O passado de uma ilusão que ainda não passou: o comunismo
no Brasil
Paulo Roberto de Almeida
Prefácio a livro de Gustavo Marques:
O livro negro do comunismo no Brasil: mitos e falácias
da esquerda brasileira
(Rio de Janeiro: Jaguatirica, 2019)
A primeira parte, de um
total de sete, com incontáveis capítulos e seções, deste livro de Gustavo Marques
começa, em seu título, por uma alusão ao famoso livro de François Furet, Le Passé d’une Illusion: essai sur l’idée
communiste au XXe siècle (Paris: Laffont/Calmann-Lévy, 1995), que foi
objeto, possivelmente, da mais longa resenha de um livro que eu elaborei,
dentre dezenas, centenas de outras resenhas, grandes e pequenas, ao longo de
uma vida quase toda ela feita nos livros, pelos livros, para os livros e
assoberbada por livros (não sei quantos tenho). Foram exatamente 22 páginas, que,
obviamente, trataram não apenas dessa obra de Furet, mas praticamente da
história da ideia comunista ao longo do século XX, ao estilo dos longos review-articles que eu sempre li, e
admiro, na New York Review of Books,
uma das poucas publicações esquerdistas americanas que mantém um alto nível
intelectual.
Por sorte, eu era, à época
da redação, editor adjunto da Revista
Brasileira de Política Internacional, que então acolheu, em 20 páginas,
essa extensa resenha em seu número de janeiro-junho de 1995; sim, no mesmo ano
da publicação do livro, que eu devorei e imediatamente resenhei, na edição
original em francês. O livro deve ter sido publicado no Brasil, mas ignoro seu
sucesso editorial, se é que teve, entre nós, na medida em que, como revela
desde a sua introdução Gustavo Marques, quase toda a literatura sobre a
esquerda comunista no Brasil é de esquerda, portanto dotada de um inevitável
viés ideológico. Por isso mesmo, esse extensíssimo livro de Marques vem
preencher, segundo a expressão abusada, uma grande lacuna na literatura dessa
área, pois raramente se vê, em nossas editoras e livrarias, um livro-verdade
sobre a tragédia do comunismo no Brasil e no mundo; os de viés negativo, ou
simplesmente verdadeiro, são, ainda, uma raríssima raridade, com perdão pela
redundância.
O título desde logo evoca
outra obra importante, que já teve edição entre nós, mas não me lembro de ter
lido, salvo num artigo de Roberto Campos, resenhas sérias, focado que sou na
publicação de todo tipo de literatura nas ciências humanas e sociais: O Livro Negro do Comunismo: crimes, terror,
repressão, de Stéphane Courtois e colaboradores (1997), publicado no Brasil
pela Bertrand (1999). Esse livro trata do comunismo no mundo, com capítulos
regionais ou nacionais (exceto o Brasil), mas o grosso do tratamento está
obviamente reservado às nações que, infelizmente, sofreram décadas sob esse
regime, fonte de uma mortandade muitas vezes superior à dos regimes fascistas,
ou direitistas, embora ambos fenômenos sejam praticamente similares em seus
métodos e procedimentos voltados para a eliminação não apenas de dissidentes,
mas de seus próprios acólitos e servidores. O Brasil é um capítulo menor na
volumetria das vítimas, mas certamente figura entre os mais importantes países
a abrigar a ideia comunista, no sentido da dominação ideológica a que se refere
François Furet em seu brilhante ensaio de história de uma ideia, a mais
poderosa em um século dominado por ideologias, mas que ainda insiste em se
manter um princípio aceitável em nossos dias.
De fato, com exceção de
alguns poucos autores e pesquisadores – como Stanley Hilton, por exemplo – a
maior parte da literatura séria (quero dizer, aquela que não é simplesmente
opinativa ou ideológica, pois os há, na direita) sobre o comunismo no Brasil
mantém uma postura senão simpática, pelo menos neutra, em relação ao maior
desafio enfrentado por nosso país em sua trajetória política, desde aos anos
1920 até a atualidade. Cabe reconhecer, efetivamente, que a ideia comunista
constituiu, não só no Brasil, mas no mundo todo, o maior desafio ao
desenvolvimento natural das economias de mercado e dos regimes políticos
democráticos em progressiva ascensão em todas as regiões, continentes, países,
sociedades. Quando digo “desenvolvimento natural” é porque acredito que, na
ausência desse poderoso contendor, as democracias de mercado teriam predominado
mais precocemente, e de forma mais abrangente, do que o fizeram desde o final
do século XIX até nossos dias. Cabe desenvolver esse ponto.
Das três grandes ideias que
nasceram de cérebros vindos do século XIX, Marx, Freud e Einstein, o marxismo
prático (isto é, o comunismo), o freudismo aplicado (na psicanálise) e a teoria
da relatividade (que constituiu o mais poderoso complemento da física
newtoniana), junto com a teoria darwiniana da seleção natural, todas elas
dotadas de imenso potencial revolucionário em relação às teorias e crenças predominantes
até o final daquele século, foi o marxismo que ofereceu a maior, a mais
extensa, a mais profunda contestação à evolução natural das sociedades humanas
constituídas sob a forma de sistemas econômicos de mercado, em sistemas
políticos representativos, em sistemas culturais dotados de abertura de
espírito, na linha do que vinha sendo construído pelo Iluminismo, e que ainda
persiste, embora enfraquecido como um poderoso contendor ideológico das
sociedades abertas, em seu sentido popperiano.
Com efeito, a abolição dos
mercados e da propriedade privada, através de uma organização social da
produção baseada na apropriação coletiva (mais exatamente estatal) dos meios de
produção, a supressão da democracia representativa (vulgarmente apodada de
“burguesa”) em favor de uma “ditadura do proletariado” (de fato, a ditadura do
partido único ou, comumente, de um tirano) e a substituição da liberdade de
pensamento, de organização e de expressão pelas diretrizes vindas de cima,
emanadas desse mesmo partido clarividente e protetor, constituíram – e de certa
forma ainda constituem – a mais importante negação de uma tradição liberal que
vinha sendo construída duramente nas lutas democráticas dos séculos XVIII e
XIX, por meio de propostas políticas, sociais e econômicas emanadas de
filósofos iluministas e por estadistas dotados de valores e princípios
compatíveis com os atributos dos regimes abertos que estavam se firmando
paralelamente à consolidação do capitalismo, uma das formas (mas não a única,
como nos ensina Fernand Braudel) da economia de mercado em expansão desde a
primeira globalização, na era dos descobrimentos. A segunda globalização,
durante a belle époque europeia,
ainda tinha reforçado os impulsos mais importantes do iluminismo filosófico
(com a disseminação de princípios de direitos humanos verdadeiramente
universais, presentes nos movimentos abolicionistas e contra a tortura nos
processos judiciais), do liberalismo político (representado pelas reformas
tendentes à ampliação das franquias eleitorais, até chegar, já no século XX, ao
voto feminino) e do livre comércio no plano econômico, que deveria consolidar e
estender os tentáculos das democracias de mercado até os mais distantes cantos
do planeta.
Tudo isso veio a termo com
a Grande Guerra e, na sua imediata sequência, com o surgimento dos irmãos
siameses do fascismo e do bolchevismo. O primeiro produziu o “Estado total”, impondo,
segundo Mussolini, “nada fora do Estado, nada contra o Estado”, o que aliás se
encaixava perfeitamente na concepção totalitária de Lênin e de Stalin. O
segundo fez algo que nem o fascismo ousou fazer: aboliu a sinalização de preços
pelo mercado, colocando em seu lugar burocratas do planejamento centralizado,
encarregados de substituir a lei maior da economia, a do equilíbrio entre a oferta
e a procura, por preços administrados. Como sinalizou imediatamente após a
decretação do socialismo na Rússia bolchevique o economista austríaco e
ex-socialista Ludwig von Mises, em seu panfleto O Cálculo Econômico na Comunidade Socialista (1920), foi o
equivalente econômico de fazer um elefante voar, ao eliminar a possibilidade de
uma avaliação realista da raridade relativa dos bens disponíveis para o
processo produtivo.
Na verdade, o elefante
voou, durante mais ou menos setenta anos, mas à custa de um novo escravismo que,
na era contemporânea, não teve paralelos, em sua dimensão, ao que se conhecia
nas sociedades antigas. A historiadora Anne Applebaum, autora de uma famosa
história do Gulag – citada neste livro – diz que este chegou a representar
parte significativa do PIB soviético, sobretudo nos setores da infraestrutura,
indústrias florestais, mineração, trabalhos penosos em geral. Essa mesma
escravidão continua a existir na Coreia do Norte e em Cuba, os dois únicos
redutos que preservam os últimos resquícios do stalinismo econômico (e
político) do planeta. Todo ano, por ocasião da safra de açúcar, os cubanos
repetem a piada, ao serem convocados compulsoriamente (à falta de equipamentos
mecânicos ou combustível) para a colheita manual: “La participación
es voluntaria, pero la voluntad es obligatoria.”
Impossível cobrir com toda
a riqueza de detalhes o imenso painel que Gustavo Marques traça do comunismo,
tal como ele existiu na prática no Brasil a partir dos anos 1920 (depois do
período inicial de dominação anarquista sobre o movimento operário). O autor
leu praticamente tudo o que se escreveu e se publicou de relevante sobre o
universo teórico e prático do comunismo no Brasil ao longo do século decorrido
desde as primeiras agitações políticas, passando pela intervenção dos agentes
brasileiros e estrangeiros do movimento, chegando aos dias que correm. Como em
várias outras trajetórias nacionais, o comunismo brasileiro registra o
itinerário de uma parábola: um início lento, um arranque em meados do século XX
e um lento declínio até o seu quase desaparecimento nas contestações práticas que
ele pretendeu oferecer ao “capitalismo realmente existente”, mas sem que se lograsse
a eliminação de todos os “resíduos mentais” da ideia comunista entre nós.
O marxismo no Brasil não
produziu grandes contribuições teóricas à doutrina, enquanto elaboração
filosófica ou teoria social (como no caso da Escola de Frankfurt, por exemplo).
Dois de seus representantes, Caio Prado Jr. e Nelson Werneck Sodré, produziram
contrafações da doutrina ainda na era do stalinismo triunfante ou declinante e que
não deixaram sequer algum resquício de contribuição ao campo. A melhor análise
do marxismo ocidental foi feita em um livro homônimo por um pensador liberal, o
diplomata José Guilherme Merquior, que aliás dialogou de forma inteligente com
os poucos marxistas não sectários da comunidade acadêmica.
O marxismo prático, isto
é, o comunismo, ao contrário de suas pretensões, não contribuiu em praticamente
nada para os avanços econômicos, sociais e políticos da classe que pensava
representar, mais bem contemplada por concessões populistas de um ditador ou de
presidentes abertos à “inclusão social” das massas trabalhadoras. Do lado
inverso, liderado por um militar positivista convertido a uma versão
especialmente vulgar do marxismo, o movimento comunista deu exemplos negativos
de tentativa de tomada violenta do poder, empurrado pela miopia da III
Internacional (1935), adotando depois uma reiterada postura de apoio às mais
execráveis ditaduras do século XX, aliás até hoje, como revelado no caso da tragédia
venezuelana, cuja ditadura de natureza fascista é apoiada pelos partidos
brasileiros que se acreditam de esquerda.
Em vista de tantas
frustrações, tantos equívocos, tantos crimes cometidos, tantas ilusões
alimentadas em milhões de jovens (e menos jovens) ao longo do último século,
parece até inacreditável que o comunismo tenha sobrevivido aos golpes de
martelo da realidade. De certa forma, ele só não colapsou de vez porque os
cursos de humanidades continuam a alimentar um fluxo contínuo de professores,
jornalistas, sindicalistas (em grande medida de funcionários públicos),
ativistas de movimentos sociais e outros seres deslocados do mundo real,
vivendo nas fímbrias do mercado, ou diretamente a serviço do Estado, ao abrigo
do qual eles repartem entre si recursos que extraem da parte ativa da sociedade
(empresários e trabalhadores do setor privado), numa espécie de redoma infensa
aos dados e informações do sistema produtivo de mercado. Gustavo Marques traz
aqui a sua contribuição única na literatura especializada brasileira a uma
história que ele estima ser, com razão, “ainda mal contada”.
O autor atribui essas
deficiências da bibliografia à má qualidade da literatura anticomunista no
Brasil; ou seja: se a esquerda deformou a verdade histórica, a direita tampouco
soube compor estudos sólidos sobre essa grande ilusão que ainda persiste. De
fato, mesmo se o anticomunismo é a doutrina oficial do Estado brasileiro desde
1935, os estudiosos não comunistas do fenômeno não conseguiram construir uma
obra que lograsse escapar do anticomunismo primário, do reacionarismo
antidemocrático e das mesmas simplificações que já conhecemos do lado da
literatura de baixa qualidade produzida pela esquerda e pelos simpatizantes do
marxismo.
Ao cabo de uma leitura
talvez extenuante, mas sumamente enriquecedora, não é possível emergir deste
livro com a antiga impressão geral de que a esquerda sempre foi, e continuaria
sendo, “moralmente superior” à direita, por defender ideais supostamente nobres
e elevados. Ao contrário, o comunismo, no Brasil como no resto do mundo, foi
devastador não só para as consciências, mas também para qualquer objetivo
prático de desenvolvimento material e de progresso espiritual da sociedade. Em
uma palavra, seus projetos de engenharia social foram, aqui e em todos os
lugares, apenas criminosos.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 26 de março de 2019
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