46 Deus nos Acuda (semana 46)
[Nota PRA: Nosso Cronista Misterioso tem uma cultura enciclopédica, que atinge vários campos do conhecimento humano, material, vegetal e animal, e até literário, da mais refinada literatura às novelas da TV. Aqui ele se socorre de uma dessas novelas dos velhos tempos, “Deus nos Acuda”, para sinalizar que o Brasil já não tem mais salvação a não ser com alguma intervenção divina, a menos que a população se levante contra o degenerado, ou seja, o inominável dirigente do qual eu não digo o nome, mas o considero Genocida (agora pode; o STF disse que tempos liberdade para xingar o sujeitinho). Novelas, como vocês sabem, são coisas extremamente poderosas no Brasil, capazes até mudar a realidade do mundo lá fora, provocar golpes de Estado, assassinatos, sei lá; eu, por exemplo, estou bastante convencido de que, muito mais do que a pílula anticoncepcional, foram as novelas as principais responsáveis pela transição demográfica no Brasil, provocando baixas significativas nas taxas de fertilidade, de natalidade, e quem sabe até de mortalidade. Chute meu, claro...]
Quem me conhece sabe que eu sou um convicto e desenvergonhado admirador da teledramaturgia brasileira. Não se trata de uma “confissão” que faço encalistrado, pois as telenovelas são a mais típica forma de expressão audiovisual brasileira, são a nossa verdadeira Hollywood. Traduzem nossos anseios e desesperos, nossas esperanças e paixões e nossa mais pura brasilidade, em todas as suas qualidades e defeitos.
Já falei nestas crônicas de algumas obras indiscutíveis de Dias Gomes, mas hoje me veio à mente uma novela que acompanhei em uma das minhas encarnações em Brasília, no início dos anos 90, e que acredito ser estranhamente atual. Eram os anos do Governo Collor (1990-1992), do confisco da poupança, da hiperinflação galopante, do desespero. Mas também foram os anos do Impeachment e do início do governo de reconstrução de Itamar (1992-1995), da esperança. Em 1992, entre mais um escândalo e os passos rumo ao impedimento de Collor — a quem ainda nutro rancor, embora incomparavelmente menor ao desprezo que nutro pelo calhorda Bolsonaro —, Silvio de Abreu trouxe à tela “Deus nos Acuda” (1992-1993).
Na novela, Deus está preocupado com o tamanho do cataclisma em que se enfiou o Brasil ao longo das décadas que foi supervisionado pela Anja Celestina, Dercy Gonçalves. Ante o desleixo de Celestina, Deus faz um ultimato à Anja, ou arruma o país ou será condenada à mortalidade e, pior, uma mortalidade de aposentada brasileira. Desesperada com o prospecto, sem seguridade social nem acesso à saúde, Celestina passa a interferir na vida dos brasileiros e tenta salvar o país do lodaçal. Havia quem dizia à época que fora Deus, Sarney e até o PT quem acelerara o Impeachment, mas eu creio que foi Celestina
Além da Anja, a trama contou com um divertidíssimo personagem arquetípico que emulava as mazelas socioeconômicas do país, símbolo dos erros que nos trouxeram até aqui. Aqui não, até lá no governo Collor (acho que as similaridades podem ter me confundido). Brasílio da Silva, o Brasil, interpretado por Jorge Fernando, também diretor da novela, era um bêbado que vivia largado nas mesas das boates e que sempre era hostilizado pelos outros personagens, os brasileiros.
Os brasileiros, em catarse épica, gritavam “Levanta, Brasil!” E diziam que Brasil era um preguiçoso e uma vergonha para seus filhos que, há muito, fugiam para outros países por vergonha do pai. Barbudo, sujo, bêbado e com roupas que emulam as cores da seleção brasileira (em notável semelhança com a atualidade), Brasil era a visão que tínhamos daquele país.
Muito tempo se passou e o orgulho de ser brasileiro foi sendo lentamente reconstruído depois dos 21 de ditadura militar e dos 7 anos e meio de governos Sarney e Collor. Aquela novela já não deveria fazer mais nenhum sentido depois de quase 30 anos de sua estreia, mas aparentemente faz. Vamos reconstruir, disso tenho certeza, mas quanto tempo hemos de demorar? Não sei, mas sei que demoraremos tanto mais quanto deixarmos Bolsonaro agir livre e desimpedido.
Levanta, Brasil!
Ministro Ereto da Brocha, OMBUDSMAN
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