quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

A cleptocracia como forma de governo - Paulo Roberto de Almeida (Estadao)

Um artigo meu publicado no Estadão desta quinta-feira, que trata basicamente de fenômenos estrangeiros. Qualquer semelhança é pura coincidência, à mon insu, como diriam alguns.
Paulo Roberto de Almeida 

A cleptocracia como forma de governo
Paulo Roberto de Almeida, diplomata e professor universitário
O Estado de S. Paulo, 18/12/2014

O termo (cleptocracia) refere-se a uma situação regular e constante de corrupção e de roubos sistemáticos praticados no âmbito do Estado, permitidos pelos seus agentes. Ela implica que representantes do governo mantenham vínculos com a delinquência organizada, isto é, com sindicatos do crime. Os mais conhecidos são as associações nascidas no sul da Itália, entre as quais se destaca a Máfia, depois disseminada internacionalmente. Nos Estados Unidos, Hollywood, com seus dramas e comédias, pode ter edulcorado a ação desses grupos criminosos, que, além de intimidar simples comerciantes, corrompem policiais, juízes e até elegeram senadores; a realidade é geralmente mais sórdida do que a que aparece: ela é feita de muita violência e de grave deterioração das instituições.
Em suas manifestações práticas, Estados mafiosos, ou governos cleptocráticos, estão associados a situações autoritárias, nas quais predomina o arbítrio dos dirigentes em condições próximas de ditaduras abertas ou disfarçadas. Nada impede, porém, que formas de cleptocracia se instalem pelas vias normais da democracia eletiva, como já se viu no passado da América Latina, e como ainda pode estar ocorrendo mesmo agora. Em manifestações mais amenas do que a corrupção generalizada em todas as esferas de governo, ela pode conviver nos regimes democráticos com formas especiais de atuação política: no sistema americano, por exemplo, isso tem o nome de pork barrel; na antiga partidocracia italiana, a lotizzazione e a distribuição de favores recíprocos entre o Executivo e o Legislativo também redundavam em corrupção nos negócios públicos, seja em cargos, seja em concorrências, concessões e compras governamentais.
Um livro recém-publicado de uma pesquisadora de política russa e soviética da Universidade Miami do Estado de Ohio, Karen Dawisha, intitulado Putin's Kleptocracy: Who Owns Russia? (Nova York: Simon & Schuster, 2014), descreve justamente as formas pelas quais o novo czar conseguiu instalar um sistema predatório que desvia recursos imensos do país e de seus cidadãos trabalhadores para enriquecer um punhado de magnatas devotados inteiramente ao seu absolutismo personalista, funcionando como uma democracia de fachada. Métodos similares de extração de valores não mensuráveis - pois, além de desviar dinheiro real, existe também o chamado custo-oportunidade, ou seja, o que se deixa de investir em outras atividades - podem estar sendo usados em outros países, mas foi na Rússia de Putin que a cleptocracia chegou ao seu estado de perfeição institucional. De certa forma, ela não deixa de ser uma petroditadura.
Karen Dawisha lista os expedientes típicos dos regimes corruptos, todos eles em uso, e em expansão, no Estado sucessor da União Soviética - que já era um sistema de roubo "normal" -, mas facilmente encontráveis em outras paragens também: propinas de empresas nacionais e estrangeiras para trabalhar com empresas públicas; pedágios em contratos inflados, não sujeitos a sistemas abertos de licitação nos projetos do governo; regulação ajustada para beneficiar certos grupos e enriquecer os amigos do poder (pode ocorrer em processos viciados de privatização); mecanismos de "coleta" de parte dos recursos amealhados por eles para financiar campanhas eleitorais, ou diretamente para contas bancárias no exterior; operações de comércio exterior, com faturamento a mais ou a menos nos preços; subsídios estatais seletivos; doações legais ou semilegais para obras públicas; transações imobiliárias a preços fictícios, escondendo pagamentos por fora dos contratos; lavagem de dinheiro; financiamento de atividades políticas, com ou sem campanha eleitoral; contas não declaradas em bancos no exterior; maquiagens contábeis nas contas domésticas; arranjos lucrativos com cartéis, quando não com os próprios sindicatos do crime; intimidação, manipulação e controle da mídia; no limite, eliminação física dos "obstáculos" a esses negócios heterodoxos. Déjà vu?
É evidente que quanto mais recursos criados na esfera privada, pelos produtores diretos de renda e riqueza, passam pelos mecanismos de intermediação estatal, maiores são as oportunidades para que várias dessas formas de corrupção se instalem de maneira regular no âmbito do Estado. Cleptocracia existe quando os mais altos agentes públicos sancionam, e até estimulam, esses comportamentos típicos de associações criadas para delinquir. A tradição bolchevique conviveu, desde a origem, com várias dessas formas de atividade criminosa, quando não com formas ainda mais diretas de extração de recursos de particulares e de agências públicas. É sabido, por exemplo, que Stalin começou sua vida "profissional" na ala leninista do partido operário social-democrata russo empreendendo alguns assaltos a agências postais ou a bancos, como forma de financiar as atividades de propaganda do POSDR.
No Brasil, o Minimanual do Guerrilheiro Urbano, de Carlos Marighella, não punha restrições a esse tipo de recurso. O primeiro item do capítulo 9, dedicado às ações dos guerrilheiros, referia-se ao "assalto a banco como modelo popular" (sic), seguido de outros tipos de ação: emboscadas, desvios, confiscos, expropriações de armas, execuções, sequestros, sabotagem, terrorismo, propaganda armada, guerra de nervos (cf. http://www.marxists.org/portugues/marighella/1969/manual/index.htm).
Nem todos os candidatos a guerrilheiros passaram por todas essas etapas e formas de ação. Muitos deles, reciclados, preferiram enveredar por outros tipos de negócios, em alguns casos à la russa. Quando surpreendidos, tentam justificar o método sob o argumento especioso de que "todos fazem assim"; ou então que a indução partiu de agentes privados, ávidos para conquistar mercados de obras públicas. O cinismo também vem junto...


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