Acadêmicos estudam, discutem e apoiam a política externa do lulopetismo diplomático, com a qual tenho diferenças conceituais e operacionais. Nem por isso deixo de ler, refletir, reagir a essas posturas.
Paulo Roberto de Almeida
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Temas de relações internacionais, de política externa e de diplomacia brasileira, com ênfase em políticas econômicas, em viagens, livros e cultura em geral. Um quilombo de resistência intelectual em defesa da racionalidade, da inteligência e das liberdades democráticas.
Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.
Acadêmicos estudam, discutem e apoiam a política externa do lulopetismo diplomático, com a qual tenho diferenças conceituais e operacionais. Nem por isso deixo de ler, refletir, reagir a essas posturas.
Paulo Roberto de Almeida
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Os lulopetistas carecem de uma diplomacia inteiramente partidária e consistentemente antiamericana. Sem isso, ficam nervosos...
Política externa: Lula ousa; o chanceler patina
Gilberto Maringoni
Outras Palavras, 10/04/2023
Em cem dias, presidente retoma presença internacional do Brasil, com impulso à agenda latino-americana e cooperação Sul-Sul. Escorregões de Mauro Vieira travam ação mais ousada. Viagem à China, no dia 12, pode ser divisor de águas
Título original: 100 dias de política externa: entre ambiguidades e hesitações
Se confrontarmos os primeiros cem dias da política externa do novo governo com a diplomacia da gestão Bolsonaro, o contraste é brutal. Saíram de cena a gestão alucinante de Ernesto Araújo e o reacionarismo soft de Carlos Alberto França, presentes no Itamaraty entre 2019-2022. A isso se soma a exuberante diplomacia presidencial exercida pelo presidente Lula, desde antes da posse. Diante do quadro, pode-se dizer sem exagero que “o Brasil voltou”, como repetem governistas. No entanto, ambiguidades na condução dos negócios externos colocam em dúvida a existência de um projeto definido na área.
Caso se tomem por base as diretrizes emanadas pela chapa vencedora antes da eleição ou da posse, perceberemos a ausência de um plano de voo que vá além da retomada de linhas de duas décadas atrás. O exame do programa de campanha ou do relatório final do gabinete de transição governamental, divulgado no final de dezembro, pouco esclarece sobre o tratamento a ser dado a problemas concretos, apesar de enfatizar o fim do isolamento internacional e a defesa do multilateralismo. Há generalidades sobre temas relevantes, como “recuperar a política externa ativa e altiva”, “defender a integração da América Latina” e construir “uma nova ordem global comprometida com o multilateralismo”. Quem buscar esclarecimentos no discurso de posse do chanceler Mauro Vieira tampouco encontrará definições claras para um mundo mais complexo do que aquele encontrado pelo Partido dos Trabalhadores em 2003. A retórica diplomática exalta platitudes, como “reinserir o Brasil em sua região e no mundo”, ou “atravessamos um momento (…) dos mais conturbados no cenário internacional”. O principal tema da política global, a guerra na Ucrânia e suas consequências planetárias, é tratada de passagem, como fator secundário.
Nos dois primeiros governos de Lula, a política externa foi comandada por um triunvirato composto pelo ministro Celso Amorim, pelo secretário-geral do Itamaraty Samuel Pinheiro Guimarães e pelo assessor presidencial Marco Aurélio Garcia. Os três teorizaram e expressaram com clareza um projeto que tinha nas relações Sul-Sul e na diversificação de parcerias globais suas pedras de toque, em meio à agressividade de Washington, embalada na guerra ao terror.
A primeira manifestação pública da equipe que assumiria o Itamaraty foi uma nota emitida dez dias após a vitória, a respeito da destituição do presidente Pedro Castillo, no Peru. A situação embutia certa dose de confusão. Eleito pela esquerda, Castillo enfrentou ao longo de um ano e meio uma feroz oposição da maioria congressual de direita e de extrema-direita. Em 9 de dezembro, valeu-se da prerrogativa constitucional de destituir o Congresso e chamar novas eleições, a partir de seguidas derrotas no parlamento. Sem força política, sofreu um impeachment e foi preso. Vitória conservadora. Seguiu-se brutal repressão aos setores populares.
A nota do governo eleito saudava a vice de Castillo, recém-empossada, parecendo desconhecer a legalidade da ação presidencial e de onde partiu o golpe. Posição mais cautelosa tomaram os governos de México, Colômbia, Bolívia e Argentina.
Nesses três meses, o Itamaraty parece cumprir senda quase reativa a impulsos externos. No entanto, o mesmo não ocorre com ação pessoal do presidente da República.
Sua atividade começou antes da posse, em novembro, na COP 27, a conferência da ONU voltada às pautas climáticas, realizada no Egito. Apesar da presença de mais de 80 chefes de Estado, Lula foi a atração principal, mantendo reuniões bilaterais com distintas lideranças internacionais. O Brasil voltava aos acordos internacionais sobre meio ambiente.
Em sua primeira viagem oficial, em 23 janeiro, o ex-metalúrgico foi à Argentina e ao Uruguai, o que materializou a volta do Brasil à Comunidade de Estados Latinoamericanos e Caribenhos (Celac). Em entrevista coletiva na casa Rosada, junto ao presidente Alberto Fernández, Lula traçou pelo menos duas grandes linhas de atuação para a região: a volta do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) como financiador de empresas brasileiras no exterior e a defesa da soberania de Venezuela e Cuba. A essas iniciativas se somaram o retorno do Brasil à União de Nações Sul-Americanas (Unasul) e a reconstituição da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA), além do reforço ao Mercosul.
Uma semana depois, em visita ao Brasil, o primeiro-ministro alemão Olaf Scholz fez um incômodo apelo de alcance global. Acabou por ouvir constrangido, numa coletiva de imprensa, uma recusa enfática do anfitrião: “O Brasil não tem interesse em passar munições para serem utilizadas entre Ucrânia e Rússia”. Em seguida, condenou a invasão por parte de Moscou e propôs a formação de um grupo de países que pudesse funcionar como mediador em busca da paz. No entanto, teriam havido ruídos internos ao governo no tratamento do principal foco de tensões internacional.
O chanceler Mauro Vieira, em entrevista à Veja, em 10 de fevereiro, aparentemente fez uma interpretação livre da condenação presidencial à ação russa: “Ao contrário do governo Bolsonaro, agora o Brasil saiu de cima do muro”. A afirmação se materializou em votação na assembleia-geral da ONU, duas semanas depois.
O Brasil se somou abertamente à OTAN contra a Rússia, numa resolução em que a opção prudente para um país neutro seria a abstenção. Foram 141 votos contra Moscou, 7 a favor e 33 abstenções. Três dos países do BRICS se não escolheram nenhum dos lados. Na América Latina, Argentina, Chile, México e Colômbia se somaram à maioria. A medida incorporou um apelo à paz, em deferência à sugestão de Lula, mas a diretriz geral emanou do Departamento de Estado: qualquer proposta de cessar fogo só será viável caso a Rússia recue para posições anteriores a 2014, época do golpe da praça Maidan, quando um governo pró-Moscou foi derrubado em favor de um aliado de Washington. Ou seja, algo inaceitável para Moscou.
Em 21 de março, numa demonstração de inabilidade, o diplomata voltou à carga em entrevista ao portal Metrópoles, logo após o controverso mandado de prisão de Vladimir Putin expedido pelo Tribunal Penal Internacional. Segundo ele, uma visita do presidente russo ao Brasil “pode levar a complicações, eu não tenho dúvidas”. Detalhe: o chanceler fez a afirmação às vésperas da data em que o presidente Lula visitaria a China, aliada estreita da Rússia.
Mauro Vieira é um diplomata experiente, com quase cinco décadas de atividade no Itamaraty. Foi embaixador em Buenos Aires, Washington e na ONU, três dos mais importantes postos de representação no exterior. No entanto, nunca teve uma atividade destacada como formulador político.
Há duas indicações inusitadas feitas por Mauro Vieira em cargos-chave do Itamaraty. A primeira é a manutenção de Eduardo Saboia no principal escritório do ministério, o de Ásia. Saboia notabilizou-se em 2013, quando estava lotado na embaixada brasileira em La Paz. Quebrando hierarquia e disciplina, promoveu a fuga de Roger Molina, foragido da justiça local, da embaixada e o trouxe clandestinamente ao Brasil. À época foi afastado por Dilma e, mais tarde, reabilitado por Michel Temer. A segunda é a escolha de Carlos Alberto França, o ex-ministro de Bolsonaro, para comandar uma das mais importantes representações do Brasil, a embaixada no Canadá. Agora ganharam a preferência do chanceler de um governo progressista.
Logo após a vitória eleitoral, existia a expectativa entre diplomatas de carreira que Lula escolhesse uma mulher para comandar a política externa. Houve duas tentativas de compensar a frustração: a nomeação da embaixadora Maria Laura da Rocha para o cargo de secretária-geral do Itamaraty, e a indicação da diplomata Maria Luiza Viotti para a embaixada em Washington, dois dos mais importantes postos da estrutura diplomática brasileira.
No início de janeiro, foi criada a Associação das Mulheres Diplomatas Brasileiras, presidida pela embaixadora Irene Vida Gala. A principal demanda é a ampliação feminina em cargos dirigentes: há apenas 23% de mulheres diplomatas e somente 12,2% ocupam cargos de chefia no exterior.
Os deslizes ministeriais têm sido corrigidos na prática em ações que envolvem de alguma maneira Lula e o ex-chanceler Celso Amorim, atual assessor presidencial.
A primeira delas ocorreu no Conselho de Segurança da ONU, em 29 de março. Em pauta, uma proposta da Rússia, apoiada pela China e pelo Brasil, pela abertura de uma investigação independente sobre o atentado aos gasodutos Nord Stream, que conectam Alemanha e Rússia pelo mar Báltico. Doze países comandados pelos Estados Unidos se abstiveram, entre eles Grã-Bretanha, França, Suíça, Japão e Equador. A iniciativa foi rejeitada.
A segunda foi a discreta visita que Amorim fez a Moscou no mesmo dia, sendo recebido por Vladimir Putin, algo raríssimo em se tratando de diplomatas. Chefes de Estado, protocolarmente, dialogam com seus homólogos pelo mundo e não com assessores. Embora o diálogo não tenha sido divulgado, o próprio ex-chanceler comentou que a guerra na Ucrânia esteve em pauta.
Aliás, essa é a segunda missão delicada assumida por Amorim. A primeira foi uma viagem a Caracas, em 9 de março, para conversações com o presidente Nicolás Maduro. O foco foram as providências para o reatamento de relações com o Brasil. Vale lembrar: Mauro Vieira, semanas antes em entrevista à imprensa argentina, chamara o venezuelano de “ditador”, em mais uma inacreditável falta de comedimento diplomático. Perde, assim, condições de negociador aceitável pelos dois países.
A terceira manifestação positiva das relações internacionais do Brasil foi a indicação da ex-presidenta Dilma Rousseff para a presidência do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB), o banco do BRICS. É algo que dá peso a uma instituição multilateral em fase de crescimento.
No 101º. dia de governo, em 11 de abril, o presidente Lula embarca com numerosa delegação para a China. O périplo de quatro dias e intensa agenda no campo de investimentos e negócios deverá contrastar com os magros resultados do bate e volta de pouco mais de 24 horas feito a Washington em 10 de fevereiro, com direito a duas horas de conversa com Joe Biden. Não é à toa que Democratas e Republicanos já se queixam abertamente da aproximação Brasília-Pequim, não faltando vozes exaltadas a clamar por sanções contra o Brasil. Ao que parece o projeto de política externa de Lula 3.0 está de fato sendo construído a quente, com ambiguidades e hesitações.
[Versão ampliada de artigo publicado na edição 1254 da revista Carta Capital]
Gilberto Maringoni é professor de Relações Internacionais da UFABC e diretor da Fundação Lauro Campos. Foi candidato do PSOL ao governo de São Paulo (2014).