Coloquei no meu Facebook, temporariamente, a foto do primeiro jornalista, e para mim o primeiro estadista brasileiro, a despeito de jamais ter residido no Brasil depois de formado em Coimbra, ainda jovem, porque escrevi um artigo sobre ele, justamente com essa qualificação, uma vez que deve demorar mais algum tempo antes que o artigo seja publicado.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 3 de outubro de 2018
3317. “Hipólito da Costa: o
primeiro estadista do Brasil”, Brasília, 8 agosto 2018, 25 p. Artigo sobre o
primeiro jornalista independente do Brasil como homem de Estado, para a revista
200, do projeto Bicentenário, sob editoria do embaixador Carlos Henrique
Cardim.
Hipólito da Costa: o primeiro estadista do Brasil
Paulo Roberto de Almeida
Diretor do Instituto de Pesquisa de Relações
Internacionais, IPRI-Funag
O primeiro americanista brasileiro: o Diário da Viagem para a Filadélfia (1799)
Hipólito
José da Costa Pereira Furtado de Mendonça (1774-1823), antes de se tornar o criador, redator,
editor e publicista do Correio
Braziliense – o “armazém literário” que ele solitariamente redigiu, publicou
e distribuiu, ao longo de quase três lustros, a partir da Inglaterra, entre
1808 e 1822 –, foi também uma espécie de Tocqueville avant la lettre, um verdadeiro founding
father do americanismo brasileiro, um pioneiro nessa tribo extremamente
rara dentre os estudiosos brasileiros da grande nação americana. Uma geração
antes que Tocqueville publicasse, em 1835, o seu imediatamente famoso De la Démocratie en Amérique, e alguns
anos antes de se estabelecer na Inglaterra, fugindo da Inquisição portuguesa, e
de ali editar o seu Correio Braziliense,
Hipólito deixava registrado, num diário, ao cabo de uma “viagem de instrução” aos
Estados Unidos (1798-1799), suas precoces observações sobre a nascente
democracia americana ao tempo dos primeiros dois presidentes. Elas, no entanto,
permaneceram inéditas por um século e meio, até que o texto original fosse localizado
por Alceu Amoroso Lima no catálogo da biblioteca de Évora, que o fez publicar pela
Academia Brasileira de Letras.
Em sua
viagem – recém egresso de Coimbra na condição de “bacharel formado em leis”, como
se apresentou numa publicação de 1800, e colocado “a serviço de Sua Alteza
Real” pelas mãos de d. Rodrigo de Souza Coutinho, o grande estadista da crise
portuguesa no decorrer das guerras napoleônicas –, Hipólito não se contentou em
seguir as instruções de Coutinho, no sentido de “adquirir conhecimentos sobre a
preparação de diversas culturas e espécies não cultivadas” (Dias, p. xxxvi), e
buscou informar-se amplamente sobre a “administração pública, preocupando-se
com a agricultura, o comércio, a gestão financeira e as práticas industriais”. Ele também trata, nessas suas notas, “da
descrição de algumas cidades com seus diversos tópicos de estrutura urbana
(traçado das ruas, plantas de edifícios, transportes, abastecimento de água,
seguros, incêndios); do levantamento hidrográfico (rios, pontes, navegação
fluvial) e climático (temperatura, umidade, insolação, pluviosidade) das
regiões onde passava; ou mesmo do inventário de comportamentos éticos e
religiosos, dos hábitos alimentares e das vestimentas do povo americano”.
As instruções de Linhares
eram no sentido de se obter as informações as mais detalhadas possíveis sobre
todos os progressos havidos na América do Norte no terrenos das artes práticas,
das culturas agrícolas e dos ofícios ligados ao fabrico e manufatura de bens em
geral, complementando a missão pelo encargo de recolher as espécimes e
variedades de plantas e cultivos que se pudessem aproveitar em Portugal e na
colônia brasileira. Nos Estados Unidos atenção especial deveria ser dada ao
cultivo do tabaco, então concentrado em Maryland e na Virgínia, ao passo que no
México, ademais de observar as minas de ouro e prata, a instrução essencial era
a de lograr subtrair o inseto e a planta da cochinilha, iludindo a vigilância
rigorosa das alfândegas espanholas. De tudo, Hipólito deveria mandar relatórios
circunstanciados, o que ele obviamente fez de maneira rigorosa, ao despachar
notícias teóricas e comentários práticos sobre tudo o que viu e ouviu em sua
longa estada naquelas partes, nos anos finais do século XVIII.
Essa missão nos Estados Unidos comportava, portanto, um
caráter sobretudo técnico, mais do que de prospecção de mercados ou de
incentivo ao comércio. Tratava-se de levantar os recursos naturais e apreciar
os conhecimentos científicos que a jovem nação da América do Norte mobilizava
em sua marcha ascensional para o progresso econômico. Em outros termos, o
encargo comportava também aspectos que hoje em dia poderiam ser equiparados à
“espionagem industrial ou tecnológica”, em etapa histórica na qual os direitos
de propriedade intelectual não desfrutavam da mesma proteção legal como posteriormente.
O futuro “pai da imprensa” estava amplamente habilitado para fazê-lo, uma vez
que, ademais dos conhecimentos práticos aprendidos em sua vida de fazenda no
Rio Grande, tinha sido formado em outras matérias que simplesmente a filosofia
e o direito. Os estudos de filosofia em Coimbra comportavam, precisamente, o
ensino de botânica, agricultura, zoologia, mineralogia, física, química e
mineralogia, artes e disciplinas nas quais também se destacava o futuro “pai da
independência”, José Bonifácio, frequentador das academias europeias.
Nos Estados
Unidos, Hipólito teve de, algumas vezes, fazer-se de diplomata, mesmo sem
autorização ou diploma legal, por motivo da ausência do representante
português, ministro Cipriano Ribeiro Freire. Mais importante do que esse exercício
episódico de diplomacia, de fato mais bem em encargos consulares, foi a
provável adesão de Hipólito, nessa estadia, à maçonaria, possivelmente mais
relevante na determinação de seu futuro destino político do que a missão de
“espionagem industrial” pela qual iniciava sua vida profissional. Em todo caso,
sua prospecção técnico-científica na América do Norte poderia ser também
aproximada de uma missão de diplomacia econômica, não no sentido negocial, mas
no de uma “embaixada” voltada para a informação a mais ampla possível sobre as
capacidades naturais e os atributos humanos de uma potência amiga, como forma
de habilitar a sua pátria (e a sua terra de formação) a competirem em melhores
condições no grande jogo econômico das indústrias e do comércio que Linhares
adivinha formavam a base da potência das nações.
Nessa missão
Hipólito conheceu artesãos, cientistas e agricultores, ademais do futuro,
Thomas Jefferson, e do então presidente dos Estados Unidos, John Adams, cuja
informalidade e falta de protocolo surpreenderam um pouco o súdito de uma
monarquia absoluta, rigorosa com o cerimonial. Seu “diário de viagem” não é uma
simples coleção de observações naturalistas e agrícolas, pois que Hipólito tece
considerações extensas sobre as religiões dos americanos e, mais importante,
sobre questões econômicas e monetárias. Não deixou de notar a preferência dos
americanos pelo comércio, mais que pela agricultura, e o seu gosto acentuado
pela especulação, sendo o dinheiro um valor absoluto naquela sociedade. Já naquela
época, os bancos emprestavam facilmente, acima das posses reais, animando os
empreendimentos e facilitando as especulações mercantis, muito embora no
interior do país a falta de dinheiro condenasse os produtores muitas vezes ao
escambo. Ele observou, também, as tendências a falências abruptas e a uma
mobilidade excepcional nos negócios, traços que ainda hoje marcam a modalidade
peculiar do capitalismo americano.
Os Estados Unidos do
final do século XVIII estavam obviamente longe de se constituírem em uma
sociedade industrial e, de fato, eles se tornaram a primeira potência econômica
do planeta apenas no final do século XIX, quando ultrapassaram o volume da
produção industrial combinada da Grã-Bretanha e da Alemanha. Naquela
conjuntura, os fluxos de comércio, as inovações técnicas e as finanças
internacionais ainda eram dominados pelos países mais avançados da Europa, mas
o “modo inventivo” americano já exibia todas as características sociais e
financeiras que converteriam o país de uma sociedade agrária em potência
industrial. Ainda que não descritas com tal estilo “sociológico” em seu diário
de viagem, essas características empíricas da sociedade americana – mais do que
qualquer teoria econômica ou doutrina comercial, das quais os EUA continuariam,
aliás, sendo importadores líquidos pelo resto do século XIX – devem ter
impressionado a mente do jovem Hipólito, determinando muito de suas reflexões
pragmáticas posteriores sobre os problemas econômicos, comerciais e monetários
“brazilienses”.
O diário de viagem de
Hipólito constitui, provavelmente, a primeira obra sobre os Estados Unidos
escrita do ponto de vista de um observador do Brasil, preocupado em trazer para
a colônia lusitana da América as espécies vegetais e animais e aqueles
melhoramentos técnicos que julgava poder contribuírem para o engrandecimento de
sua pátria de origem. Pode-se,
portanto, legitimamente enquadrar Hipólito na condição de primeiro americanista
brasileiro, ao ter ele desenvolvido ideias, tirado lições, formulado propostas e
consolidado posturas que orientariam, no plano intelectual, seu trabalho maduro
desenvolvido oito anos depois nas páginas do Correio Braziliense. Hipólito não foi como
José da Silva Lisboa, o visconde de Cairu, um teórico da economia, muito embora não tenha repugnado a entrar em
considerações doutrinárias em seus muitos escritos posteriores da fase do Correio. Ainda antes, e à volta de sua
missão americana, ele verteu para o Português, em 1801 e provavelmente sob a
sugestão de Linhares, a História do Banco
da Inglaterra, de E. Fortune, e os Ensaios
econômicos e filosóficos de Benjamin Rumford. D. Rodrigo, que nessa época era
ministro da Fazenda e presidente do Erário, o envia nesse ano à Inglaterra e à
França, para “adquirir livros, máquinas e outros materiais para a Imprensa
Régia”. Esse tipo de literatura, muito voltada para as
condições econômicas concretas do país mais avançado, então, no plano
industrial, e, sobretudo, sua missão anterior aos Estados Unidos é que devem
ter constituído a base do conhecimento empírico e teórico de Hipólito sobre questões
econômicas e comerciais, manancial de conhecimento que sustentariam, durante
anos, as páginas mais relevantes do Correio
Braziliense, ao lado das simples notas sobre fatos, personagens e processos
políticos e econômicos, em sua verdadeira crônica sobre os eventos correntes
que constituíram os números sucessivos do primeiro jornal independente de uma
imprensa “brasiliense”.
De adepto da maçonaria, preso pela Inquisição, a fundador da imprensa
livre
Em qualquer hipótese,
pouca oportunidade restou a Hipólito, depois de sua primeira missão à
Inglaterra, de aperfeiçoar suas leituras em questões econômicas, uma vez que
três ou quatro dias após sua volta foi preso em sua casa, numa nova
demonstração da intolerância da Inquisição portuguesa para com os suspeitos de
maçonaria. A publicação, em 1804, dos Princípios de Economia Política, de José da Silva Lisboa, o
primeiro economista brasileiro, ainda encontraria Hipólito na prisão, de onde
ele sairia apenas no ano seguinte, para viajar imediatamente e clandestinamente
para a Inglaterra. “Só na Inglaterra”, escreve Sergio Goes de Paula, Hipólito
...
poderia exercitar seus talentos, não apenas por estar no centro do mundo
comercial de então, mas também pelo fato de lá se encontrar a salvo da política
e das classes dominantes portuguesas: ele conseguira o título de denizen, denominação que na Inglaterra
designa um estrangeiro admitido a certos direitos”.
Foi na Grã-Bretanha –
seu refúgio nos 17 anos seguintes e onde empreenderia o ato fundador da
imprensa “brasiliense” – que Hipólito continuaria sua obra de tradutor e de
comentarista das atualidades nacionais (portuguesas e brasileiras) e
internacionais. Ele foi um compilador das coisas práticas da vida econômica,
política, científica e literária, geralmente sob a forma mais usual da
transcrição de documentos oficiais, mas muitas vezes fazendo ele mesmo pequenas
resenhas e comentários pessoais, alguns não assinados ou então colocados sob
pseudônimo.
Esse ativismo literário
e jornalístico do novo exilado português da Inquisição não se refletiu todavia
de imediato na vida de Hipólito, que ainda passa perto de três anos como
tradutor e professor e em diversas atividades comerciais e de intermediação –
quase que de subsistência, poder-se-ia dizer – antes de se lançar na grande
aventura de sua vida, a do “Armazém Literário”, que o consagraria, na história
do Brasil, como o primeiro jornalista independente do país, mesmo que ele
jamais tenha voltado a colocar os pés na sua pátria de origem. Foi Napoleão
quem o tirou da modorra e lhe deu a grande oportunidade de se afirmar como
homem de ideias e como crítico das políticas oficiais. De fato, não fosse a
invasão napoleônica de Portugal talvez não tivéssemos tido o empreendimento
“literário” que marcou, mais que qualquer outra folha, gazeta ou pasquim, as
políticas domésticas e internacionais de Portugal e do Brasil, durante os quase
14 anos de residência da corte portuguesa no Rio de Janeiro.
O Correio foi lançado mensalmente publicado ininterruptamente, até
dezembro de 1822, num total de “175 fascículos, com 123 páginas em média,
constituindo 29 volumes e totalizando a coleção, 21.525 páginas”. O preço da cada exemplar, assim como
o custo total da produção e distribuição não eram irrisórios, como informa ainda
Goes de Paula:
O
exemplar custava no Rio de Janeiro, ao tempo da Independência, 1.280 réis – uma
exorbitância, quase o preço de uma arroba de açúcar mascavo colocado no porto
de Londres em 1808. (p. 18)
O Correio foi, por certo, mais importante para o Brasil do ponto de
vista das lutas políticas e jornalísticas, pela liberdade de expressão e no
controle das autoridades (e também diplomaticamente), do que como arauto ou
porta-voz de políticas ou doutrinas
econômicas e comerciais. Hipólito, aliás, estava longe de ser o jacobino radical
e o representante das ideias democráticas da Revolução francesa que muitos
gostariam de ver. Como diz Mecenas Dourado, “na realidade, não era ele senão um
discípulo do liberalismo inglês, partidário, em política, da monarquia limitada
e repelindo as tendências revolucionárias e democráticas da igualdade
rousseaunista”. Não parece deslocado afirmar que,
nesse terreno, ele ostentava o mesmo pragmatismo e bom senso que o
caracterizavam na área política, combinando um liberalismo de princípio quanto
ao exercício das atividades econômicas e comerciais, não repugnando, quando
fosse o caso, a aplicação de algumas medidas “industrializantes” (avant la lettre), como tinha observado
nos Estados Unidos.
Confirmando sua
preeminência na atividade jornalística de Hipólito, a seção sobre política
sempre foi mais imponente do que a parte comercial nas páginas do Correio. Ocorria frequentemente, também,
que muitos instrumentos econômicos ou comerciais relativos à situação
brasileira e dignos de registro em seu periódico eram por ele transcritos na
seção “miscelânea” do Correio, por
vezes em meio a comentários sobre eventos ou decretos de natureza
essencialmente política, o que confirmaria não apenas a confecção por vezes
literalmente artesanal do seu “armazém literário”, como poderia indicar
igualmente o recebimento irregular dos papéis vindos da corte do Rio de
Janeiro. De resto, tudo era político naqueles tempos
conturbados de supremacia napoleônica e de imposição crua da hegemonia inglesa,
mesmo um simples acordo comercial ou um tratado de navegação. A abertura do
número inaugural do Correio Braziliense
(1808) traz a sua profissão de fé no trabalho do jornalista independente, ao
mesmo tempo em que constitui um verdadeiro programa de trabalho e uma
reafirmação dos sólidos princípios que devem guiar a atividade dos “redatores
de folhas públicas”:
O
primeiro dever do homem em sociedade é ser útil aos membros dela, e cada um
deve, segundo suas forças físicas ou morais, administrar, em benefício da
mesma, os conhecimentos ou talentos que a natureza, a arte ou a educação lhe
prestou. O indivíduo, que abrange o bem geral de uma sociedade, vem a ser o
membro mais distinto dela: as luzes que ele espalha tiram das trevas da ilusão
aqueles que a ignorância precipitou no labirinto da apatia, da inépcia e do
engano. Ninguém mais útil, pois, do que aquele que se destina a mostrar, com
evidência, os conhecimentos do presente e desenvolver as sombras do futuro. Tal
tem sido o trabalho dos redatores das folhas públicas, quando estes, munidos de
uma crítica sã e de uma censura adequada, representam os fatos do momento, as
reflexões sobre o passado, e as sólidas conjecturas sobre o futuro. [...]
Levado
destes sentimentos de patriotismo, e desejando aclarar os meus compatriotas
sobre os fatos políticos, civis e literários da Europa, empreendi este projeto,
o qual espero mereça a geral apreciação daqueles a quem o dedico. (Correio Braziliense, I, 3, 1808)
Ele tinha
plena consciência de que seu trabalho só seria possível na Inglaterra:
... propusemo-nos a escrever em Inglaterra para poder, à sombra de sua
sábia lei, dizer verdades que é necessário que se publiquem, para confusão dos
maus e esclarecimentos dos vindouros, verdades que se não podiam publicar em
Portugal e nunca nos perdoaríamos a nós mesmos se omitíssemos o comunicar aos
portugueses... (IV, 1810, 211-2)
As razões
para isso eram claras, na linha do que já tinha escrito na abertura:
Todo indivíduo particular que se esforça, pelos meios que tem ao seu
alcance, para ilustrar e instruir seus compatriotas nas verdadeiras ideias de
governo e nas formas que mais podem contribuir para a felicidade pública, faz
um bem real à sua nação, porque são essas medidas outros tantos passos para os
melhoramentos que se desejam introduzir. (IV, 1810, 313-4)
Mais
adiante, refletindo sobre os destinos do Brasil a partir de sua modesta oficina
londrina, ele não hesitava em apontar os caminhos que se abriam à nação que
passava a acolher a corte metropolitana, que ele julgava que deveria
aperfeiçoar-se na melhoria dos costumes e da moral pública, assim como
empenhar-se imediatamente em livrar-se da nódoa do tráfico e do opróbio da
escravidão:
…o
povo que deseja ser livre e feliz cuide de assegurar com suas virtudes próprias
essa liberdade, e essa felicidade que deseja, porque enquanto se esperançar
noutras nações, para gozar esses bens, será escravo, será infeliz. Não dispute
sobre a forma de governo, reflita no modo de melhorar seus costumes. Um povo
sem moral, se não tem liberdade, nunca a obterá; se a tem certamente a perderá.
(XXIV, 1819, 27)
E, ainda mais
adiante, vinha a recomendação peremptória:
Os
brasileiros devem escolher entre estas duas alternativas: ou eles nunca hão de
ser um povo livre, ou hão de resolver-se a não ter consigo a escravatura.
(XXIX, novembro de 1822, p. 574)
A terrível
mancha persistiria ainda por muitos e muitos anos depois da morte de Hipólito,
e mesmo de seu amigo e parceiro de ideias, José Bonifácio de Andrada e Silva,
que na sua representação sobre a escravatura à Assembleia Constituinte de 1823
refletia muitas das ideias que já se encontravam refletidas nas páginas do Correio Braziliense. Em sua modesta condição
de redator de uma folha pública, não se deve hesitar em classificar o futuro
“patrono da imprensa” no Brasil como tendo sido, igualmente, o “primeiro
estadista” do Brasil, a despeito mesmo do fato que Hipólito jamais voltou a
viver no Brasil, desde seus estudos superiores, durante toda a sua vida madura,
dele nunca ter exercido cargos públicos vinculados à sua terra natal, e ter
tido muito poucas chances, senão através de sua pluma crítica e acerada, de
influenciar quaisquer políticas da Coroa portuguesa, e ainda pelo fato de ter
permanecido, até praticamente a independência, um partidário do Reino Unido,
como talvez também era José Bonifácio, fossem outras as circunstâncias criadas
após a revolução do Porto e pelos trabalhos das Cortes de Lisboa.
Ele não se
opôs, terminantemente, à constituição de um Estado brasileiro, apenas se
pronunciava pela unidade do Império, vendo o Brasil como o centro de uma grande
unidade de propósitos entre as diferentes partes dos imensos domínios marítimos
de Portugal, a base provável de uma nação espalhada em vários continentes,
podendo colocá-la quase em igualdade de condições com outros impérios
existentes ou em formação. Quando esse Estado se constituiu de forma autônoma
ao governo de Portugal, evolução, aliás, à qual ele não se opôs de maneira
definitiva, ele estava pronto para servir à nova nação, mesmo na condição
meramente instrumental de cônsul na Grã-Bretanha, início provável de uma
carreira de estadista que o teria levado de volta à terra natal. A morte
colheu-o precocemente na capital londrina e seus projetos para o novo país –
ainda expressos em cartas a Bonifácio nos últimos meses de vida – foram legados
ao esquecimento de mais de um século.
Pela força
de sua atividade como jornalista, pelo vigor de seus argumentos, pela clareza
de suas posições, expressas nas milhares de páginas do Correio Braziliense, pelo contributo geral dado pelo seu “armazém literário”
ao longo de 14 anos, relevante no plano intelectual e dos valores, tanto quanto
no das atitudes e políticas, Hipólito foi, sem sombra de dúvida e de pleno
direito, o primeiro estadista da nação “braziliense”, como ele gostava de se
referir aos compatriotas nascidos em solo brasileiro. O fato de que ele não
tenha podido exercer-se plenamente como cidadão brasiliense, e a partir daí
como um construtor da nação, a exemplo de outros pais fundadores, não lhe
deveria retirar em nada o título que sua contribuição intelectual certamente
lhe assegura de pleno direito. Basta percorrer as páginas do “armazém
literário” para certificar-se disso.
Um ano antes
do controverso tratado de comércio entre Portugal e a Grã-Bretanha, Hipólito já
manifestava seu ceticismo quanto aos interesses reais do ponto de vista do
Brasil, com argumentos que poderiam ser classificados como de “política
industrial”. Escrevendo em 1809, ao saber dessas tratativas, ele assim se
manifestou:
Um
tratado de comércio entre o Brasil [sic]
e a Inglaterra é uma das mais delicadas empresas em que pode entrar o Brasil,
porque o negociador brasiliense não tem precedentes que o guiem. Os tratados
que existiam entre a Inglaterra e Portugal eram fundados nos interesses mútuos
de exportação dos artigos portugueses de grande consumo na Inglaterra, tais o
vinho, o azeite etc., e na situação política daquele pequeno Reino, que, ameaçado
constantemente por seus vizinhos, se via obrigado a solicitar a proteção da
Inglaterra, ainda à custa de pesados sacrifícios. Estas duas razões cessam
agora porque os produtos principais do Brasil estão longe de terem grande
consumo em Inglaterra, que nela são proibidos, por causa da competência
[concorrência] em que se acham com as colônias britânicas; e quanto à situação
política do Brasil, este imenso território acha-se de tal maneira isolado pela
natureza, que nenhuma potência lhe pode meter susto, nem causar prejuízos
consideráveis, salvo a Inglaterra, embaraçando-lhe o comércio. De onde se segue
que, faltando os dois princípios (do interesse mútuo e do temor) que originaram
as principais estipulações dos tratados de comércio entre Portugal e Inglaterra,
não podem aqueles servir de norma a este tratado do Brasil. (Correio Braziliense, II, n. 9, fevereiro
1809, p. 129-30)
Concluído o
acordo, Hipólito analisou o
tratado de 1810 não apenas com sua tradicional perspicácia e rigor pelo
detalhe, mas também com seu conhecimento muitas vezes pessoal dos próprios
negociadores e suas posturas respectivas em relação aos interesses ingleses em
Portugal e no Brasil; seus argumentos expressos nas páginas do Correio balizaram praticamente a maior
parte da historiografia subsequente. Oliveira Lima, por exemplo, apoiando-se
extensivamente em Hipólito, afirmou:
As
condições exaradas no convênio de 1810 significavam a transplantação do
protetorado britânico, cuja situação privilegiada na metrópole era consagrada
na nossa esfera econômica e até se consignava imprudentemente como perpétua. A
falta de genuína reciprocidade era absoluta e dava-se em todos os terrenos,
parecendo mesmo dificílima de estabelecer-se pela carência de artigos que se
equilibrassem nas necessidades do consumo, sendo mais precisos no Brasil os
artigos manufaturados ingleses do que à Inglaterra as matérias primas
brasileiras. Dava-se ainda a desigualdade na importância que respectivamente
representavam suas exportações para os países produtores, constituindo a
Inglaterra o mercado quase único do Brasil, ao passo que aquela nação dividia
por muitos países os seus interesses mercantis.
Em outros
termos, Hipólito, pela agudeza de suas observações críticas, sobre cada um e
todos os atos do “governo do Brasil”, pautou os termos dos debates posteriores em
torno dos reais interesses do país nos temas de relações econômicas
internacionais e de políticas setoriais – indústria, comércio, agricultura,
etc. –, todavia bem mais na fase independente, do que durante a presença de D.
João no Brasil.
Hipólito, humanista pragmático: fim do tráfico, emigração de judeus para
o Brasil
A despeito de uma
concentração no tema das revoluções latino-americanas
de independência e, sobretudo, nos assuntos relativos ao Brasil, estes não eram
os assuntos exclusivos que ocupavam a atenção e os cuidados de Hipólito no seu
“armazém”. Suas preocupações com a construção da nação, não se atinham
apenas aos aspectos políticos e institucionais relativos ao que ele precocemente
chamava de “governo do Brasil” – que ele preferia, obviamente, que fosse sob a
forma de uma monarquia constitucional –, mas se estendiam igualmente à
configuração do próprio povo, ou seja, a formação da nacionalidade. Múcio Leão,
na introdução à edição de 1955 (Academia Brasileira de Letras) do diário da
viagem à Filadélfia, ressalta o aspecto humanitário, mas sobretudo pragmático,
de seus argumentos:
Palavra frequente do seu apostolado
é a defesa das duas raças mais frágeis que serviram para a formação da
nacionalidade brasileira – a do índio e a do negro. Hipólito confrange-se ante
a política de destruição com que o Brasil faz desaparecer o índio e confrange-se
ante a escravidão que criamos para o negro. Mostra que um país que possui
escravos só pode possuir uma mentalidade de escravo. E põe os brasileiros neste
duro dilema: ‘Os brasileiros devem escolher entre estas duas alternativas: ou
eles nunca hão de ser um povo livre, ou hão de resolver-se a não ter consigo a
escravatura.’ (Correio Braziliense,
XXIX, 574)
Como José
Bonifácio, ele pretendia para o Brasil a imigração de agricultores europeus, os
mais adequados à conformação de uma economia próspera baseada na agricultura,
que ele considerava, racionalmente, como era o caso de Cairu igualmente, como a
grande vantagem comparativa do país no contexto mundial, numa demonstração de
adesão involuntária e precoce às teses ricardianas sobre o comércio
internacional. Nisso ele não deixava tampouco de expressar as concepções
típicas de sua época sobre as vantagens e desvantagens do afluxo de escravos
africanos para o Brasil:
Temos por várias vezes indicado a
necessidade que há de procurar ao Brasil uma população tirada das nações europeias;
e isto para fins morais, políticos e físicos; porque, a não obrar assim, a raça
portuguesa se estragará totalmente com a mistura, tão comum no Brasil, com os
negros africanos, cuja compleição e figura viciam o físico das gerações mistas,
e cujos costumes devassos e moral estragada pelos maus hábitos inerentes à
condição de escravos, servem de um exemplo fatal à mocidade, que com eles se
cria nos seus mais tenros anos, e adquire assim péssimos costumes, que de tal
modo se arraigam, que duram depois por toda a vida.” (XVIII, 159)
A despeito
da prevenção quanto à “mistura” racial, que se estenderia ainda durante várias
décadas – inclusive consolidada em obras de “cientistas” respeitados ao longo
do século XIX, como o conde de Gobineau, ministro de Napoleão III junto à corte
de D. Pedro II, continuada em escala tragicamente
ampliada no decorrer da primeira metade do século XX – o cuidado de Hipólito se
prendia a razões de ordem eminentemente prática, ou seja, a capacitação
adequada da agricultura brasileira e a seleção do elemento humano melhor
preparado para modernizar a economia muito atrasada da nação sul-americana. Como
verdadeiro humanista, ele colocava seu interesse em todas as questões que lhe
pareciam dignas de serem refletidas nas páginas do seu “armazém”. Sem qualquer
aproximação conhecida aos judeus, sendo um membro esclarecido da maçonaria, ele
refletiu, precocemente, sobre perseguições que, na Alemanha de 1819, se faziam
aos membros dessa “raça”, retirando desses episódios algumas lições para o
“governo do Brasil”. Refletindo os sobre ataques a judeus – “vergonhosos atos
de opressão” – que se faziam em diversas cidades do país, ele especula sobre se
esses atos “eram execução de algum
plano concertado”, alinhando as possíveis razões religiosas, políticas ou
“comerciais”:
Conjecturando
as causas de tão inesperada perseguição, custa a atirar com alguma razão
suficiente de tal fenômeno? Será ódio contra a religião dos Judeus, diferente
da maioridade dos habitantes dos países, aonde eles residem? Será isto efeito
das agitações políticas, que existem na Alemanha? Será efeito da rivalidade do
Comércio?
Quanto
à diferença de religião, as perseguições por esta causa são diametralmente
opostas às ideias tolerantes do nosso século, como tem acontecido em todos os
tempos e em todos os países, em que as luzes tem efeito esconder o fanatismo.
Os poucos religiosos furiosos, que ainda existem, e que desejariam propagar os
seus princípios pelo ferro e fogo, como os Maometanos, ou como a Inquisição,
ano se atrevem a propor hoje em dia tais planos, que os faria objeto do
desprezo público. Em uma palavra, estas perseguições da Alemanha, nem se quer
mencionam a diferença de religião, como causa acidental.
Quanto
a causas políticas, os Judeus, há muitos séculos, vivem nos diferentes Estados
da Europa, como estrangeiros, a quem se não permite exercício algum ativo dos
direitos de cidadão, nem empregos públicos; sendo meramente protegidos pelas
leis, como pessoas de uma residência temporária: com esta mera faculdade de
existir, se tem eles contentado, satisfeitos de que os deixem seguir, na
obscuridade, as práticas de sua religião. As mais atrozes e injustas
perseguições, não tem oposto senão a paciência e o retiro. Não é logo possível
atribuir agora estes seus novos males, a inimizades políticas, em que não
consta, que eles tenham a menor parte.
Resta,
pois, a rivalidade mercantil, a que alguns escritores imputam os atuais
sofrimentos dos Judeus, supondo que as suas riquezas e a sua indústria tem
excitado a inveja dos mais negociantes Alemães. Não se pode negar a
possibilidade desta hipótese; mas nem ainda nela achamos razão cabal, para
explicar o mal em toda a sua extensão. (CB, XXIII, jul.-dez. 1819, p. 314-315)
Refletindo sobre
a desastrosa experiência histórica da expulsão dos judeus da península ibérica,
três séculos antes, e sempre interessado nos benefícios que novas oportunidades
de criação de riquezas em quaisquer outros países pudessem representar para o
Brasil, Hipólito especula então sobre a eventualidade da transferência dessa
comunidade para seu país natal, concluindo, no entanto, que os preconceitos
existentes entre os conselheiros do Rei inviabilizariam tal hipótese:
As
riquezas dos Judeus, assim como as de todo o outro capitalista, que não tem
outra pátria senão aquela em que reside deve redundar em beneficio do país,
dando emprego a muitos habitantes, e servindo de produzir novas riquezas. Logo
o ódio contra as riquezas dos Judeus, seria dirigido contra o beneficio, que
delas resulta a toda a Sociedade: um ou outro negociante individual poderia
entreter este ódio contra o rico negociante Judeu e seu vizinho, pelo espirito
de rivalidade; mas isto não se podia estender a toda a populaça; nem abranger
tantas cidades, desde a margem do Reno até Copenhague, como são aquelas por que
esta perseguição se tem difundido.
Suponhamos
que os Judeus Alemães se retiravam, com seus haveres, daqueles países em que
são perseguidos: nesse caso, não só a população sofreria, mas a falta de seus
capitães traria a ruina a muitas fábricas, e até a mesma agricultura; como bem
palpavelmente se experimentou em Portugal, que com a expulsão dos Judeus,
perdeu os seus cabedais, e estes foram enriquecer a Holanda, tornando-se ali
rivais e ao depois inimigos dos capitais e comércio de Portugal. Daqui
concluímos, que a generalidade desta perseguição se não explica pelo ódio
contra as riquezas dos Judeus, pois elas são de grande beneficio aos países, em
que eles residem.
O
Governo do Brasil está ainda muito atrasado em princípios de política, para que
julguemos, que ele saiba tirar partido desta perseguição dos Judeus na
Alemanha. Mas suponhamos, que El Rey podia vencer os prejuízos [preconceitos]
de seus Conselheiros, e da parte ignorante do Clero, e que, por meio de boas
leis abria no Brasil um asilo seguro a todos os perseguidos Judeus da Alemanha.
A emigração, não só importante em número, levaria ao Brasil um imenso capital,
que seria bastante para fazer aparecer as produções daquele fértil país; e que
precisa de novos capitais, para os avanços de fundos necessários em limpar as
terras, lavrar as minas, abrir as comunicações, etc.
Quaisquer,
pois, que fossem as causas destas perseguições dos Judeus, a Alemanha perderia
um imenso fundo de riquezas, que se transferiria ao Brasil. Mas disto, pela
razão que demos acima, não tem a Alemanha, que se temer. (idem, p. 315-317)
O Correio Braziliense nos
albores do movimento de independência
O valor dos
materiais transcritos e comentados no Correio
Braziliense assume ainda maior importância para um debate bem informado
sobre os rumos do Brasil no contexto das revoltas contra a dominação espanhola
nos países vizinhos, nos anos imediatamente anteriores à independência. Como
bem resume Sergio Goes de Paula:
Em
seu conjunto, o jornal é uma obra extraordinária. Poucas vezes se vê uma
exposição tão clara dos fatos políticos ocorridos nesses anos fundamentais para
a formação da nação brasileira, e, entre os contemporâneos, nada a ele se
compara. Apesar de escrito muito depois dos acontecimentos, e de falar de
Portugal, da América Espanhola, do Brasil, a partir da Inglaterra, o jornal às
vezes tem algo de reportagem de guerra, de texto escrito no calor da refrega
que, quase 200 anos depois, ainda nos captura. É espantoso ver como foi bem
resolvido o grave problema de se informar a tempo sobre o que ocorria em terras
tão longínquas: aqui e ali vislumbra-se a rede de informantes a trazer
notícias, capitães e comerciantes que faziam a rota Inglaterra-Portugal-Brasil,
correspondências de muitos lugares e de muitas pessoas, leituras de todos os
jornais importantes. Seu autor é, sem dúvida, um esplêndido jornalista que
sabia muito bem vencer o tempo e o espaço em busca da informação. (p. 17)
Acompanhando
atentamente a marcha dos acontecimentos no Brasil desde a partida de D. João e
a assunção de D. Pedro como príncipe regente, Hipólito não deixa de recomendar
importantes mudanças quanto à forma de melhor governar o Brasil, sobretudo em
face das muitas conexões da Bahia com Portugal, aquela comunicando-se diretamente
com as Cortes em Lisboa. Ele não deixa de repetir sua já avançada sugestão de
que a nova capital do país deveria se situar em algum ponto do interior:
A
distância em que o Brasil se acha da Europa faz mui dificultoso que aquelas
províncias se possam governar exatamente com a mesma forma de administração das
de Portugal; mas o ciúme de uma províncias a respeito de outras é a verdadeira
causa por que a Bahia quer antes estar sujeita a Lisboa do que ao Rio de
Janeiro. (...)
Mas
se é que o Brasil tem de ter um governo geral, a cidade do Rio de Janeiro é mui
imprópria sede para tal governo. O Rio de Janeiro está quase em uma extremidade
do Brasil, e é absurdo fazer ir um recurso do Pará ao Rio, ou uma ordem do Rio
ao Pará, navegando contra vento e maré, quando a comunicação com Lisboa é tanto
mais fácil.
(...)
Se
o Brasil deve ter um governo geral, e não duvidamos que ele seria de
grandíssima utilidade ao melhoramento daquele país, deveria esse governo
existir em um ponto central, fosse ou não em lugar desabitado presentemente;
porque a sede do governo, a abertura de estradas desse lugar para os principais
portos de mar etc. em breve faziam populoso esse território. (Correio, XXVII, n. 159, agosto de 1821,
pp. 159-60)
Confirmando,
então, sua posição de que Brasil e Portugal deveriam permanecer unidos, ele
volta a preconizar um entendimento em torno dessa nova organização:
Nem
nos faz dúvida que um plano dessa natureza [a mudança da capital] pudesse
inspirar interesses no Brasil opostos aos de Portugal; porque a prosperidade do
Brasil será sempre de recíproco proveito a Portugal, e se isto desse origem a
uma subdivisão de patriotismo, nem assim o julgaríamos desacertado. É preciso
evitar as rixas de uma província com outra que levam aos feudos e oposições;
mas pode bem deixar-se obrar o espírito de rivalidade, que sendo conduzido por
um governo sábio, excita o patriotismo, e esporeia a indústria. (idem, p. 162)
No mês de
setembro seguinte, Hipólito, a despeito de sua discordância com várias medidas
cogitadas nas Cortes, ainda proclamava sua confiança na manutenção da unidade, manifestando
que essa era uma condição de manter a liberdade lá e no Brasil:
Que
a maioridade do Brasil deseja continuar em sua união com Portugal é o que se
manifesta pelas declarações de todas as cidades capitais de províncias, que
sucessivamente foram reconhecendo o sistema constitucional; e contudo, pode
muito bem haver, e sabemos que há, algumas pessoas que julgam ser chegado o
tempo do Brasil se separar da sua antiga metrópole. Este partido, porém, o
julgamos por ora pequeno; e os que desse partido forem sinceros facilmente se
convencerão que vão errados: os outros que obrarem assim por motivos menos
honrosos do que a persuasão de que obram a favor de sua pátria não merecem que
se argumente com eles.
(...)
A
nossa decidida opinião vai exatamente de acordo com a desta maioridade do
Brasil; porque se o Brasil tem de ser um dia independente da Europa, nada lhe
pode ser mais conveniente do que ir de acordo e em união com Portugal, até que
ambos tenham conseguido estabelecer as suas formas constitucionais de governo;
porque se antes disso se desunirem, seja por que pretexto for, o partido despótico
[ou seja, os conservadores que desejavam a continuidade de uma monarquia
absoluta] achará fácil meio nessa desunião de os vencer a ambos separadamente e
calcar aos pés a liberdade nascente. (Correio,
XXVII, n. 160, setembro de 1821, pp. 234-35)
Alertando
contra qualquer decisão das Cortes de mandar tropas ao Brasil – “pela bem
pensada razão de que não é pela força, mas pela opinião, que se deve manter e
fortificar a integridade e união de todas as partes da monarquia”– Hipólito
terminava essa sua peroração deixando bastante clara qual era sua posição a
respeito:
Quando,
porém, as decisões das Cortes forem tais que ataquem a união da monarquia,
então será justíssimo que seus deputados levantem a voz, que os povos se
queixem e que se acuse o governo; mas tal momento ainda não chegou, nem há
aparências de que chegue; e portanto dizemos que a menor ideia de separação
fará um terrível mal à nascente liberdade de Portugal, e nenhum bem aos povos
do Brasil; e se os argumentos que temos produzido não têm aquela força que
desejamos, sem dúvida deve ter algum peso a opinião de quem tem sempre mostrado
o mais denodado aferro pelos interesses de seu país. (idem, p. 239)
A questão da
unidade do Brasil com Portugal ainda teimava em alimentar seus argumentos ao
início do ano seguinte, a despeito de sinais precursores de que algo não andava
bem. Escrevendo em fevereiro de 1822, Hipólito considerava essa união
... de suma utilidade para ambos os países (...) na suposição de que
sendo o Brasil tão superior a Portugal em recursos de toda a natureza, a
objeção para a continuação desta união provinha de algumas pessoas
inconsideradas no Brasil que desejavam a separação dos dois países antes que
ela devesse ter lugar pela ordem ordinária das coisas.
Nesta suposição, recomendando a união, temos sempre dirigido nossos
argumentos aos brasilienses [que para Hipólito eram os naturais do Brasil, em
contraposição ao “brasileiro”, que seria “o português europeu ou o estrangeiro
que vai lá negociar ou estabelecer-se”], não nos ocorrendo sequer a
possibilidade que nos portugueses europeus pudessem existir essas ideias de
desunião; porque a utilidade deles, na união dos dois países, era de primeira
evidência.
Mas infelizmente achamos que as coisas vão muito pelo contrário, e que é
entre os portugueses e alguns brasileiros, e não entre os brasilienses, que se
fomentam e se adotam medidas para essa separação, que temos julgado imprudente
por ser intempestiva, e que temos combativo na suposição de que os portugueses
europeus nos ajudariam [aos brasilienses] em nossos esforços para impedir, ao
menos por algum tempo, essa cisão. (CB, XXVIII, n. 165, fevereiro de 1822, pp.
165-6)
No mês de
março seguinte, Hipólito indignava-se contra uma medida do governo português
proibindo o comércio de certos gêneros – entre eles pólvora e munições – com o
Brasil, a partir da Inglaterra, segundo soube por cartas do cônsul geral de
Portugal em Londres. Ele perguntava então, não deixando de lado a ironia:
Não
sabemos se quem inventou essa medida teria gênio para inventar a pólvora, mas
decerto não há medida hostil mais frívola pelo que respeita o Brasil. De que
serve essa proibição?
(...)
Força, como tão repetidas vezes temos dito, não tem Portugal para sujeitar o
Brasil... (CB, XXVIII, n. 166, março de 1822, p. 280-2)
Hipólito
finaliza a missão: a separação de Portugal e o problema da mão-de-obra
Na fase final
de seu trabalho como editor do Correio
Braziliense, mais precisamente em julho de 1822, Hipólito veio a assumir
novo posicionamento em relação à independência do Brasil, já que ele era
favorável, até a ocorrência da revolução do Porto e a “constituinte”
portuguesa, à continuidade da união política entre Portugal e o Brasil sob a
forma de uma monarquia constitucional. Ele temia acima de tudo uma
“independência intempestiva” ou o retorno do Brasil a uma situação de colônia.
Sua mudança de atitude se deu no quadro dos debates nas Cortes portuguesas,
formadas a partir da revolução de 1820, quando são discutidas diversas medidas
no sentido de “recolonizar” o Brasil.
Sob veementes
protestos dos representantes brasileiros, o regime econômico
descortinado para o Brasil pelos constituintes, sob influência direta dos
comerciantes portugueses, pretendia, tão simplesmente: reservar à marinha
portuguesa a navegação entre todos os territórios do Reino Unido, conceder nova
exclusividade aos vinhos e aguardentes portugueses no mercado brasileiro e,
reciprocamente, aos produtos coloniais brasileiros no mercado português e
isentar de tarifas todas as exportações de manufaturados portuguesas importados
no Brasil. Hipólito seguiu de perto as diferentes peripécias das Cortes
constituintes e, ao constatar que se intentava fazer leis apenas para os
portugueses de Portugal, chegou a advertir: “Esta omissão nos parece um passo
decisivo para a separação de Portugal do Brasil, o que na verdade sentimos que
venha a ser um dos efeitos desta revolução”. A conformação tentativa
de uma nova modalidade de pacto colonial em muito acelerou o processo de
independência no Brasil. Com efeito, o projeto de regulamentação das relações
comerciais Brasil-Portugal, tomado no âmbito da Constituinte lusitana, “foi a
última resolução de caráter econômico tomada pela antiga metrópole em relação
ao Brasil colonial”. Quando ele foi aprovado,
contudo, o Brasil já tinha declarado sua independência.
Ao
conformar-se a independência do Brasil, Hipólito estava dando por encerrada sua
missão de informador crítico e de defensor da liberdade de imprensa no Brasil.
Antes de sair de cena como editor – e ao preparar-se para assumir o cargo de
representante consular do Brasil em Londres, agregando ainda um título de adido
diplomático –, ele não deixa de abordar o problema mais crucial da
nacionalidade brasileira, o regime de trabalho servil, que tantos serviços
prestou à classe senhorial (e à própria economia em formação) e que tantos
malefícios representou para sua estrutura social e sua evolução cultural e
educacional.
Ele já tinha
tratado do problema do tráfico e da escravidão no momento dos acordos de Paris,
em 1815, que tendiam a limitar o tráfico ao sul do Equador, como etapa prévia à
sua completa proibição e como preparação à interdição ulterior da própria
escravidão. Escrevendo em outubro de 1815, ele manifesta sua convicção em uma
próxima resolução da própria instituição servil: “Está por fim chegado o tempo
em que esta questão da escravatura deve ser decidida afinal”. Ele tinha consciência,
porém, dos problemas imediatos em termos de mão-de-obra e de carestia de vida,
mas recomendava corrigir esses problemas mediante a introdução de maquinaria e
pela promoção da imigração europeia.
Hipólito volta
ao tema depois de proclamada a independência, apontando a contradição entre o
objetivo de se ter uma nação livre e a nefanda instituição. Os brasileiros,
escrevia ele em novembro de 1822, “devem escolher entre estas duas
alternativas: ou eles nunca hão de ser um povo livre, ou hão de resolver-se a
não ter consigo a escravidão. (…) um homem educado com escravos não pode deixar
de olhar para o despotismo como um ordem de coisas natural; …a maioria dos
homens que são educados com escravos deve ser inclinada à escravidão e quem se
habitua a olhar para o seu inferior como escravo, acostuma-se também a ter um
superior que o trate como escravo”.
Hipólito esperava
que o problema da escravidão fosse ser resolvido em poucos anos, ao
consolidar-se a autonomia do novo estado e organizada em novas bases a economia
nacional. Ao morrer em 1823, com apenas 48 anos, ele não poderia adivinhar que
o problema da escravidão tomaria duas gerações mais, 66 anos adicionais, para
ser resolvido de maneira imperfeita. Otimista, mas cauteloso, ele concluía esse
comentário com palavras que tinham verdadeira vocação profética em relação ao
futuro do Brasil: “Da continuidade da escravatura no Brasil deve sempre
resultar uma educação que fará os homens menos virtuosos e mais suscetíveis a
submeterem-se ao governo arbitrário de seus superiores”.
Como forma de
encaminhar a questão da carência de mão-de-obra de maneira algo mais permanente
do que a importação sempre renovada de escravos “boçais”, Hipólito, como muitos
outros dirigentes esclarecidos dessa época, a começar pelo próprio Andrada,
recomendava a implementação de um programa abrangente de imigração de
agricultores europeus. O tema comparece em diversos números do Correio, mas
seria apenas no início de 1823, já interrompida no mês de dezembro anterior a
edição do Correio Braziliense, que
Hipólito elabora um plano preliminar cobrindo diversos aspectos da ocupação
racional do território brasileiro. O documento, que tinha como título
“Apontamentos para um plano de Correios, Estradas e Colonização do Brasil”, foi
remetido por mala diplomática de Londres ao próprio José Bonifácio, em
fevereiro de 1823, integrando hoje as coleções do Arquivo Histórico do
Itamaraty.
Para atender à
implementação das medidas que ele propunha, Hipólito sugeria a adoção de
estrutura administrativa própria, sob a forma de uma repartição pública
dividida em três seções: (a) correios, estradas, pontes, barcos de passageiros;
(b) terras, registro de propriedades de raiz e estatísticas do país; (c)
imigração, colonização, cultura de terras e lavra de minas. Reconhecendo que
talvez fosse difícil ter uma repartição autônoma para esses diferentes
serviços, ele propunha que o encargo ficasse provisoriamente com a secretaria
do exterior: “A vasta importância deste objetos, num país tão extenso e tão
pouco povoado como é o Brasil, requer o cuidado de uma repartição exclusiva,
mas como por ora as relações diplomáticas sejam as que menos tempo ocupem, pode
este trabalho anexar-se com muita propriedade ao Ministério dos Negócios
Estrangeiros”.
Como vários
contemporâneos, Hipólito mantinha a crença que se deveria desestimular a vinda
de comerciantes – preconceito que seria ostentado pelas elites do Brasil até
praticamente o final da Segunda Guerra Mundial –, dando preferência aos
agricultores europeus, os únicos que poderiam realizar o objetivo prioritário:
a ocupação do solo. Desde 1813 ele expressava essa opinião: “Os únicos
estrangeiros que frequentam agora o Brasil são os negociantes, a pior sorte de
população que ali pode entrar, porque o negociante estrangeiro que ali chega
não possui outra pátria senão a carteira e o seu escritório, chega,
enriquece-se e vai-se embora morar no seu país natal ou aonde lhe faz mais
conta”. Hipólito recomendava a importação de
artistas, mineiros, pescadores, homens de letras, que viessem ensinar,
difundindo a instrução, e, sobretudo, de agricultores, a serem atraídos por
medidas apropriadas. Em seu plano de 1823, ele recomendava criar companhias por
ações às quais seriam distribuídos lotes (sesmarias), nos quais seriam
estabelecidos núcleos urbanos, bancos de depósito e desconto (inclusive com a
faculdade de emitir dinheiro válido nesse território) e que contariam com
isenção alfandegária para a importação de instrumentos agrícolas e de
mineração, máquinas diversas, durante um prazo de 25 anos. A companhia pagaria
ao governo o dízimo da produção agrícola e o quinto da mineração e ajudaria na
manutenção de estradas e pontes. Finalmente, Hipólito recomendava que se
transferisse a capital do Rio de Janeiro para o interior, menos por razões
militares do que para atender objetivos de ordem econômica e demográfica.
O
legado de Hipólito: humanismo, patriotismo, sentido da educação, instinto
econômico, visão constitucional
Hipólito foi uma figura
humana à qual usualmente se tem por costume chamar de “personalidade
renascentista”, ou seja, um homem completo, versado nas mais diferentes formas
de saber e empregando o conhecimento em prol do estabelecimento de políticas
públicas racionais e razoáveis do ponto de vista do interesse nacional. Em seu
“armazém literário”, ele “versou e debateu”, no dizer de Mecenas Dourado,
“quase todos os problemas fundamentais que interessavam as necessidades e a
cultura do seu tempo”. Tinha muito forte o sentido da história e de fato
pretendeu, durante uma certa época, escrever uma história do Brasil, o que pode
ter demovido da mesma pretensão outra grande personalidade pública desse
período, José Vicente Lisboa, o futuro visconde de Cairu.
Como ainda discute
Mecenas Dourado, Hipólito tinha como princípios ordenadores das soluções
práticas que se poderia conceber para responder aos problemas sociais duas
grandes categorias: a educação pública e o ensino e a prática da economia política.
Na primeira vertente, preocupava-se em “apresentar não só as sugestões que
facilitassem a difusão do ensino primário em Portugal e Brasil, como dos
princípios pedagógicos que deveriam orientar o referido ensino. Tomava como
exemplo o que se praticava em outros países mais desenvolvidos, particularmente
a Inglaterra, que era do seu íntimo conhecimento, e fazia acompanhar esses
exemplos de justificações teóricas com fundamento na psicologia educacional.
Na segunda, Hipólito
“sempre manteve a convicção de que o estudo da economia política é
indispensável ao homem público, e lastimava que a Universidade de Coimbra não
possuísse, em seu currículo acadêmico, uma cadeira em que se ministrassem esses
estudos”. Ele tinha sido educado na escola mercantilista, como
era o normal em sua época, mas ao passar à Inglaterra aderiu de forma quase
natural às pregações de Adam Smith e à doutrina liberal. Mas, como vimos pela
sua discussão do decreto de abertura dos portos e do tratado de 1810, sua noção
era a de um liberalismo doutrinal corrigido pelo bom senso e por um extremado
pragmatismo. Ele ostentava, sobretudo, uma compreensão muito clara de onde se
situava o interesse nacional brasileiro, acima de quaisquer considerações
teóricas ou doutrinais. Nas páginas do Correio,
ele ofereceu um acolhimento especial às ideias do economista suíço Simonde de
Sismondi, chegando mesmo a traduzir e transcrever, em nove volumes do periódico
(do vol. XVII ao XXV), com regularidade mensal, largos extratos dos Principes d’économie politique (1813), a
ponto de Dourado chamar a atenção para o fato de que, “a vigorar, na época, uma
lei regulando os direitos autorais, Hipólito teria que pagar essa edição ao
autor”.
Essa transcrição tinha
propósitos didáticos claramente afirmados. Como recorda o outro grande
estudioso de Hipólito, Carlos Rizzini, “Cinco anos e 400 páginas [do Correio] gastaria [Hipólito] nesse labor
dedicado mais a instruir os governantes do que os leitores”. Nas próprias palavras de Hipólito:
Esta
obra é elementar e feita sobre os admiráveis princípios que o ilustre inglês
Adam Smith estabeleceu primeiro, mas obscuramente, e o nosso autor [Sismondi]
desenvolveu e dispôs com clareza e método, destinando-a particularmente à
França. Por isso, nos extratos que daremos, traduzidos neste jornal,
atenderemos somente aos princípios de aplicação universal e conformes às
circunstâncias de todos os países; e do que disser particularmente respeito à
França (que ainda assim não é muito) referiremos somente o que também, por
algum respeito, nos convier [isto é, ao Brasil] saber. (XVI, p. 338)
Como diz
acuradamente Rizzini, “O fim precípuo do Correio
Braziliense era o de promover o progresso do Brasil, erguendo-o de colônia
a nação”, ainda que nação portuguesa, unida a Portugal, sob o sistema
monárquico-representativo. A esse título, Hipólito
era contra os privilégios e monopólios, preferindo o comércio livre ao
administrado, defendendo certas isenções tributárias para estimular
determinadas atividades fabris. Concordava em taxar moderadamente as
importações estrangeiras, mas nunca de maneira exagerada, de molde a não
estimular o contrabando. Mas ele também tinha plena consciência das
desigualdades estruturais que poderiam colocar em confronto os interesses
respectivos de dois países desigualmente dotados, como verificado no caso dos
tratados “desiguais” negociados pela potência inglesa com os países mais
fracos, a começar por Portugal. Como afirma ainda Rizzini, Hipólito acreditava
que, depois “da triste experiência com o Tratado de 1810, convinha ao Brasil
regular o seu comércio sem novos compromissos, sem se atar em relação a um
futuro ainda mal descortinado. Adotasse medidas mutáveis segundo seus
interesses e as condições gerais das trocas”. Na questão da
mão-de-obra, o seu “armazém literário” atribuía o formidável progresso dos
Estados Unidos à importação favorecida de braços livres, o que propugnava
igualmente para o Brasil, sem sucesso porém, uma vez que continuaram por
décadas seguidas o tráfico e a escravidão.
O seu “armazém
literário” sempre foi consistentemente partidário do liberalismo político, de
um governo constitucional, irredutivelmente contrário ao Estado absolutista e à
censura à imprensa. Ao concluir sua obra de editor, no final de 1822, Hipólito
escrevia no último número do Correio
Braziliense uma espécie de legado intelectual do ponto de vista da economia
política:
Quanto
às relações comerciais com as demais nações, quer haja quer não a formalidade
do reconhecimento [do novo Estado brasileiro independente], o governo do Brasil
terá sempre o direito de prescrever aos estrangeiros que lá forem comerciar os
regulamentos que bem lhe aprouver; e seguramente a prudência desses
regulamentos equivale bem, quando não seja preferível, aos onerosos tratados de
comércio, com que muitas vezes as nações ligam, sem o saberem, as mãos da
indústria. (Transcrito em Rizzini, op. cit., p. 309)
Palavras de
prudência e de preocupação legítima com o progresso futuro da nação, como
compete ao verdadeiro estadista que foi Hipólito, aliás sem nunca ter exercido
cargo público no Brasil ou sequer ter voltado a por os pés, enquanto adulto, no
país que tinha como seu. Em Hipólito, mesmo longe da pátria e impedido por
força da censura de expressar livremente o seu pensamento, o exercício teórico
e prático da economia política, guiado por uma certa ideia do interesse
nacional, estava a serviço da construção da Nação.
O patrono da
historiografia brasileira, Adolfo Varnhagen, em sua obra seminal de história do
Brasil, faz o julgamento mais eloquente que se poderia esperar de um fundador
da disciplina a propósito do primeiro estadista brasileiro:
Não cremos que nenhum estadista
concorresse mais para preparar a formação no Brasil de um império
constitucional do que o ilustre redator do Correio
Braziliense. Talvez nunca o Brasil tirou da imprensa mais benefícios do que
os que lhe foram oferecidos nessa publicação, em que o escritor se expressava
com tanta liberdade como hoje o poderia fazer; mas com a grande vantagem de
tratar sem paixão as questões de maior importância para o estado, tais como as
do fomento da colonização estrangeira, etc.
Escrevendo
logo em seguida à independência, em novembro de 1822, e repercutindo com algum
atraso
… os protestos de sete
deputados do Brasil nas Cortes de Lisboa, que recusando jurar a Constituição
[portuguesa] como prejudicial e indecorosa ao Brasil, [e que] se retiraram de
Lisboa, passando-se à Inglaterra, indo depois para o Rio de Janeiro
Hipólito
reconhecia que
O
passo que deram estes deputados, abandonando as Cortes, deve ter sumo peso e
influência no Brasil... (CB, XXIX, n. 174, novembro de 1822, p. 562)
agregando,
então, em matéria expressamente intitulada “Constituição do Brasil”, sua
conformidade final com a independência e a separação:
Achando-se
convocada a Assembleia Constituinte do Brasil, e devendo entrar brevemente nas
suas funções, convém que os membros eleitos olhem para os erros das Cortes de
Portugal a fim de evitarem cair nos mesmos escolhos.
A
designação de Assembleia Constituinte está por si mesma indicando que o
principal e quase único trabalho daquela reunião é formar a Constituição do
Estado, e não atender a outra alguma coisa enquanto esta obra não estiver
concluída. (CB, XXIX, n. 174, p. 564)
Logo adiante,
ele proclama toda a sua confiança no futuro do Brasil, inclusive no contexto
diplomático do hemisfério:
Entre
os novos estados que se tem erigido na América meridional, o Brasil é o mais
poderoso e o que promete em mais breve tempo um governo sólido e permanente.
Portanto, na grande liga americana que se vai a estabelecer, o Brasil deve ter
a maior preponderância; e daquela parte do Atlântico existem todas as suas
relações políticas, de maneira que as combinações da Europa lhe ficam sendo
objeto secundário. (...)
O
Brasil cheio de todas as produções necessárias à vida, tem sobejos gêneros de
que não precisa para trocar pelos artigos de luxo que as nações manufatoras lhe
fornecerem, recebendo-os daquelas que os venderem a melhor mercado. (CB, XXIX,
n. 174, novembro de 1822, p. 572)
Em dezembro de
1822, finalmente, pouco antes de se despedir definitivamente de seus leitores,
Hipólito ainda tecia novamente considerações sobre a “Constituição do Brasil”,
alertando que ela seria “obra do tempo e da experiência”, e que se deveria
evitar “abranger casos particulares”, pois dessa forma seria “menos perfeita”:
E
tanto melhores serão as leis de um Estado, quanto mais se limitarem às regras
gerais, claras e compreensivas.
Se
considerarmos as partes mais belas da Constituição inglesa, as que são mais
dignas de imitar-se e suscetíveis de serem adotadas em todos os governos
constitucionais, acharemos, pela lição da história, que essas sábias
instituições inglesas não foram arranjadas por uma vez, nem apareceram
repentinamente à voz do legislador, como o decreto do onipotente fiat lux produziu em um momento o efeito
que o criador se propunha. Foi a experiência, foram os repetidos ensaios, foram
os melhoramentos sucessivos, foi enfim, a prudência dos legisladores em
aproveitar os momentos, em adaptar suas medidas às circunstâncias em que se iam
achando os povos na série dos acontecimentos políticos, que fez chegar essas
partes da Constituição inglesa, a que aludimos, ao grau de perfeição em que as
vemos agora.
(...)
Por
outra parte, nos Estados Unidos da América setentrional, tomando-se por base
que os costumes daqueles povos eram análogos aos dos ingleses, adotou-se a
Constituição da Inglaterra, só com aquelas modificações que a natureza das
circunstâncias exigia; essa Constituição dura, e durará, porque foi fundada na
experiência, e só estabeleceu regras gerais; as ocorrências vão mostrando a
maneira de a por em prática e essa mesma prática estabelece uma Constituição de
costume, que é a mais duradoura que uma nação pode ter.
(...)
A
Constituição de qualquer Estado, bem como as demais leis, não podem durar
eternamente; porque é sempre mutável a situação dos homens e quando as
circunstâncias variam, forçoso é que variem também as leis. (CB, XXIX, n. 175,
dezembro de 1822, pp. 604-6)
Ao encerrar a
atividade do seu “armazém literário”, e ao tomar conhecimento Hipólito, pelo
próprio José Bonifácio, antes mesmo da independência, de que seu colega de
espírito e de intenções tencionava iniciar negociações em prol da independência
com os dirigentes britânicos, ele despediu-se assim de seus leitores:
Anúncio
aos leitores do Correio Braziliense.
Este
periódico, destinado sempre a tratar como objetivo primário dos negócios
relativos ao Brasil, tem há alguns meses sido quase exclusivamente ocupado com
os sucessos aquele país, ou com os de Portugal que lhe diziam respeito; e os
acontecimentos últimos do Brasil fazem desnecessário ao redator o encarregar-se
da tarefa de recolher novidades estrangeiras para aquele país, quando a
liberdade de imprensa nele e as muitas gazetas que se publicam nas suas
principais cidades excusam esse trabalho dantes tão necessário.
Deixará
pois o Correio Braziliense de
imprimir-se mensalmente, e só sim todas as vezes que se oferecer matéria sobre
que julguemos dever dar a nossa opinião, a bem da nossa pátria, e houver
ocasião oportuna de fazer as remessas, que, pela incerteza das saídas dos
paquetes e navios, inutilizam a pontualidade da publicação mensal de um periódico
cujo escopo é unicamente o Brasil, e aonde não pode chegar com regularidade de
tempo. (XXIX, n. 175, dezembro de 1822, p. 623)
Os editores da edição
fac-similar, de 2002, do Correio
Braziliense, Alberto Dines e Isabel Lustosa, ressaltam, na introdução a
esse último volume do “armazém literário”, o sentido geral de sua atividade,
nos 14 anos em que durou a aventura do maior empreendimento jornalístico
individual de toda a história da imprensa brasileira:
O
otimismo de Hipólito transparece em sua mensagem final, na qual afirma que,
apesar do atraso em que o Brasil fora mantido pelo colonizador, os escritos
divulgados no Correio durante o ano anterior e a energia demonstrada pelas
províncias eram a prova cabal de que o Brasil não se achava tão atrasado quanto
se supunha, pois ‘quanto ao engenho e talentos de seus habitantes, ninguém que
conhece o Brasil duvida desse fato.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 8 de agosto de 2018
O Diário de Minha Viagem para Filadélfia, 1798-1799 (Rio de Janeiro:
Publicações da Academia Brasileira, 1955) foi posteriormente publicado por iniciativa do sindicato de jornalistas
do Rio Grande (Porto Alegre: Livraria Sulina Editora, 1974) e também pelo Senado Federal (Brasília:
2004, com as introduções da edição de 1955; disponível em formato online: http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/1094/710315.pdf?sequence=4); ganhou uma edição portuguesa, introduzida e
anotada pelo historiador Alcino Pedrosa: Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais,
2007; ele foi, mais recentemente, objeto de uma edição crítica por Tânia Dias
(Fundação Casa de Rui Barbosa e Editora da UFMG, 2016), com um aparato
filológico da melhor qualidade.