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terça-feira, 12 de janeiro de 2021

Quão baixo, quão fundo, uma sociedade pode descer, por vezes despencar, literalmente? - Paulo Roberto de Almeida

Quão baixo, quão fundo, uma sociedade pode descer, por vezes despencar, literalmente?

  

Paulo Roberto de Almeida

(www.pralmeida.orghttp://diplomatizzando.blogspot.com)

[Objetivoreflexões sociológicasfinalidadedebate público]

  

Nós, os incluídos, os supostamente iluminados, esclarecidos e informados, gostamos de pontificar, sobre isto e mais aquilo, sobre o sentido da História e sobre os destinos do mundo. Gostamos de dar lições, sobre isto e aquilo, apreciamos que outros apreciem nossa sapiência, nossas certezas, nossas conclusões inteligentes e nossos julgamentos definitivos, como uma espada de Dâmocles, como a guilhotina certeira, alinhada com a Deusa da Razão. 

Estamos certos de atravessar, neste momento, a mais horrível experiência de governança em 130 anos de República, em 200 anos de Estado independente, em 520 anos de povo, no prelúdio da nação. Não ousamos imaginar que pudéssemos ter um governo tão ruim, tão horroroso, tão inepto, tão ignorante, tão calhorda, tão mentiroso, tão sem noção, sem destino, sem projeto, sem sentido, sem nada. 

Pensávamos, até pouco tempo atrás, que já tínhamos visto tudo, experimentado tudo em matéria de mediocridade, arrogância e desfaçatez, com relação aos princípios elementares da adesão aos valores democráticos e de respeito aos princípios de direitos humanos, ou de simples humanidade. 

 

E, no entanto, mirando retrospectivamente, somos obrigados a reconhecer que, num passado não muito remoto, de horrores e de opressão, sob ditaduras expressas, mesmo a noção de governança, de sentido de direção nas políticas públicas, de construção de estruturas e de patrimônio — inclusive cultural — não se perdeu, em meio aos estertores da liberdade, da luta pela livre expressão, do próprio arbítrio e prepotência do Estado, da arrogância dos donos do poder. No negrume do Estado Novo, na repressão da ditadura militar, tínhamos a opressão dos poderosos, e vinha junto todo um programa de construção de um país, de certa ordem na economia, de certo sentido de direção, de algum esforço institucional, ainda que von Oben, pelo alto, aquela organização prussiana, que colocava o Estado no centro de tudo, e que expressava, de alguma forma, certa racionalidade intrínseca ao projeto que autoritariamente nos era oferecido, ou melhor, imposto.

Racionalidade, ordem, sentido de direção, construção institucional ou material, progresso (à maneira de cada etapa), tudo isso é o que menos temos atualmente. Estamos no meio do pântano, levados a esmo por um psicopata perverso, expostos aos risos do mundo por um outro maluco e suas alucinações exteriores, alguns poucos técnicos setoriais que machucam suas biografias ao servirem uma patota de medíocres e incompetentes, civis e militares, mandarins do Estado ou eleitos oportunistas, todos eles prolongando essa agonia de dois anos, e que pode se prolongar por mais dois, preservando, ou até ampliando, as duas grandes tragédias corrigíveis que temos: a não educação e a corrupção política. Temos outras tragédias, sistêmicas ou estruturais, como as desigualdades sociais, a baixa inovação e uma produtividade também medíocre, todas essas coisas que não serão resolvidas agora, sequer encaminhadas, e que podem ainda ser agravadas, no mar de incultura, de estupidez, de calhordice que nos é oferecido atualmente pelo déspota eleito por uma dessas surpresas da História. 

Acho que nunca imaginamos que poderíamos descer tão baixo no horror da mediocridade política, do retrocesso cultural, na promoção da ignorância, com demonstrações públicas da bestialidade do psicopata perverso que nos desgoverna. 

 

E no entanto, no entanto, se deixarmos para trás nossas experiências de ditaduras tecnocráticas, veremos que ainda não somos, não fomos, talvez não sejamos o povo mais infeliz de um planetinha redondo — mas fragmentado — que já conheceu horrores bem mais bárbaros em diversos episódios de um longo itinerário de ódios, guerras, massacres, tiranias assassinas.

 

Sem remontar muito longe, vamos começar pela destruição do segundo templo do povo judeu, que deu início a uma diáspora que ainda não terminou; vamos continuar por invasões de hordas de bárbaros literais, destruindo impérios e nações dotadas de civilidade; passemos ao empreendimento insano das cruzadas, que não só deram continuidade aos massacres de judeus em seu caminho, como também impuseram à história mundial uma oposição entre cristianismo e islamismo que não precisaria, não deveria ter ocorrido e que prolonga seus péssimos efeitos até a atualidade; e as guerras de religião na Europa, e as conversões forçadas disfarçadas de “catequese” que os europeus “judaico-cristãos” impuseram a maior parte do mundo conquistada e dominada durante cinco séculos?; e o nefando crime da escravidão africana e todos os horrores do tráfico transcontinental durante quatro séculos pelo menos?; os pogroms que continuaram contra o povo judeu, em vários redutos da supostamente humanitária religião cristã; e o novo expansionismo colonialista europeu, que assistiu à primeira criação de campos de concentração por iniciativa da liberal Grã-Bretanha?; o nacionalismo e o racismo ascendentes, que levaram a Europa a uma segunda guerra de trinta anos, arrastando o resto do mundo a uma sanha destruidora jamais vista desde quando exércitos conquistadores simplesmente eliminavam os prisioneiros homens e reduziam as mulheres a servas ou escravas; o fascismo totalitário começou na Itália, mas foi na Alemanha de Goethe e de Wagner que ele foi levado à exacerbação tirânica sob o comando do psicopata Hitler, partindo da Noite dos Cristais para caminhar para os campos de extermínio “científico”; não esquecer tampouco o fascismo expansionista e militarista japonês, que perpetrou barbaridades na China equivalentes ou até piores que os nazistas cometeram na Europa central e oriental; antes e depois disso ainda tivemos  o Gulag soviético com seu cortejo de “eliminados como inimigos do povo e do Partido”, sob as ordens do psicopata do Stalin, logo seguido pelo maoísmo demencial, acumulando mortos aos milhões, no Grande Salto para a frente, ou na Revolução Cultural; vamos falar também dos “killing fields” do Camboja e de massacres balcânicos ou africanos, levando dezenas ou centenas de milhares à morte pelo fuzil ou pelos machetes. 

 

Não, não somos o povo que mais sofreu na Terra, como se pode constatar, depois de relembrar todo esse cortejo de horrores ao longo de dois mil anos de história; mas não precisa ir muito longe: o nazismo hitlerista perpetrou os crimes mais bárbaros de toda a história da humanidade menos de 80 anos atrás, três gerações apenas. Nos anos 90 sérvios e hutus estavam trucidando concidadãos; e no Oriente Médio, na África, em outras paragens, nas favelas do Rio de Janeiro outros crimes bárbaros são cometidos, além do número inaceitável de feminicídios e crimes contra homossexuais e transgêneros. Não, ainda não nos livramos da barbárie, e parece que ainda vai demorar um pouco.  

 

Não querendo ser leniente com a realidade dos retrocessos no Brasil atual, o fato é que atravessamos um mau momento de nossa história, talvez o pior, às vésperas do Bicentenário, que deveria ser um momento de congraçamento, de unidade, de grandes balanços e de projetos para o futuro. Provavelmente, não teremos nada disso: apenas mais divisão, mais política do ódio, mais mediocridade e mais estupidez. Vamos aproveitar, nós, os iluminados, para avaliar nossos próprios erros, nossas desuniões na defesa de picuinhas particularistas, em lugar de consolidar o edifício democrático, a promoção da educação, a luta contra as desigualdades e a promoção dos direitos humanos. 

Num certo sentido, ainda somos um povo de selvagens, com alguns costumes bárbaros — entre os quais eu colocaria a corrupção política, dos políticos e dos donos do dinheiro — e várias outras deficiências culturais. 

Vamos avançando aos trancos e barrancos, como disse uma vez Darcy Ribeiro. Um dia acertamos e deslanchamos para o progresso e o bem-estar da maioria da população. Não sei quando isso virá. O que sei é que se costuma aprender mais com os fracassos do que com os sucessos.

Então, estamos servidos: estamos em meio a um dos maiores, senão o pior dos fracassos de nossa trajetória como povo, como nação e como sociedade. Aproveitemos para melhorar, já que, como dizia Mario de Andrade, o progresso também é uma fatalidade.

 

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 3841: 12 de janeiro de 2021


Um comentário:

Samuel de Almeida Proença disse...

Muitíssimo obrigado por tuas palavras.