Resenha de livro:
Paulo Roberto de Almeida:
Apogeu e demolição da Política Externa: itinerários da diplomacia brasileira
Curitiba: Appris, 2021, 292p.
Ruben Maciel Franklin
Introdução
Lançado em 2021, o livro Apogeu e demolição da Política Externa: itinerários da diplomacia brasileira, do sociólogo e diplomata Paulo Roberto de Almeida, se propõe a elucidar os problemas centrais que percorreram as Relações Internacionais do Brasil nas últimas três décadas. Abrange, então, um período que vai desde a estabilização democrática, em meados dos anos 1990, até a implementação hodierna do programa fundamentalista e ideológico de Jair Messias Bolsonaro.
O “apogeu”, para o autor, significou uma maior visibilidade de atuação do Itamaraty - o think tank do Ministérios das Relações Exteriores (MRE) -, a partir de relações consensuais e relativamente coordenadas entre os chefes de Estado e diplomatas. Tal situação havia adquirido ânimo com a presidência de Fernando Henrique Cardoso (1994 – 2002), e se manteve, mesmo com alguns reveses, nas orientações do Governo Lula (2003 – 2010) até o encerramento do lulopetismo, quando do impeachment de Dilma Rousseff e a breve promoção do vice-presidente Michel Temer. A partir de 2019, contudo, após o triunfo da candidatura de Jair Messias Bolsonaro à Presidência da República, a Política Externa brasileira conheceria seus anos de “demolição”, sendo submetida a uma reformulação com base em teorias da conspiração que enxergavam o globalismo, o comunismo e o “marxismo cultural” como grandes inimigos do mundo ocidental, numa assimilação esquizofrênica dos slogans de Donald Trump e da extrema-direita estadunidense.
É verdade que o autor se concentra no tempo presente, o que lhe coloca diante das armadilhas de interpretar os eventos no “calor da hora”, quando as ações dos sujeitos históricos se mostram dúbias e atravessadas pelas motivações políticas e ideológicas de sua época. Por outro lado, ele também é bastante arguto em considerar as múltiplas e contraditórias relações temporais que influenciaram os itinerários da nossa diplomacia. Para ele,a compreensão do que significou (e do que significa) a ruptura bolsonarista só é possível mediante uma investigação que situe os conceitos fundamentais e as bases operacionais da diplomacia brasileira nos últimos dois séculos, isto é, a partir das experiências próprias dosurgimento da diplomacia profissional e do Estado independente pós-1822.
O autor
Paulo Roberto de Almeida é Licenciado em Ciências Sociais (Université Libre de Bruxelles, 1975), possui Mestrado em Planejamento Econômico e Economia Internacional (Universidade de Antuérpia, 1977) e Doutorado em Ciências Sociais (Université Libre de Bruxelles, 1984). Entre os anos de 1996 e 1997, elaborou tese no Curso de Altos Estudos do Instituto Rio Branco(IRBr), do Ministério das Relações Exteriores (MRE). Diplomata de carreira, concursado em 1977, o autorexerceu diversos cargos na Secretaria de Estado do MRE e em embaixadas do Brasil no exterior, sendo ministro-conselheiro na Embaixada do Brasil em Washington (1999- 2003) e Assessor Especial do Núcleo de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (2003 – 2007). Entre agosto de 2016 e março de 2019, exerceu o cargo dediretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (IPRI), da Fundação Alexandre Gusmão, órgão vinculado ao Itamaraty.
Em conjunto com a carreira diplomática, ele acumulou vasta experiência na pesquisa e docência universitárias, destacando-se o período em que foi orientador no Mestrado em Diplomacia do IRBr, entre 2004 e 2009, e professor de Economia Política no Programa de Pós-Graduação em Direito no Centro Universitário de Brasília (Uniceub), de 2004 a 2021.Desde o início dos anos 1990, publicou dezenas de livros e artigos em que investiga os mais diferentes objetos na disciplina das Relações Internacionais do Brasil: historiografia, integração regional e diplomacia econômica, além da produção de ensaios sobre história das ideias políticas. Seu livro Apogeu e demolição da Política Externa encerra um conjunto de cinco obras que ele denominou de “ciclo bolsolavista”: Miséria da diplomacia (2019), Uma certa ideia do Itamaraty (2020), O Itamaraty num labirinto de sombras (2020) e O Itamaraty sequestrado (2021). Nestas, o autor avalia o processo deideologização da política externa a partir da eleição de Jair M. Bolsonaro, bem como suas implicações negativas para a identidade e performance do país nos foros multilaterais.
É importante frisarmos a proeminência que o autor adquiriu no campo da historiografia brasileira das relações internacionais, sendo nome recorrente nas ementas de disciplinas universitárias, ao lado de outros intelectuaiscontemporâneos, tais como: Paulo F. Vizentini, Norman B. dos Santos e Henrique A. Oliveira. Seu livro Relações internacionais e política externa do Brasil: dos descobrimentos à globalização, lançado em 1998, é uma das poucas interpretações que realiza uma síntese histórica das relações internacionais do Brasil de modo a situar as linhas gerais de atuação da diplomacia e sua relevância nos projetos de formação da nação.
O(s) Contexto(s)
A publicação de Apogeu e demolição da Política Externa deve ser encarada como um projeto intelectual que reúne dimensões científicas, políticas e ideológicas. Éimpossível menosprezarmos o lugar social de seu autor, que é um diplomata de carreira, com décadas de experiência tanto no MRE quanto na docência universitária. É a partir desse lugar que ele investe contra as “deformações” da diplomacia brasileira inauguradas pelo governo de Jair M. Bolsonaro, sendo uma testemunha imediata das transformações ocorridas dentro do Itamaraty, assim como um investigador que procurasistematizar essa conjuntura de turbulências com relativograu de distanciamento. A tensão dialética entre subjetividade e objetividade está no escopo da obra, e o autor nunca deixa que a sua defesa da tradição diplomática (isonomia, hierarquização, profissionalização) se reduza ao terreno metafísico. As feições da diplomacia bolsonarista são descobertas no campo teórico-metodológico das Ciências Sociais, pelo qual temos acesso aos modelos descritivos, comparativos e explicativos que apresentam os condicionantes históricos e as ações políticas que vieram a estabelecer o “apogeu” e a “demolição” da política externa.
A polarização ideológica, sobretudo, nas últimasdécadas, trouxe implicações indeléveis sobre o papel das relações exteriores no tocante ao desenvolvimento social e econômico do país. A diplomacia se transformou numaplataforma de luta política no interior de uma democracia representativa e pluripartidarista, isto é, uma arena de embates sobre as alternativas e/ou caminhos de inserçãodo Brasil no capitalismo internacional. Quanto a isso, o autor deixa entrever uma diplomacia que foiconstantemente sacrificada em prol de interesses ideológicos ou personalistas de algum presidente. A“Nova República”, a partir dos anos 1980, fora gerida por uma “diplomacia presidencial” que oscilou entre a abertura econômica e o nacionalismo, o pragmatismo (FHC) e o personalismo (Lula); não obstante, esse tipo de negociação se justificasse pela busca permanente dos interesses nacionais. Nesse ínterim, o livro averígua como a ascensão de uma nova direita, radical e sectarista, criouuma atmosfera favorável para o êxito eleitoral de Jair M. Bolsonaro e, consequentemente, de validação das teorias conspiratórias (marxismo cultural, anticomunismo e globalismo) que viriam a demolir os pilares do Itamaraty.
Tem-se em vista, igualmente, a dinâmica de interação entre política interna e política externa, ocasião em que o autor desenvolve uma crítica mordaz ao negacionismo e revisionismo histórico, táticas bolsonaristas que incidiram na desconstrução da imagem positiva do Brasil noexterior. A relativização da pandemia covid-19, a recusa da política ambiental e o desrespeito aos direitos dasminorias sociais (indígenas, quilombolas, mulheres, negros, LGBTQI+ etc.) implodiram o protagonismo da nação nos fóruns internacionais, transformando-a num “pária diplomático”. É daí que Paulo Roberto de Almeida se ocupa de um novo planejamento estratégico para oMRE, almeja uma diplomacia profissional de caráter intelectual, hierárquico e consultivo, imagina uma reviravolta na ideologização interna/externa e um conjunto de medidas outras no plano multilateral e de integração regional que reinventasse a projeção internacional do Brasil.
A obra e comentários à mesma
Dos seis capítulos que compõem o livro, cinco deles analisam as diferentes conjunturas históricas da Política Externa brasileira. Eles possuem uma estrutura mais ou menos similar, embora com temáticas específicas (historiografia, periodização histórica, processos decisórios, diplomacia presidencial e profissionalização). Num primeiro momento, o autor se atém ao elitismo intelectual e aristocrático dos regimes monárquicos, depois passa um olhar sobre a orientação hierárquico-comercialista da República Velha (1889 – 1930), para, então, destacar o personalismo e a busca pela autonomia erguidas no varguismo (1930 - 1945). Mais adiante, ele desenvolve o significado de soberania, alinhamento, autonomia e/ou independência nacionais a partir do pragmatismo assumido pela Ditatura Militar (1964 – 1985), que, a despeito, abriria o horizonte para o status de profissionalização e unificação dos processos decisórios nos anos de redemocratização.
Uma vez expostos as oportunidades e os obstáculos encontrados pela diplomacia brasileira naquela que seria sua tarefa máxima, a contínua modernização econômica, encontramos um sexto e último capítulo que mapeia as ações a serem executadas no intuito de reconstrução do papel do Itamaraty. É importante frisarmos a importância do sexto capítulo no quadro geral do livro, pois este funciona como uma agenda programática que informa alternativas para a superação daquilo que Paulo Roberto de Almeida chama de “antidiplomacia”, ou de “diplomacia bolsolavista”, isto é, as práticas megalomaníacas implementadas pela chancelaria de Bolsonaro (inspiradas nas ideais de Olavo de Carvalho) que contrariavam uma longa tradição de deferência ao Direito Internacional, de busca pelos interesses nacionais e de não-intervenção em assuntos externos. Sendo assim, obtemos um exame sucinto dos princípios que deveriam orientar as relações do Brasil no capitalismo globalizado, tais como multilateralismo, bilateralismo e regionalismo, além de proposições relativas às políticas públicas (meio ambiente, educação, renda social, combate à corrupção) a serem negociadas no âmbito de uma Política Externa que fosse conduzida como parte integrante de um projeto maisamplo de desenvolvimento nacional.
Quanto a isso, enxergamos igualmente uma ênfase sobre as “grandes linhas de atuação” da Política Externa, algo que percorre a obra como um todo. A começar pelo primeiro capítulo, intitulado “Relações Internacionais do Brasil: uma síntese historiográfica”, no qual o autor analisa um conjunto de obras que, desde meados do século XIX, interpretaram os contornos da história do Brasil tendo como medida o lugar de destaque assumido pelas Relações Internacionais. Nesse ponto, o autor demarca os pontos de inflexão de uma historiografia brasileira da Relações Internacionais, optando por uma breve análise daquelas obras que ele considera como sendo as “leituras panorâmicas” ou “sínteses históricas” de uma diplomacia com feições nacionais.
Sua periodização se detém inicialmente na “fase historicista”, cujo principal nome é Francisco A. de Varnhagen, o qual elabora a uma leitura positivista e triunfalista do Brasil que é abraçada, posteriormente, pelos manuais escolares de João Ribeiro e de Oliveira Lima. Na sequência, uma “fase cientificista” seria protagonizada por Pandiá Calógeras, que, entre 1927 e 1933, publicaria os três volumes da História da Política Exterior do Império. Somente no final dos anos 1950 e início dos anos 1960, como resultado das aulas ministradas no Instituto Rio Branco (IRBr), Delgado de Carvalho (1959) e Hélio Vianna (1961) publicariam seus manuais didáticos de história diplomática, num momento em que a diplomacia começaria a angariar algum espaço nas universidades. À revelia de sua metodologia linear, cronológica e descritivados eventos, ou seja, uma história essencialmente política, Paulo Roberto de Almeida assinala que “uma das características detectadas nesses trabalhos acadêmicos [“fase academicista”] foi o objetivo de identificar as grandes linhas da política externa brasileira, que teriam influenciado ou permitido (ou não) o atingimento da autonomia nacional” (ALMEIDA, 2021, p. 57).
A historiografia, grosso modo, evidenciaria uma atuação propositiva e relativamente autônoma do Brasil cenário global. As leituras sobre o processo de independência, a descrição do funcionamento dos tratados comerciais e das questões em torno do tráfico atlântico, assim como das negociações relativas às fronteiras e circulação no Rio da Prata durante o século XIX, podem ser vistas como os primeiros ensaios de projeção da nação recém-independente. Uma disposição político-ideológica que fora acompanhada pelo historiador José Honório Rodrigues em suas notas de aula para o IRBr, datadas de 1946 a 1956, mas publicadas somente em meados dos anos 1990, como Uma história diplomática do Brasil. De acordo com Paulo Roberto de Almeida, os novos e originais manuais de História Diplomática, de Amado Cervo & Clodoaldo Bueno (1992) e Rubens Ricupero (2017), surgiriam apenas nos anos 1990, acompanhando as exigências do crescimento da área no ensino superior e agora sob a chancela teórico-metodológica do estruturalismo (“as forças profundas”), do desenvolvimentismo e da percepção de uma identidadenacional. Em resumo, um exame da historiografia seria a chave para compreendermos os objetivos permanentes (e nunca inteiramente alcançados) da política externa brasileira, “(...) como sendo a afirmação e a consolidação da independência nacional, bem como a busca do desenvolvimento econômico” (ALMEIDA, 2021, p. 57).
A obra em questão, Apogeu e demolição da Política Externa, poderia muito bem ser incluída nesse rol historiográfico. Em seu segundo capítulo, “As Relações Internacionais do Brasil em perspectiva histórica”, o autor esboça as linhas de continuidade e ruptura da diplomacia brasileira num exercício de periodização que se inicia no Império (1822 – 1889) e alcança a “antidiplomacia” bolsonarista. Ele percorre algumas etapas cruciais de evolução das Relações Internacionais, sempre colocando em relevo a condição inegociável de autonomia e reciprocidade no que se refere as escolhas estratégicas dos agentes e instituições no sentido de construção da Nação. Exemplo significativo seria o da Era Vargas, no qual a atuação engenhosa de Oswaldo Aranha garantiria a aliança com os Estados Unidos no contexto de Segunda Guerra (1939 – 1945) e, com isso, os subsídios necessários para a implementação de uma base siderúrgica. Até mesmo durante o Regime Militar, de viés autoritário e tecnocrata, houve um expediente de não alinhamento aos interesses imperialistas estadunidenses e manutenção de uma margem de liberdade para busca de novos mercados, além de elevada autonomia para o crescimento da diplomacia profissional.
A transição para o regime democrático em meados dos anos 1980, recebendo o legado terceiro-mundista e desenvolvimentista acalentando pelos militares, bem como o endividamento externo advindo das aventuras do “Brasil Grande Potência”, teve que ser amparada por uma diplomacia presidencial que se propusesse a inserir o país num plano mundial caracterizado pelo desaparecimento da URSS e expansão do capitalismo globalizado. Paulo Roberto de Almeida afirma que, entre 1985 e 2002, os chefes de Estado (Sarney, Collor e Franco), em especial,Fernando Henrique Cardoso, acionaram o staff diplomático para avançarem nos objetivos de abertura econômica e estabilização financeira. Daí saíra a criação de uma nova moeda, o Plano Real, além do ímpeto pelas negociações inter-regionais e busca pela integração na América do Sul (MERCOSUL).
Essa diplomacia presidencial teria sua culminância na presidência de Lula, o qual, a partir de 2003, inaugurou uma espécie de diplomacia às avessas, onde as decisões partiam do chefe de governo na direção dos secretários e diplomatas. Altos investimentos publicitários na figura do Presidente, seguindo-se de visitas aos líderes de países vizinhos ou das grandes potências, trouxeram uma “roupagem personalista” no exercício diplomático. Um tipo de diplomacia cujas metas se confundiam com a plataforma ideológica do Partido dos Trabalhadores (PT), isso em seu apoio aos candidatos progressistas na América Latina e a abertura de embaixadas em países africanos e asiáticos, o que, em teoria, criaria um ambiente de relações amistosas no âmbito do Sul Global. O lulopetismo, de tal modo, cultivou suas próprias antinomias em matéria de Política Externa: foi personalista, mas intensificou as relações bilaterais e multilaterais; projetou uma dinâmica de interação Sul-Sul, sem que isso fosse revertido em saltos mais significativos na integração regional ou redefinição do lugar periférico ocupado pelo Brasil nos organismos internacionais.
É preciso ressaltar que o Itamaraty, nesse período, se mantivera como lugar de razoabilidade, resguardando seus matizes de multilateralismo e isonomia nos processos decisórios. Algo que foi preconizado no curto intervalo de tempo em que Michel Temer esteve à frente do governo, quando parecia que a Casa finalmente retornaria aos seuspadrões tradicionais de disciplina e hierarquização. Não obstante, a corrida eleitoral de 2018 e sua manifesta polarização entre esquerda e direita, colocaria as Relações Internacionais no “olho do furacão”. A vitória de um candidato de extrema-direita, Jair Messias Bolsonaro, sem que apresentasse qualquer programa relativo à Política Externa, colocaria em xeque as raízes históricas e fundacionais da diplomacia nacional.
Inicia-se, então, o que Paulo Roberto de Almeida anuncia como a “diplomacia bizarra” de Bolsonaro, com a adoção de métodos e discursos “nunca antes” vistos em matéria de defesa dos interesses nacionais. Primeiramente, o diplomata recai sobre o inútil programa de Política Externa apresentando junto ao TSE, o qual se parecia mais com um panfleto partidário baseado em abstrações teóricas e revanchismos ideológicos. A ideia era romper com os princípios de cooperação e de não-intervenção, anulando os conceitos de multilateralismo e universalismo do Itamaraty ao sugerir uma subserviência inédita aos Estados Unidos, naquele momento representando pela figura de Donald Trump. Na prática, os primeiros anos de governo Bolsonaro reduziram o Brasil à condição de “pária internacional”. Além da descortesia do Presidente com os líderes estrangeiros (França, Alemanha, Chile) e do crasso louvor às ditaduras, o que se viu foi um negacionismo em questões extremamente relevantes da política exterior, como Meio Ambiente, Direitos Humanos, e, sobretudo, na ausência de mecanismo de combate à pandemia covid-19.
No terceiro capítulo, “Processos decisórios na história da Política Externa brasileira”, obtemos um quadro geral de como o fundamentalismo olavista (“o bolsolavismo”) demoliu a estrutura orgânica – formalizada, hierarquizada, burocratizada – do MRE. Na contramão de reconhecida profissionalização dos “negócios do exterior” que, desde o final do século XIX, se pautava na seleção e formação de diplomatas, aspecto que se consolidou quando da criação do IRBr, em 1945, Bolsonaro iniciou uma reformulação drástica nos quadros decisórios do Itamaraty no sentido de atender às demandas de sua “franja lunática”.
A ausência de qualquer sinal aparente de processo decisório no governo de Bolsonaro – que, na verdade, representa um amálgama altamente diversificado de grupos de influência, sem qualquer qualificação intelectual reconhecida, com grande ênfase em círculos conservadores ou de extrema-direita, quando não reacionários e saudosistas da ditadura militar – pode ser aferida antes mesmo do início do seu governo, quando o candidato e membros da sua esfera familiar começaram a anunciar as grandes linhas de um governo que já prometia, de imediato, estremecer as bases tradicionais de funcionamento das políticas públicas, em particular da política externa. Com efeito, desde vários meses antes de sua eventual eleição já se sabia que o candidato, deum anticomunismo primário que faria corar os generais mais comprometidos com a ditadura militar, exibia, em qualquer ordem que se queira destacar, as seguintes “peculiaridades”: notória ojeriza à China comunista; uma especial admiração por Israel e pelos Estados Unidos (mas em especial pelo presidente Trump); que ele odiava o “marxismo cultural” das universidades brasileiras, o “politicamente correto” dos círculos progressistas, intelectuaise da esquerda em geral; que ele detestava todas as medidas em favor de minorias – sua homofobia foi várias vezes ressaltada, por ninguém menos do que ele mesmo –, com ênfase nos direitos indígenas, das mulheres, de eventuais contraventores (naquela visão fascista de que “bandido bom é bandido morto”); que desprezava qualquer compromisso com políticas de sustentabilidade (um conceito para ele não só inexistente, como sobretudo impertinente); que pretendia retomar a exploração de áreas protegidas; que pretendia abolir determinadas medidas protetivas no campo da fiscalização dessas áreas; que estimulava abertamente o armamentismo, os infratores de normas legais (tráfico, caça e pesca etc.) e várias outras coisas mais, num catálogo bastante amplo de “inovações” conceituais e práticas(ALMEIDA, 2021, p. 143 e 144)
Já no terreno da Política Externa,
(...) também se sabia que o presidente e seu chanceler designado pretendiam dar combate direto à “esquerdalha” latino-americana, escorraçar o Foro de São Paulo do continente – sob recomendação do seu guru sempre elogiado, o sofista expatriado na Virgínia – e pretendiam fazer aliança com outros líderes de direita da região e fora dela. A violação dos processos decisórios típicos do Itamaraty teve início ainda antes da assunção do governo, quando um grupo de neófitos e amadores, acompanhados por não mais do que três diplomatas engajados na nova equipe, conduziu à mais radical reforma da estrutura e dos procedimentos no Itamaraty, sem qualquer consulta à Casa, a qual “desabou” sobre a instituição nos primeiros dias do bizarro governo: para sinalizar “mudança radical”, todos os nomes de todas as unidades do organograma do Itamaraty foram alterados (em alguns casos com substitutivos absolutamente ridículos, abusando do conceito de soberania, por exemplo), o que poderia representar, talvez, uma mera mudança cosmética, mas que na prática significou a alteração de vínculos de subordinação e uma pequena revolução na estrutura do processo decisório, justamente. Divisões foram extintas, outras criadas, ao sabor das alucinações da pequena patota que trabalhou clandestinamente, ou pelo menos em segredo, no âmbito da equipe de transição: todos os relatórios sobre o “estado da arte” da agenda diplomática em curso foram prestados pelo governo Temer e pelo Itamaraty do ministro Aloysio Nunes, mas supõe-se que pouco foi utilizado naquelas poucas semanas febris (ALMEIDA, 2021, p. 144).
De algum modo, Jair Messias Bolsonaro pode ser encaixado no conceito de “diplomacia presidencial”, que éo mote central do quarto capítulo, “A política da Política Externa: as várias diplomacias presidenciais”. O que lhe diferencia do protagonismo de outros presidentes na história da República (Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek, Ernesto Geisel, José Sarney, Fernando H. Cardoso e Lula), é a completa inversão da tendência de autonomização e busca do universalismo nos acordos geopolíticos. Enquanto os governos anteriores investiram sua personalidade na defesa de um projeto demodernização econômica e ampliação da rede de negócios internacionais, o radicalismo de Bolsonaro tendia a fazer do país uma extensão da política exterior dos Estados Unidos. Em resumo, o personalismo autoritário bolsonarista erigiu uma Política Externa publicista, ideologista, conspiratória, reducionista, subserviente e amadora. Nas palavras de Paulo Roberto de Almeida (2021, p. 195), “se existe alguma liderança presidencial, é no sentido da destruição, da demolição das políticas e das instituições existentes, com arremedos de ações disparatadas em seu lugar”.
Balanço
A “antidiplomacia” a que o autor faz alusão se justifica pelo isolacionismo a que o Brasil foi submetido no que concerne aos principais debates internacionais sobre educação, meio ambiente, aquecimento global, direitos humanos e políticas sociais voltadas para às minorias (negros, indígenas, mulheres etc.). A postura negacionista com relação a essas pautas, somando-se a constante atmosfera de animosidade e de ruptura com os governos progressistas sul-americanos, trouxe enormes prejuízos à imagem do Brasil. A curto prazo, os surtos ideológicos do Presidente inviabilizaram acordos vantajosos entre Mercosul e União Europeia, reduziram a potencial de comercialização de gêneros alimentícios com a China, entre outros parceiros dito “comunistas”, além de ter impulsionado a crise de uma economia já duramente atingida pela pandemia.
Os “anos Bolsonaro” talvez sejam aqueles que melhor representam “O outro lado da glória: o reverso da diplomacia brasileira”, que é justamente o objeto de análise do quinto capítulo. Em duzentos anos de História Diplomática, é certo que o Brasil conheceu uma série de reveses: os tratados comerciais com a Inglaterra no início do século XIX, as etapas de alinhamento americanista no Império e na Primeira República, o endividamento externo do nacional-desenvolvimentismo (de JK aos militares), e, sem dúvida, os avanços e recuos ideológicos das várias diplomacias presidenciais. Todavia, seguindo a trilha do autor de Apogeu e demolição..., nenhum dos fracassos demarcados anteriormente se compara a total deformação das Relações Internacionais do tempo presente. Sua frente capital, a aversão ao “globalismo” (numa leitura superficial sobre ideologia de gênero, multilateralismo, ambientalismo, “marxismo cultural” etc.), visto como um dos pilares de destruição do ocidentalismo, significara uma derrapagem nos julgamentos racionais que nortearam a tradicional diplomacia brasileira. Desse modo, somente um “planejamento estratégico” poderia restaurar as funções de representação, comunicação e negociação do Itamaraty, no sentido de acentuar a inserção internacional do país. A superação desses anos de espetáculo obscurantista teria que vir pela adesão ao Direito Internacional, a construção de parcerias heterogêneas (regionais, continentais e intercontinentais), a previsão de entrada em blocos estratégicos, uma abertura econômica gradual e, por fim, um compromisso com os valores que regem as constituições democráticas.
Segundo Paulo Roberto de Almeida, a diplomacia não pode alcançar tais objetivos isoladamente. Ela é uma das ferramentas subsidiárias que pode influir (ou não) em programas políticos e/ou escolhas vantajosas aos níveismicro e macro. Sua contribuição na elaboração de umprojeto de desenvolvimento social e econômico depende das articulações entre governantes, instituições, sociedade civil e elites locais, observando-se, então, as condiçõesobjetivas de inserção da nação num sistema capitalistaglobal e em contínua transformação.
Ruben Maciel Franklin
Universidade da Integração da Lusofonia Afro-brasileira (Unilab), Ceará, Brasil
Bolseiro de estágio de Pós-Doutorado na Universidade de Coimbra, CEIS20, FLUC
http://lattes.cnpq.br/7015182150922669
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