EUA discutem redefinir direitos humanos no mundo; Brasil vê processo "útil"
O governo dos EUA prepara uma redefinição do que são os direitos humanos, num processo que pode ter um impacto global. Longe dos holofotes, a Casa Branca costura um esforço inédito para colocar limites às novas reivindicações dos direitos humanos e realizar a maior revisão do termo desde a assinatura em 1948 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, uma espécie de bússola da humanidade depois dos horrores da Segunda Guerra Mundial.
Em meados do ano passado, a Casa Branca criou a Comissão sobre Direitos Inalienáveis e seus dez membros ganharam o mandato de redefini-los.
Para os críticos e especialistas, o esforço de focar os trabalhos em "direitos inalienáveis" é, na realidade, uma tentativa de restringir os direitos que o governo tem a obrigação de proteger. Poderiam ser afetados direitos sexuais e a proteção de minorias, entre elas a comunidade LGBTQ e imigrantes.
A coluna apurou que o processo passou a ser acompanhado com grande interesse pelo Itamaraty e pelo Ministério dos Direitos Humanos. O governo brasileiro chegou a enviar representantes às reuniões do grupo, em Washington.
Procurado pela reportagem, o Itamaraty indicou que "as audiências são abertas ao público, inclusive para a participação de representações diplomáticas estrangeiras. Como diversos outros países, o Brasil recebeu convite para acompanhar as discussões".
Em dezembro do ano passado, o país enviou delegação à sessão que tratou de temas da pauta internacional. "O governo brasileiro entende que a comissão foi estabelecida para responder a questionamentos específicos dos EUA. Isso não obstante, considera que os trabalhos da comissão poderão ser úteis para o Brasil", confirmou o governo.
O Itamaraty fez questão de ressaltar que, conforme estabelecido na Declaração de Viena, o governo brasileiro "reitera o entendimento de que os direitos humanos são universais, indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados".
Mulher-forte do governo Bolsonaro
A representante do Brasil no evento foi a secretária nacional da Família do governo, Angela Gandra Martins, que viajou até a capital americana para acompanhar as reuniões.
Ela é considerada dentro da diplomacia brasileira como a pessoa que, de fato, determina e conduz a agenda de costumes e valores no governo, além de transitar com facilidade nos meios conservadores americanos. Damares Alves, a ministra, seria apenas uma figura popular para encabeçar essa agenda.
"O governo brasileiro acompanha com interesse os trabalhos da Comissão de Direitos Inalienáveis do Departamento de Estado dos EUA", declarou o ministério dos Direitos Humanos, numa nota enviada à reportagem." Os trabalhos da Comissão, contudo, visam subsidiar o secretário de Estado Mike Pompeo na condução da política externa dos EUA. Trata-se, portanto, de uma iniciativa interna do governo norte-americano, cujos resultados ainda são desconhecidos", insistem.
A pasta indica que, por se tratar de uma iniciativa interna do governo dos EUA, o ministério "não foi chamado a apoiar os trabalhos da Comissão". Mas deixa claro que está alinhado com o esforço.
"O governo brasileiro tem um compromisso fundamental com a defesa dos direitos humanos, entendidos como universais, indivisíveis, interdependentes e interrelacionados, e vê oportuna a necessidade de aprofundar neles para melhor compreensão diante de variadas mudanças, maior respeito a soberania dos Estados e melhor integração e solidariedade internacional em sua defesa", declarou. Angela Gandra Martins se reuniu em um jantar com Mary Ann Glendon, a pessoa escolhida pela Casa Branca para liderar o processo. O governo apenas explicou que a secretaria, por também ser professora de Filosofia do Direito, "conhecia já a presidente da Comissão devido a estudos em sua Universidade e jantou com ela".
Glendon é a ex-embaixadora do governo de George W. Bush junto ao Vaticano. Conservadora, ela causou polêmica no meio acadêmico ao recusar um título da Universidade de Notre Dame no ano em que o presidente Barack Obama faria um discurso sobre direitos reprodutivos.
Nos anos 90, ela teceu duras críticas às Nações Unidas. "Precisamos levantar a questão se essas organizações defendem as famílias ou se as famílias precisam ser defendidas contra elas", disse.
Uma década depois, ela apoiou a tentativa de Bush de aprovar uma emenda à Constituição americana para definir o casamento como um ato entre um homem e uma mulher. Num artigo, ela sugeriu que quem defende o casamento homossexual usa os "direitos civis" como forma de obter "preferências especiais".
Segundo ela, ao aceitar o casamento gay, a sociedade estaria criando uma discriminação contra todos aqueles que participam de uma religião que é contrário ao ato. Nos últimos anos, a professora de Harvard também causou indignação de ativistas ao sugerir a flexibilização dos direitos universais para acomodar tradições locais.
"Prioridades políticas questionáveis"
Ao lançar o projeto, o secretário de Estado norte-americano, Mike Pompeo, alerta que "nas últimas décadas, temos ficado confusos sobre direitos". "Apelos por direitos têm moldado nossos debates políticos. Mas não é sempre claro se estamos falando de direitos fundamentais e universais, ou de prioridades políticas questionáveis, ou apenas preferências pessoais", disse.
Segundo ele, a reivindicação por direitos "explodiu" nos últimos anos. Ele aponta que, entre a ONU e o Conselho da Europa, existem 64 acordos relacionados aos direitos humanos, com 1.300 itens.
"Órgãos internacionais designados a proteger os direitos humanos tem saído do caminho de suas missões ou foram corrompidos", criticou.
Sua visão e da Casa Branca é de que as escolas deixaram de ensinar os princípios sobre os quais os EUA foram fundados, um apelo ao passado. "Chegou a hora de fazer algumas perguntas", declarou.
Mas a Casa Branca não espera que o trabalho da comissão determine apenas o que existe dentro das fronteiras americanas. "Esperamos que ela (a comissão) gere um debate sério sobre direitos humanos que se estenda além das posições dos partidos e fronteiras nacionais", disse Pompeo, que aposta no trabalho dos especialistas para marcar o "legado americano" pelo mundo.
A coluna apurou que um dos focos do lobby americano é o governo brasileiro de Jair Bolsonaro, que acaba de ser eleito para mais dois anos no Conselho de Direitos Humanos da ONU. Por uma questão de defesa de Israel, a administração Trump decidiu se retirar do órgão. Mas deixou dentro da sala alguns de seus maiores aliados, entre eles o Brasil, Polônia e República Tcheca. Nos últimos meses, a Casa Branca já garantiu a presença do Brasil em declarações conjuntas que visavam questionar a reivindicação de "novos direitos", principalmente na área de saúde.
São governos que assumem uma postura sobre costumes e valores próximas às ideias da administração conservadora de Trump. Entre os pontos defendidos está o combate a qualquer brecha que se permita falar de "igualdade de gênero", direitos reprodutivos e mesmo educação sexual completa.
Processo não tem supervisão, dizem democratas
A iniciativa americana, porém, tem gerado duras críticas por parte de organizações que formam o pilar internacional dos direitos humanos. O temor é de que a nova comissão e as novas alianças internacionais caminhem para o estabelecimento do direito natural como base de uma ofensiva conservadora.
Numa recente audiência diante da comissão, o diretor-executivo da Human Rights Watch, Kenneth Roth, afirmou estar preocupado com o destino do trabalho encomendado pelo governo americano. Sua avaliação era de que o fracasso dos direitos humanos estava relacionado à incapacidade de governos de cumprir o que já estava estabelecido como tal. E não por conta da criação de novos direitos, como sugeria Pompeo.
Ele ainda alertou que o que saísse daquela comissão teria o potencial de ter um impacto global, principalmente depois que o Departamento de Estado deixou claro que as conclusões dos trabalhos ajudariam a nortear a diplomacia americana.
Num recente artigo escrito para o Washington Post, a escritora Katherine Marino alertou que a iniciativa era uma ameaça à igualdade sexual, direitos LGBTQ e saúde reprodutiva. Ela lembra que, para Glendon, nem todos os direitos das mulheres deve ser considerado como um direito universal.
Marino ainda advertia que tais posturas, uma vez assimiladas à política externa americana, legitimaria o corte de verbas do governo para programas no exterior que pudessem ser entendidos como pró-aborto.
Já a Anistia Internacional insistiu que simplesmente não existe motivo para rever o arcabouço dos direitos humanos. "Este governo tem trabalhado ativamente para negar e retirar as proteções de direitos humanos", disse Joanne Lin, representante da Anistia.
Dentro dos EUA, a iniciativa também gerou críticas. Senadores democratas enviaram uma carta atacando o fato de que o processo está ocorrendo sem a supervisão do Congresso. De acordo com o documento, uma parcela dos membros "tem opiniões hostis aos direitos das mulheres ou apoiam posições contrárias às obrigações do tratado dos EUA".
Ainda assim, o governo americano vai adiante com a ideia que tem o potencial de redefinir o conceito de direitos humanos no mundo.
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