O golpe de 1964 aos olhos de um adolescente ingênuo
Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.
Em 1964 eu tinha recém-saído do curso primário e iniciado o que se chamava então de curso secundário e não tinha formação política suficiente para compreender o que estava se passando com o país. Adquiri logo depois, justamente sob o impacto do golpe e a partir de 1965 passei a me considerar um opositor do regime e mais adiante um adversário da ditadura, e até mais do que isso.
Mas no golpe não, eu apenas posso repetir o que se passava com uma família pobre — sim, éramos bastante pobres e eu tinha começado a trabalhar muito cedo para ajudar em casa, pois a “renda” da casa era até insuficiente para o básico—e como ela reagia ao ambiente político e social do Brasil logo depois da surpreendente renúncia de Jânio Quadros da presidência da República.
Minha primeira “consciência” política veio justamente das eleições de 1960, que deram uma vitória inquestionável ao estranho político que prometia acabar com a inflação e com a corrupção. Sem entender direito o que se passava, acompanhei meu pai à “cabine” de votação, e me recordo do símbolo usado por Janio: uma vassoura, para varrer os dois grandes males do Brasil, que atormentavam os pobres e a classe média em geral.
Os três anos seguintes, foram de recrudescimento da inflação e, portanto, de angústia numa casa que vivia com poucos recursos para as coisas mínimas da vida diária. Não me lembro de usar sapatos nessa época, mas sim “Alpargatas”, calçados simples de pano e sola de cordas, que era o que se podia comprar. Tampouco me lembro de presentes valiosos no Natal ou ovos de chocolate nas Páscoas, já que o dinheiro era limitado.
Assim que, quando o golpe ocorreu, creio ter detectado um grande suspiro de alívio em meus pais, exasperados depois de mais de três anos de inflação crescente, grevismo exagerado (nos transportes públicos, por exemplo) e a sensação de descontrole num governo feito mais de agitação inconsequente do que de preocupação com a vida dos mais pobres, como éramos naquela época.
Sim, meus pais receberam muito bem o “golpe”, com a esperança de que tudo aquilo iria terminar e que nossa vida iria enfim melhorar. Pode-se dizer que o pré-adolescente ingênuo que eu era naquele momento era um perfeito “golpista”, ou pelo menos simpático a um regime que se iniciava e que iria fazer aquilo que políticos corruptos não tinham conseguido fazer nos três agitados anos pós-renúncia de Janio: acabar com a inflação destruidora de nossos parcos recursos.
Um ano depois, já politizado precocemente, eu me alinhava com as forças de oposição, mas no momento exato do golpe eu partilhava do sentimento de alívio de meus pais com o fim da “bagunça”. Essa era a minha percepção naquele 1. de abril de 1964, eu, uma criança ingênua, que refletia o sentimento corrente em famílias de muito baixa renda, e amplamente despolitizadas, como era a minha.
Se posso dizer, esse é o testemunho primário que posso oferecer sobre o início do regime que me levou, menos de seis anos depois, à decisão de iniciar um auto exilio europeu, para escapar de uma possível, até provável, prisão, que decorreria de meu precoce engajamento na resistência à ditadura militar. Dali voltei, sete anos depois para continuar na luta política, não mais armada, contra o regime que trouxe de volta inflação e corrupção, os dois maiores males aos olhos do adolescente ingênuo de 1964.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 4623, 1 abril 2024, 1 p.
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