atual, foi criado um clima de desconfiança em relação ao setor privado e foi levado ao máximo o lema lulista: para crescer, basta aumentar e o crédito público e o consumo. Resultado: estamos entrando em um período de estagflação, com baixo crescimento e um pouco de inflação. Se o rumo não for mudado, isso diminuirá os efeitos sociais positivos alcançados.
Fala-se na necessidade de um Plano Real 2, que envolveria as reformas que vêm sendo adiadas, como a da Previdência e a Tributária. Qual sua avaliação sobre isso?
Não creio que seja necessário um Real 2. Basta correção de rumos, o que será facilitado se o governo a ser eleito tiver uma visão adequada dos problemas do país e não se deixar levar por um intervencionismo errante.
Em algum momento o senhor achou que o Plano Real poderia não funcionar, seja durante a sua concepção, seja nos primeiros anos após sua implantação?
Sim. No começo, foi muito difícil convencer o Congresso e o país de que não se tratava de uma fraude eleitoreira. Em 1999, por outros motivos — crise internacional e irresponsabilidade da política nacional — temi que a estabilização naufragasse. Mas, como havíamos ajustado as contas públicas, acertando a situação de estados e prefeituras pré-falimentares, dinamizáramos a economia com algumas privatizações e com o funcionamento correto das empresas estatais, que deixaram de ser repartições públicas para funcionarem como empresas realmente públicas, e não apenas da burocracia estatal, o país pôde superar os momentos mais inquietantes para a estabilidade do Real.
"No começo, foi muito difícil convencer o Congresso e o país de que não se tratava de uma fraude eleitoreira”.
Correio Braziliense – Visão do Correio / Pela retomada do Plano Real
A passagem dos 20 anos da entrada em circulação do real, a primeira moeda brasileira digna de respeito em décadas, é motivo de comemoração, mas também de reflexão sobre a trajetória do plano que a criou. Emerge, então, a necessidade urgente de a sociedade exigir a retomada do processo de modernização do país, da qual a estabilização monetária foi apenas o primeiro passo.
E não foi um passo qualquer. Quando a nova moeda foi lançada, em 1º de julho de 1994, a alma do Plano Real já estava funcionando havia quatro meses, para espanto dos economistas da velha escola intervencionista, que falhara em pelo menos quatro tentativas de estancar a hiperinflação, incluindo a clássica trapalhada do tabelamento de preços.
Nada parecia capaz de derrotar o dragão inflacionário, até que vingou uma aposta na vontade da maioria das pessoas de se livrarem daquela doença. Elas tinham aprendido que a inflação corroía os salários, desequilibrava a economia e favorecia apenas os mais abastados, enquanto o governo permanecia praticamente imune a seus efeitos. A inflação era realimentada por um amplo sistema de correção monetária, que corrigia o preço das mercadorias, as aplicações financeiras e o valor dos tributos em velocidade bastante superior à dos reajustes salariais.
Enquanto isso, a inflação exibia índices escandalosos. Em 30 de junho de 1994, tinha acumulado, em 12 meses, aumento de 6.433%. O pulo do gato foi a criação de uma moeda virtual, a Unidade Real de Valor (URV), que conviveu com o combalido cruzeiro novo, mas não podia ser trocada por ele. Funcionou como referência. Encantou a todos não apenas a facilidade com que as pessoas comuns a compreenderam, mas também a rapidez com que a maioria da população aderiu ao plano.
A derrocada de uma inflação tão alta foi uma vitória da sociedade, que hoje não abre mão de preservá-la. Na esteira do real, vieram duros ajustes fiscais, o fim da moratória, o fim de alguns monopólios estatais e dos danosos bancos estaduais, a renegociação da dívida dos estados, o saneamento e a imposição de regras mais severas ao sistema bancário e a Lei de Responsabilidade Fiscal. Na política econômica, foram adotados os modernos sistemas de metas anuais de inflação e de superavit primário, além do câmbio flutuante.
A lista parece longa, mas contém apenas o começo de um processo de modernização do Estado. A retomada dos investimentos em infraestrutura, com a participação da iniciativa privada, a redução da burocracia, profunda reforma tributária e atualização da legislação e do sistema previdenciário, além de uma revolução na educação pública seriam os passos seguintes.
Eles poderiam ter sido dados tão logo se colheram os primeiros frutos da estabilização da moeda e do fim da pressão da dívida externa. Não só não foram dados, como se descuidou demais do equilíbrio fiscal, tão crucial para a saúde e a competitividade da economia quanto o controle da inflação. O 20º aniversário do real é, portanto, bom momento para a sociedade decidir se vai ou não retomar sua implantação.
Folha de S. Paulo – Obsessão por aumentar preços sobrevive
Memória inflacionária e baixo crescimento crônico persistem após 20 anos de estabilização com o Plano Real
Problemas pioram em momentos como agora, quando a inflação está elevada e exportações perdem fôlego
MARIANA CARNEIRO DE SÃO PAULO
"Em janeiro, todo mundo coloca os preços para cima. Todo ano sobe". Morando há sete anos no Brasil, o inglês Barry Baker, 43, notou que há algo diferente no país, que faz com que os preços subam de uma forma quase autônoma.
Passados 20 anos de estabilização e governos de dois diferentes partidos políticos (PSDB e PT), a memória inflacionária persiste. A obsessão coletiva por aumentar os preços olhando a inflação passada é herança do período de descontrole pré-Plano Real.
Mas sobrevive graças a contratos e acordos, mesmo informais, que preveem reajustes anuais de mensalidades, pedágios, remédios, salários, aluguéis e de um sem número de serviços no país.
Em 2013, segundo o Banco Central, quase um ponto percentual da inflação (5,91%) foi resultado de recomposições de reajustes passados.
"Essa é uma grande agenda incompleta do Real e cria uma característica única da economia brasileira. Por que a inflação é tão resistente aqui e não é assim em outros países? Porque eles não tiveram indexação", diz Luiz Roberto Cunha, da PUC-Rio.
Por efeito desse fenômeno, altas repentinas de preços provocadas por uma quebra de safra, consumo na China, seca ou chuvas se incorporam aos demais preços, por força da correção que segue os índices de inflação.
O IGP-M, índice que reajusta os aluguéis, por exemplo, tem como um dos componentes o preço do minério de ferro, cujo preço é definido no mercado externo.
"A cada choque de preços a inflação se propaga e alcança patamares mais elevados", diz Heron do Carmo, professor da USP e um dos formuladores do IPC da Fipe. "O Plano Real não acabou com a indexação. Apenas ampliou o prazo de correção de mês em mês para a cada ano."
O problema piora quando a inflação estaciona em um patamar mais elevado, como agora (6,3%). E recuperar a perda do poder de compra fica mais relevante para consumidores e empresários. "Essa inflação vira piso para reajustes futuros", diz Cunha.
E quanto mais elevado é o patamar da inflação, como agora, diz Cunha, maior é a procura pela indexação.
Outra debilidade que resiste --e é reconhecida pelos formuladores do plano-- é que o crescimento econômico não se sustentou, mesmo com a inflação controlada.
"Acho que está óbvio agora, como já me parecia em 1997. Não conseguimos definir uma estratégia de estabilização consistente com crescimento econômico vigoroso e equilíbrio externo", afirma Edmar Bacha, que integrou a equipe de economistas que desenvolveu e lançou o Real.
Para ele, o período de expansão de 2004 a 2011 (o mais bem-sucedido desde os anos 1970) foi turbinado pelos preços externos das exportações, que hoje perdem fôlego.
"Acabou a bonança, revelou-se novamente nossa economia enferma, em que convivem PIBinhos', inflação alta, deficit em conta-corrente e a desindustrialização."
A vacina, na sua opinião, é ampliar a abertura comercial da economia, elevando a concorrência e a eficiência das empresas brasileiras.
Albert Fishlow, especialista em Brasil e professor emérito das universidades de Columbia e da Califórnia, ressalta que há algo positivo na memória inflacionária. "Isso estabelece um limite de ação aos governantes e faz com que todos os partidos defendam a inflação baixa", diz.
O inglês Barry Baker notou também que o antigo país exótico da hiperinflação é hoje peculiar por motivos não menos daninhos.
Dono de uma escola de inglês, ele tenta fechar a empresa e migrar para um sistema mais simples e flexível de tributação, para pequenos empreendedores. Mas já sabe a burocracia do processo. "Para um país que quer crescer rápido, não pode ser assim."
Folha de S. Paulo – Desafio hoje é fazer 2ª rodada de reformas / Artigo / Persio Arida
Retomar a agenda da modernização é factível e certamente menos difícil do que foi implementar o Plano Real
Persio Arida é economista e um dos criadores do Plano Real. Atualmente, é sócio do banco BTG Pactual e chairman da área de Asset Management da instituição
Em 1984, dez anos antes do Plano Real, participei de uma discussão no MIT sobre o Plano Larida, apelido de uma proposta de estabilização que André Lara Resende e eu havíamos delineado em um trabalho acadêmico.
O Larida, baseado na criação de uma moeda indexada --a ORTN pro-rata, que no Plano Real viria a ser rebatizada como URV--, era ousado. A promessa era fazer a inflação cair abruptamente sem recorrer a congelamentos de preços ou artificialismos.
No seminário, um dos comentadores, importante economista norte-americano, externou uma dúvida que, naquele momento, me pareceu despropositada, mas que hoje, tantos anos depois, tornou-se atual.
Ao contrário dos demais, a preocupação dele não era saber se o mecanismo da moeda indexada funcionaria ou não. O plano tem boas chances de dar certo, disse ele, mas assegurar a estabilidade da moeda ao longo do tempo é outra história. Depois de a inflação ter caído de 45% ao mês para, digamos, 0,5% ao mês, que incentivo teria o sistema político para continuar fazendo reformas estruturais e controlar o gasto público?
O Plano Real, mais do que uma reforma monetária, foi concebido como um projeto de modernização do país.
As reformas estruturais e o controle das finanças públicas infundiram confiança na nova moeda.
A lista do que foi feito nos anos seguintes ao lançamento do plano é impressionante: o fim do monopólio estatal em petróleo e telecomunicações; o saneamento do mercado financeiro e dos bancos estaduais; o programa de privatizações; a criação de agências reguladoras; a Lei de Responsabilidade Fiscal; o início da reforma previdenciária e o tripé macroeconômico, entre outros.
Foram reformas de implementação dificílima, mas criaram as bases que sustentam a economia brasileira até hoje. O povo brasileiro abraçou o Real e deu o respaldo político às reformas para evitar a volta da hiperinflação.
Vinte anos depois, o desafio é outro. Temos uma inflação por volta de 6% ao ano, que mais alta seria se não houvesse o represamento das tarifas públicas, além dos preços de energia e gasolina.
Mas o risco da volta da inflação galopante do passado, que no seu pior momento foi mais de 80% ao mês, parece remoto e 6% ainda está dentro do intervalo de tolerância do sistema de metas.
Por outro lado, ao analisarmos os últimos dez anos, o gasto público, excluindo o pagamento de juros, tem crescido quase 8% ao ano em termos reais. O superavit operacional, que estava em 3,7% do PIB há dez anos, hoje, propriamente medido, beira 0,8% do PIB.
O que levaria esse processo a ser revertido? Qual o incentivo para o sistema político retomar as reformas estruturais e controlar a expansão dos gastos?
No Chile, a meta do sistema de bandas é de 3%, com apenas um ponto percentual de tolerância para mais ou para menos. Por dois motivos 3% é melhor do que 6%. Primeiro, porque a inflação piora a distribuição de renda, penalizando os trabalhadores e aposentados. Segundo, porque, como os preços não sobem todos ao mesmo tempo, quanto maior a inflação, mais difícil fica julgar se um bem ou serviço está relativamente caro ou barato.
Em outras palavras, a inflação atrapalha o funcionamento do sistema de preços relativos, o mecanismo fundamental de uma economia de mercado. Quanto mais alta a inflação, menos eficiente tende a ser a economia e, portanto, menor a taxa de crescimento.
Esses dois motivos são sempre verdadeiros.
Mas, na inflação brasileira de 6%, há um fator extra de distorção. O que segura a inflação em 6% são juros reais muito elevados.
Moeda estável de verdade não precisa de juros altos. Uma coisa é o Banco Central implementar uma política monetária restritiva por um motivo circunstancial, momentâneo; outra é ter que manter juros reais elevados permanentemente para conseguir estabilizar a inflação.
O real será uma moeda estável de verdade quando pudermos ter uma inflação de 3%, digamos, com taxas reais de juros muito mais baixas do que as que temos hoje.
Tivemos uma primeira rodada de reformas, fundamental para infundir confiança no novo padrão monetário e afastar o fantasma da volta da hiperinflação.
É chegada a hora de implementar a segunda rodada de reformas e controlar o gasto público visando a reduzir a inflação para, digamos, 3% ao ano e destravar a economia brasileira com juros reais baixos.
Muitas das distorções da economia brasileira --pouco investimento, deficiência de infraestrutura, falta de competividade, baixa alavancagem financeira, elevados spreads bancários, escassez de financiamento para projetos de longo prazo-- resultam de termos tido taxas de juros reais elevadas por décadas a fio. Com menos inflação e menores juros reais, o Brasil poderá escapar da armadilha do baixo crescimento em que se encontra.
Apesar do pessimismo que vigora hoje em dia, retomar a agenda da modernização é factível e certamente menos difícil do que foi implementar o Plano Real. Mas será que os nossos políticos saberão responder aos desafios do Brasil de hoje?
Folha de S. Paulo – Filhos do real
Geração que cresceu após a estabilização econômica, há 20 anos, chega ao mercado de trabalho com mais possibilidades de planejar sua carreira e seu futuro
INGRID FAGUNDEZ DOUGLAS GAVRAS DE SÃO PAULO
Geraldo Santos, 54, viveu dias difíceis nos corredores do supermercado Casa Santa Luzia, nos Jardins, em São Paulo. Remarcador de preços nos anos 1980, ele trocava etiquetas dos produtos várias vezes ao dia, enquanto se esquivava de clientes furiosos.
A cena era comum em mercados durante o período da hiperinflação, que fazia os preços variarem a toda hora.
Hoje, um dos filhos de Geraldo, Anderson, 29, é analista de importação na mesma loja e nunca precisou explicar a um cliente por que a comida estava mais cara.
Entre esses dois cenários está o lançamento do real, que ocorreu em 1º de julho de 1994, e conduziu a economia brasileira à estabilidade.
Anderson faz parte de uma geração que era criança nos anos 1980 e tem poucas lembranças das várias moedas que o país teve (cruzeiro, cruzado, cruzado novo"¦).
No dia 1º, outra geração, que não teve contato com essa realidade, faz 20 anos.
'GERAÇÃO REAL'
Diferentemente de seus pais, esse jovens entram no mercado de trabalho em um ambiente econômico mais favorável. Não é preciso gastar o dinheiro imediatamente para evitar que ele desvalorize, e a renda aumentou.
"Do ponto de vista econômico, o real foi um mundo novo. Havia períodos, no começo dos anos 1990, de 4% de inflação ao dia. Ficar com o dinheiro parado era perder", diz o professor de economia da UFRJ André Modenesi.
Com a necessidade de viver no curto prazo, era difícil planejar o orçamento doméstico, ainda mais a carreira ou a compra de um imóvel.
As trajetórias de Geraldo e Anderson expressam essa diferenças. O primeiro não fez faculdade, teve quatro filhos e ainda pagava a casa própria quando a caçula nasceu.
Já Anderson se formou, ainda mora com os pais e paga o apartamento onde vai viver depois de se casar.
Nos anos 1980, além de lidar com clientes irritados, Geraldo tinha que preencher a vitrine do açougue com abóboras, já que faltava carne.
Em casa, a situação também era preocupante. As contas apertavam o orçamento, enquanto a família crescia.
"Perdi noites de sono por causa das prestações. As crianças pediam coisas e não podia comprar. Era uma dor no coração", lembra Geraldo, hoje gerente da Santa Luzia.
Com 20 anos, o estudante Danilo Cardoso lembra do descontrole econômico apenas pelos registros na carteira de trabalho de sua avó. Ao ver o reajuste do salário para compensar a inflação, ele achava que o valor dobrava.
Do armário usado para estocar alimentos em casa, ficaram só as histórias. "Na minha infância tinha sumido."
De Mogi das Cruzes, Cardoso veio estudar em São Paulo bancado pela família. Em julho, fará intercâmbio na Colômbia. O estudante considera que tem mais liberdade para ousar em seus planos.
"Pude me mudar, estudar inglês, tive acesso a oportunidades que meus pais não tiveram. Me sinto tranquilo, mais do que imagino que eles se sentiam na minha idade."
Para o professor do departamento de Economia da PUC-Rio, Luiz Cunha, o Plano Real foi a condição fundamental para os jovens saírem da "corrida infindável" de viver em função da inflação.
"O ambiente no qual toma decisões é muito mais tranquilo. Ele tem mais informação, o amparo financeiro dos pais, pode escolher melhor."
Marcela Pacífico, 19, é a primeira em três gerações de sua família que pôde definir o começo de sua carreira. Neta de Lúcia Pacífico, presidente do Movimento das Donas de Casa e Consumidores de Minas Gerais, que fiscaliza preços, ela cresceu ouvindo as dificuldades da época.
"Minha mãe foi trabalhar aos 17 anos. Só depois fez graduação. Ela se arrepende."
Folha de S. Paulo – Inflação era pior para as famílias com renda baixa
DE SÃO PAULO
Há exatos 20 anos, em 29 de junho de 1994, um exemplar da Folha como este custava CR$ 1.530,00 (cruzeiros reais) em uma banca de São Paulo --quase o dobro do que era cobrado dois meses antes.
Nos tempos da inflação galopante de antes do real, a vida era assim: preços descontrolados que variavam constantemente e moedas que perdiam valor nas mãos do consumidor.
O cenário era sentido por todos os brasileiros, mas especialmente por aqueles com menor renda, que naquele tempo tinham menos acesso a bancos.
A inflação elevada funcionava como um imposto cobrado de quem carregava dinheiro no bolso.
Economistas ouvidos pela reportagem lembram que a fatia da população de renda elevada ao menos tinha à sua disposição "proteções financeiras" e vivia mais despreocupada.
Esses brasileiros se beneficiavam de opções de investimento criadas pelos bancos à época para ajudar a amortecer as perdas causadas pela inflação, como contas remuneradas e aplicações com rendimento de um dia para o outro.
Para não ver o salário "derreter", a maioria da população corria ao mercado assim que recebia e comprava tudo que pudesse estocar, transformando logo o dinheiro, que só perdia valor, em mercadorias.
"Quem não tinha conta em banco sofria. Para eles, a opção era gastar o mais rápido possível", explica Luiz Roberto Cunha, economista da PUC-Rio.
Mas a escalada dos preços e as trocas de moedas tornavam difícil até comparar valores, e o brasileiro médio ia às compras sem ter plena certeza do que estava caro ou barato.
Para o professor da Fundação Getulio Vargas e colunista da Folha Samy Dana, a inflação elevada agravava a desigualdade.
"Cenários de caos são injustos, não afetam a todos com a mesma força. Tinha até gente que lucrava com aquela incerteza toda, especulando. A conta, é claro, era paga por quem ganhava menos." (IF E DG)
O Globo – Placar invertido - Inflação 7 x 3 crescimento / Capa
Brasil teve expansão média de 3%, o 15º lugar numa lista de 32 países. alta de preços de 7% é a sétima maior
Passados 20 anos do Plano Real, os números da economia mostram o Brasil com inflação alta de Terceiro Mundo e crescimento baixo de país desenvolvido. Ao cruzar os dois indicadores com os de 32 países de América Latina, Brics (além do Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), Tigres Asiáticos (Hong Kong, Coreia do Sul, Cingapura e Taiwan) e desenvolvidos, o economista-chefe da Austin Rating, Alex Agostini, encontrou a sétima maior inflação acumulada de 1995 a 2013, de 275,4%, mesmo com a estabilização - o que representou taxa média anual de 7,2%, pouco acima da expectativa de inflação do mercado para este ano, de 6,46%. Na América Latina, o Brasil só perde para Venezuela e Colômbia. No ranking de crescimento, o Brasil cai para o meio da lista. Está na 15ª posição, com média de expansão de 3%.
- O que essa tabela mostra é que, em termos de crescimento econômico, o Brasil tem característica de país desenvolvido (países maduros que crescem mais devagar). Já a inflação revela problema crônico de país de Terceiro Mundo. Podemos sintetizar o problema pelo custo Brasil, colocando no preço as nossas deficiências estruturais, como logística, mobilidade urbana caótica, burocracia, tributação complexa e excessivamente elevada.
O economista ainda cita problemas de ingerência política em decisões técnicas, o que provoca insegurança jurídica e baixo crescimento.
- Todo esse custo Brasil afugenta o crescimento. Os Tigres Asiáticos estão à frente do Brasil. Crescem quase o dobro, enfrentando adversidades externas maiores que o Brasil. Na comparação com os outros, é emblemática a nossa situação.
Essa situação não é à toa. O processo de estabilização do Brasil combateu 30 anos de indexação (repasse para os preços da inflação passada), afirma o decano da PUC e especialista em inflação Luiz Roberto Cunha:
- Ninguém teve 30 anos de indexação como nós tivemos. No crescimento, tivemos problemas sim, não evoluímos nas reformas como o Chile, a Colômbia e o Peru (todos tiveram expansão superior à do Brasil). Eles caminharam melhor do que nós. É claro que a complexidade da economia brasileira também é maior.
Para poder conviver com a inflação, foi criada a correção monetária no período militar, que embutia, na maioria dos preços, a inflação passada. A correção monetária foi extinta com o Plano Real.
Cunha afirma que a indexação ainda existe, atualmente causada por uma inflação renitente em 6%:
- A demanda por indexação cristalizada em 6% é muito grande, formal e informal. O aumento real do salário mínimo tem como contrapartida a inflação de serviços, que está comendo parte do ganho.
O professor da USP Heron de Carmo teme esse repasse da inflação passada aos preços de hoje. Para ele, o governo errou ao não reduzir para 3% a meta de inflação quando as taxas estavam perto de 4%, entre 2006 e 2007:
- A inflação começou a subir com os choques. Agora, vivemos administrando choques. Ainda temos o custo da taxa de juros entre as mais altas do mundo.
Há de se ter cuidado com as comparações, afirma Mônica de Bolle, da Galanto Consultoria, diante de estágios diferentes de desenvolvimento entre os países. Ela cita o exemplo da China, que deu um impulso no crescimento com a migração da população rural para as cidades, elevando a produtividade e o crescimento. O Brasil viveu este fenômeno com mais intensidade nas décadas de 1960 e 1970. A economista considera boa a média de 3% de crescimento anual, mas chama a atenção para o fato de esta performance ter piorado nos últimos anos. Para 2014, o Relatório de Inflação do Banco Central, divulgado semana passada, já prevê expansão da economia de apenas 1,6%. Mas a avaliação da economista não se repete para as taxas de inflação:
- Ficamos mal na foto na inflação. É alta a média de 7,2%. Muito longe da meta de 4,5%. Tem havido um enfraquecimento institucional no Brasil. Isso fica claro com a inflação muito alta. Se alguns preços não estivessem represados, poderia estar até acima de 7,2%. Deveríamos estar hoje bem abaixo desta média de 20 anos.
Cunha lembra que mesmo países que sofreram com inflação alta não tinham a tradição de indexação do Brasil, citando a quantidade de índices de preços aqui, com os da FGV, da Fipe e do IBGE.
Mônica afirma que Colômbia, Chile e Peru não tiveram o problema inflacionário do Brasil, mas conseguiram adotar políticas de abertura comercial e fazer reformas como a tributária e trabalhista:
- Quando se faz reforma estrutural, ganha-se eficiência. O crescimento sobe, e a inflação cai.
Para Lia Valls, especialista em América Latina da Fundação Getulio Vargas (FGV), o Brasil se saiu bem, na medida do possível, principalmente baixando o patamar da inflação:
- Dentro do possível, a gente se saiu bem. Conseguimos, principalmente, sair da âncora cambial de uma forma que não causou muito trauma na economia. Conseguimos fazer isso de uma maneira que não a inflação não acelerou. Depois se criou um consenso de que a inflação é algo que a gente não deve aceitar.
Cunha afirma que o sucesso do real veio da falta de surpresas. Num artigo em dezembro de 1993, o professor da PUC explica cada passo do plano, com base na divulgação oficial, ao contrário de planos anteriores, que a população só sabia o que ia acontecer na hora.
Na avaliação do diretor do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica do Instituto de Economia da Unicamp, Francisco Lopreato, foi a renegociação da dívida externa que viabilizou o sucesso do Plano Real. Segundo ele, a experiência brasileira seguiu a de outros países da América Latina, que conseguiram se livrar da hiperinflação após reestruturar a dívida dos países.
- Não é coincidência que o Plano Real só tenha ocorrido depois da renegociação. Sem querer tirar o mérito do real, que foi um plano inteligente, o acordo da dívida retomou o acesso ao crédito internacional, o que tornou viável o plano.
O Globo – 'Não tinha medo da inflação. Tinha receio de uma crise de confiança' / Entrevista / Pedro Malan
Pedro Malan, ex-ministro da fazenda, temia que país fosse visto como outros em turbulência
Cássia Almeida, Maria Fernanda Delmas e Maiá Menezes
Vinte anos depois do lançamento da moeda brasileira, o real, o ex-ministro da Fazenda Pedro Malan revelou suas memórias sobre o momento crucial da economia, quando a inflação anual estava em quase 5.000%, em junho de 1994, e comentou a situação do país hoje, após duas décadas de estabilização. Um dos artífices do Plano Real avalia que as taxas de inflação "são civilizadas à luz de nossa experiência pretérita, mas continuam um pouquinho mais elevadas do que gostaríamos". A crise de confiança, que abalou o país entre 1998 e 1999, após o colapso dos Tigres Asiáticos, em 1997, e a moratória da Rússia, em 1998, levando o dólar a custar R$ 2 e as reservas internacionais a se esvaírem, foi um dos momentos mais difíceis para o economista. A crise levou o Brasil a mudar o regime cambial de bandas para flutuante em janeiro de 1999.
- Não tinha medo de inflação. Tinha receio de uma crise de confiança grande. (...) Havia generalização da ideia de que país subdesenvolvido e em desenvolvimento era tudo igual. A confiança foi recuperada, com custo obviamente (o PIB ficou estagnado nos dois anos da crise e o rendimento do trabalho caiu 7% em 1999), mas depois do início de 1999, conseguimos recuperar isso, após a turbulência.
Malan, que ficou no governo de maio de 1991 a dezembro de 2002, como negociador da dívida externa brasileira, na presidência do Banco Central (BC) e no Ministério da Fazenda, não vê descontrole na inflação atualmente:
- É importante que, passados 20 anos, as taxas de inflação sejam relativamente civilizadas.
Indagado sobre o que faria de diferente em relação à montagem e administração do Plano Real, fez piada:
- Presumo que eu não possa dizer não ter aceitado o Banco Central e o Ministério da Fazenda. Isso não vale como resposta (risos).
Para o ex-ministro, é natural a preocupação com a alta de preços, traduzida no movimento Rio $urreal, mas diz que "aquele tipo de inflação não volta".
1 - Brasil, recordista de inflação em três décadas
"As pessoas com menos de 40 anos não têm nenhuma experiência vivida da marcha de insensatez que foi a evolução da inflação no Brasil nas décadas que antecederam o lançamento do Real. O Brasil foi o recordista mundial de inflação do início do anos 1960 ao início dos anos 90. Entre 1980 e 1993, a inflação média foi superior a 600% ao ano, 100% na virada dos 1970 para 1980, 200% em 1985, 1.000% em 1988/1989 e 2.500% em 1993. Isso, felizmente, ficou para trás. É importante que, passados 20 anos, as taxas de inflação sejam relativamente civilizadas. São civilizadas à luz de nossa experiência pretérita, mas continuam ainda um pouquinho mais elevadas do que gostaríamos."
2 - Aprendizado com outros planos de estabilização
"Aprendemos com a experiência do Cruzado, em 1986, com Plano Bresser em 1987, Plano Verão em 1988, Collor 1 em 1990, Collor 2 em 1991. Tanto é que na equipe básica, sem a qual o Real não teria sido concebido e implementado, havia três veteranos do Cruzado, pessoas-chave: Pérsio (Arida), André (Lara Resende) e Edmar (Bacha), aos quais se juntou Gustavo Franco em 1993."
3 - O plano foi rapidamente aceito pela população
"Fernando Henrique conseguiu reunir pessoas que já o conheciam há muito tempo, que se respeitavam. Nenhuma estava disputando poder. Quando anunciamos, em 7 de dezembro de 1993, a direção que iríamos tomar, foi uma coisa importante, que diferenciou o Real de outras experiências. Não foi algo que surgiu após um fim de semana, um feriado bancário e que pegou a população de surpresa com tablitas e taxas de conversão, congelamentos, bloqueio de poupança. Lembro-me de uma pergunta de jornalista: 'O que vai acontecer amanhã ou na semana que vem com o câmbio?'. Falei: nada de diferente do que vocês estão vendo aqui. Foi uma das razões da aceitação do êxito, fundamentais naqueles quatro meses de recontratação em URV."
4 - Hiperinflação não volta mais
"A agenda para o Brasil pós-Real se confundia com a agenda do desenvolvimento econômico, social, político e institucional do Brasil. Ela envolvia não só a área fiscal, do regime monetário, cambial, mas mudanças para que o país pudesse, após aquela experiência histórica de convivência com a inflação alta, crônica e crescente, conviver com taxas de inflação civilizadas. Quando se olham os últimos 20 anos em perspectiva, isso aconteceu. Na experiência dos 50 anos anteriores é um sucesso, mas isso não quer dizer que a inflação baixa, sob controle, está definitivamente incorporada ao DNA da sociedade brasileira, que não é preciso mais preocupação. Tenho certeza absoluta de que ela não volta, a (inflação) passada. Espero que a população considere a responsabilidade de qualquer governo, qualquer que seja sua coloração político-partidária, preservar a inflação sob controle. Isso é o grande legado do Real. Não vejo o Brasil tendo aquele processo de inflação em que ela subia de 40% para 100% e para 1.000%."
5 - Custo político das medidas depois do plano
"O Real permitiu que pudéssemos começar a encarar questões que estavam mascaradas pela poeirada da inflação alta. Tínhamos 28, 29 bancos comerciais e estaduais que faziam empréstimos a seus governos e às empresas de seus governos, que representavam uma parcela grande de seus ativos. Hoje, devemos ter meia dúzia de bancos comerciais e estaduais, e todos sabem que estão sujeitos à fiscalização do BC, podem ser liquidados. Tivemos que intervir em grandes bancos, como Econômico, Nacional, Bamerindus, porque a inflação baixa faz com que problemas apareçam, problemas de geração de caixa vis-à-vis custos operacionais, o imposto inflacionário. Houve enorme dispêndio do capital político do governo Fernando Henrique Cardoso para lidar com problemas de banco. A dívida foi reestruturada em 30 anos. Reestruturamos as dívidas de 180 municípios. Outro exemplo foi a privatização. O que nos levou, não por qualquer consideração de natureza política ou ideológica, a mudar os capítulos da ordem econômica da Constituição. Houve interrupção (nas privatizações) por um período longo, mas está sendo retomado agora, com atraso. São evidentes as deficiências na infraestrutura, mas elas sinalizam oportunidades de investimento. É possível ter um processo de investimentos na área de infraestrutura que ajude a retomada do crescimento."
6 - Riscos para a estabilização
"A inflação exige cuidados. Não tem risco de descontrole, não vejo nenhum desastre no front da inflação, mas é importante manter as expectativas quanto ao curso futuro dos preços ancoradas num nível que seja percebido como não induzindo demandas por indexação. Quando as pessoas acham que a inflação está numa trajetória, ainda que muito lenta, mas ascendente ou que ela mudou de patamar, é natural que queiram se precaver nos dissídios, nas correções de preços. Isso pode virar algo que se alimenta mutuamente e leva à pressão. Exige atenção e não só da parte do BC. Após certo ponto, exige ação do governo no seu conjunto. Exige percepção de quão importante é aquilo para o conjunto da população."
7 - Renegociação da dívida externa
"Larry Summers (secretário do Tesouro americano na época) sempre me disse que se não tivesse acordo com o FMI não haveria emissão de títulos de 30 anos que os EUA emitiam para garantia. Iríamos pagar só juros durante 30 anos. Amortização do principal só em 2023. A garantia eram títulos de 30 anos que faziam numa edição especial, fizeram para México, Argentina. Sabia que era muito difícil ter um acordo com o fundo com inflação de 30% ao mês. Tínhamos um bônus internacional, cujo título era bônus de interesse devido e não pago. Era nosso interesse eliminar esse bônus. Fomos comprando discretamente títulos do Tesouro americano para não depender da emissão especial. Éramos vistos como um país meio bêbado, um adolescente meio destrambelhado no caminhar. O Real e a negociação da dívida se reforçaram na percepção por parte do resto do mundo sobre o país."
8 - Os bastidores da crise de 1998
"Foi a primeira vez que um presidente americano, Bill Clinton, pediu para ter uma conversa com alguns ministros da Fazenda e presidentes de Banco Central na reunião anual do FMI em Washington, em setembro de 1998. A decisão de criar o G-20 surgiu aí. Havia o receio de que pudesse ser uma crise mais sistêmica. Eu não tinha medo de inflação. Tinha receio de uma crise de confiança grande. Foi o que nos levou a buscar um apoio, que obtivemos: um programa de organizações multilaterais, BID, Banco Mundial, FMI e bancos centrais, o que foi uma expressão de confiança no Brasil. Confiança exige ação doméstica. Havia generalização da ideia de que país subdesenvolvido e em desenvolvimento era tudo igual. Todos os países asiáticos estavam em grande crise. Estávamos saindo da resolução do problema bancário, tentando resolver problemas fiscais, a privatização ainda não havia levado a seus efeitos e tínhamos acabado de mudar a Lei do Petróleo em 1997. A confiança foi recuperada, com custo obviamente, mas depois do início de 1999, conseguimos recuperar isso, após a turbulência."
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