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quinta-feira, 15 de setembro de 2022

Qual a importância da região reconquistada pela Ucrânia? - Roman Goncharenko (Deutsche Welle)

Qual a importância da região reconquistada pela Ucrânia?
Roman Goncharenko
Deutsche Welle, 15/09/2022


Em poucos dias, a Ucrânia conseguiu retomar da Rússia grandes áreas a leste da cidade de Kharkiv. Izyum, um entrocamento de transporte próximo à região do Donbass, é considerada particularmente importante.
São números que ainda surpreendem quem vive na Ucrânia: desde 6 de setembro, o Exército ucraniano reconquistou mais de 6 mil quilômetros quadrados e mais de 300 localidades na região de Kharkiv, com uma população total de cerca de 150 mil, afirmou a vice-ministra da Defesa da Ucrânia, Hanna Maljar, nesta terça-feira (13/09).
Em decorrência, liberou-se quase todo o território no norte e leste da região de Kharkiv que fora rapidamente ocupado e mantido pelos russos no início da invasão, em 24 de fevereiro. Para a Ucrânia, essa contraofensiva é o segundo grande sucesso desde o final de março, quando a ofensiva russa em Kiev falhou – e Moscou retirou suas tropas que estavam ao norte da capital.
A princípio, Moscou ficou em silêncio por dias – e, depois, finalmente, classificou a retirada precipitada como um "reagrupamento". Porém, para Kharkiv, a segunda maior cidade da Ucrânia, isso não significa um alívio: por se localizar próxima à fronteira com a Rússia, a cidade é bombardeada quase todos os dias pelos russos – e, recentemente, cada vez mais. Mas, para as áreas mais a leste, o fim da ocupação russa tem uma importância estratégica.
Izyum: a porta de entrada para a região do Donbass
Localizada no sudeste da região de Kharkiv, com cerca de 50 mil habitantes antes da invasão russa, Izyum é a cidade mais importante que a Ucrânia conseguiu reconquistar. A estratégica rodovia M-03 que passa pela localidade conecta Kharkiv com Sloviansk, na região vizinha de Donetsk. São apenas 50 quilômetros de Izyum a Sloviansk, que é a porta de entrada para o Donbass.
Desde o início da guerra no Donbass, em 2014, essa rodovia se tornou uma das principais vias da Ucrânia. Por meio dela, a Ucrânia abastecia suas tropas na região, a partir de Kharkiv.
A Rússia tenta cercar as tropas ucranianas perto de Sloviansk, também no norte, mas até agora não obteve sucesso. Houve combates pesados na área durante todo o verão europeu, a recaptura de Izyum aliviou as tropas ucranianas no Donbass e tornou possível continuar a ofensiva mais a leste.
Izyum não é importante apenas como entroncamento rodoviário. Uma fábrica de armas da estatal Ukroboronprom, localizada na cidade, é a única que produz vidros ópticos na Ucrânia. No local são fabricados a maioria dos dispositivos de visão noturna para a tecnologia militar ucraniana, incluindo os principais tanques e veículos blindados.
Além disso, partes do sistema de controle a laser para mísseis antitanque ucranianos dos tipos Stuhna e Korsar são produzidos na fábrica de armas em Izyum. Ambos os sistemas são usados na guerra.
Kupiansk: entroncamento ferroviário na fronteira russa
Não menos significativa é a cidade de Kupiansk, segundo entroncamento ferroviário mais importante da região de Kharkiv. Ela está localizada no norte, a apenas 40 quilômetros da fronteira com a Rússia.
As forças de ocupação russas usavam Kupiansk para transportar suprimentos para o front perto de Izyum. No lado russo, uma nova base militar foi construída nos últimos anos perto da cidade de Valuyki, quase na fronteira com a Ucrânia.
Kupiansk está localizada à margem do rio Oskol. Como resultado da contraofensiva ucraniana, as tropas russas recuaram para a sua margem oriental. Cerca de 60 mil moravam na cidade antes da invasão.
Durante a ocupação, uma "administração civil-militar" controlada por Moscou foi instaurada no local. A ofensiva ucraniana forçou os russos, primeiro, a se deslocarem para Vovchansk, perto da fronteira e, depois, para Belgorod, na Rússia.
Esta "administração" planejava realizar nos próximos meses um "referendo" para se unir à Rússia, a exemplo de outros territórios ocupados. Agora, esses planos foram interrompidos.

Balakliya: depósito de armas e campo de gás
Balakliya foi uma das primeiras cidades reconquistadas na região de Kharkiv. Com cerca de 27 mil habitantes antes da guerra, o lugar é menor que Izyum e Kupiansk, mas não está longe da estratégica rodovia M-03, no caminho de Kharkiv para Izyum.
Em 2017, Balakliya ganhou as manchetes na Ucrânia e no exterior quando um depósito de munições explodiu. De acordo com alguns relatos, ela já abrigou o maior depósito de munição do país, descrito como um legado da União Soviética. Na época, as autoridades em Kiev afirmaram que o depósito foi alvo de sabotagem.
O entorno de Balakliya é importante para o abastecimento de gás da Ucrânia, já que o campo de Shebelinka, o maior da Ucrânia, está localizado na área. Devido à proximidade das frentes de batalha, a produção estava em perigo. Quase metade do gás da Ucrânia é produzido na província de Kharkiv.

Ucrânia conseguirá manter os territórios recapturados?
Após o sucesso dos últimos dias, a Ucrânia está tentando avançar ainda mais para o leste e liberar outras regiões. No entanto, a velocidade diminuiu significativamente. A questão central nas próximas semanas provavelmente será se se conseguirá manter os territórios já reconquistados.
Os observadores não descartam a possibilidade de a Rússia se reorganizar e atacar novamente o norte. O líder tchetcheno Ramzan Kadyrov, cujas tropas são notórias na guerra da Ucrânia, anunciou que o território perdido seria trazido de volta ao controle de Moscou.
No entanto, tal não será fácil para o Exército russo: a Ucrânia está atualmente tentando avançar no sul, na região de Kherson, e conseguiu recapturar cidades menores.
Devido a sua proximidade com a Crimeia anexada, a Rússia aparentemente considera Kherson muito mais importante do que Kharkiv, e por isso tem enviado reforços para a região.

domingo, 26 de dezembro de 2021

Rússia e Ucrânia: a cronologia de uma guerra não declarada - Roman Goncharenko (Deutsche Welle)

Rússia e Ucrânia: a cronologia de uma guerra não declarada

Roman Goncharenko
há 3 horas

As raízes do conflito entre Rússia e Ucrânia são bastante profundas. No cerne da questão está o fato de Moscou não aceitar a independência ucraniana, enquanto tenta bloquear a aproximação de Kiev com o Ocidente.

As tensões entre a Rússia e a Ucrânia têm uma história que remete à Idade Média. Ambas possuem raízes comuns que se estendem até a época do antigo Estado da Rússia de Kiev, nas terras eslavas do leste. Esse é o motivo pelo qual o presidente russo, Vladimir Putin, se refere aos dois países como "um só povo".

O fato, porém, é que as duas nações estão divididas há séculos, o que resultou no surgimento de dois idiomas e duas culturas proximamente relacionadas, mas bastante distintas.

Quando a Rússia se desenvolveu politicamente em um império, a Ucrânia se provou incapaz de estabelecer um Estado próprio. No século 17, uma ampla região do que é hoje o território ucraniano se tornou parte do Império Russo.

Após a desintegração desse império, em 1917, o país vivenciou um breve período de independência, antes de a União Soviética o reconquistar à força.

Anos 1990: Rússia se desprende da Ucrânia

Em dezembro de 1991, Ucrânia, Rússia e Belarus assinaram um acordo que selava efetivamente o fim da União Soviética. Moscou, porém, pretendia manter sua influência na região através da recém-criada Comunidade dos Estados Independentes (CEI).

O Kremlin também calculava que o fornecimento de gás natural a baixo custo manteria a Ucrânia em sua órbita. Mas as coisas se desenrolaram de maneira bem diferente. Enquanto Rússia e Belarus forjaram uma aliança próxima, a Ucrânia se aproximava cada vez mais do Ocidente.

Isso não passou desapercebido pelo Kremlin, apesar de não bastar para gerar um conflito entre os dois lados na década de 1990. Moscou parecia não estar preocupada, enquanto o Ocidente não demonstrava qualquer intenção de integrar a Ucrânia à sua esfera de influência. A Rússia lidava com uma depressão econômica e se via amarrada no conflito militar na Tchetchênia.

Em 1997, Rússia e Ucrânia assinaram o Tratado de Amizade, Cooperação e Parceria, conhecido como o "Grande Tratado", através do qual Moscou reconhecia as fronteiras oficiais da Ucrânia, incluindo a Península da Crimeia, região que abriga uma maioria étnica russa.

Racha na amizade pós-soviética

A primeira grande crise diplomática entre os dois lados surgiu com a chegada de Putin ao poder. Em 2003, a Rússia começou a construir, inesperadamente, uma barragem no estreito de Kerch, próximo à ilha ucraniana de Tulza – entre o território russo e a Península da Crimeia.

Kiev considerou isso uma tentativa russa de redesenhar as fronteiras nacionais. O conflito somente foi resolvido após um encontro frente a frente entre os dois presidentes. A construção foi suspensa, mas a fachada de amizade entre os dois lados começou a demonstrar rachaduras.

As tensões de agravaram durante as eleições presidenciais na Ucrânia em 2004, com Moscou colocando todo seu peso a favor do candidato pró-Rússia Viktor Yanukovych. A chamada Revolução Laranja evitou que ele assumisse. A eleição foi declarada fraudulenta, e o candidato pró-Ocidente Viktor Yushchenko se tornou presidente.

Uma invasão russa na Ucrânia?

A Rússia reagiu ao cortar o fornecimento de gás para a Ucrânia em duas ocasiões, em 2006 e 2009, além de interromper também o abastecimento para a União Europeia.

Em 2008, o então presidente dos Estados Unidos George W. Bush pressionou pelo início do processo de adesão da Ucrânia e da Geórgia à Otan, apesar dos protestos de Putin, cujo governo não reconhece totalmente a independência ucraniana.

A Alemanha e a França frustraram os planos de Bush em uma cúpula da Otan em Bucareste, na Romênia, onde a adesão ucraniana foi discutida, mas sem que fossem estabelecidos os prazos para esse processo.

Após as coisas não irem tão bem quanto o esperado em relação à Otan, a Ucrânia fez uma nova tentativa de reforçar seus laços com o Ocidente, através de um acordo de associação com a União Europeia. Mas, no verão de 2013, poucos meses antes da assinatura do documento, Moscou passou a exercer forte pressão econômica sobre Kiev e forçou o governo do então presidente Yanukovych a congelar o acordo. 

O governo russo impôs um embargo sobre produtos ucranianos exportados para o país, o que insuflou os protestos em massa em toda a Ucrânia. Em fevereiro do ano seguinte, o presidente ucraniano fugiu para a Rússia.

Anexação da Crimeia se torna ponto de inflexão

O Kremlin se aproveitou do vácuo de poder em Kiev e anexou a Península da Crimeia em março de 2014. Esse foi um ponto de inflexão nas relações entre os dois países e o início de uma guerra não declarada.

Ao mesmo tempo, forças paramilitares russas começaram a mobilizar um levante separatista na região de Donbass, no leste ucraniano, e instituíram "repúblicas populares" lideradas por Moscou, com simulacros de Estados em Donetsk e Lugansk.

O governo de Kiev esperou até depois da eleição presidencial de maio de 2014 para lançar uma grande ofensiva militar, que chamou de operação antiterrorismo. 

Em junho de 2014, o presidente recém-eleito Petro Poroshenko se reuniu com Putin na ocasião dos 70 anos da invasão da Normandia, na Segunda Guerra Mundial. O encontro, que passaria a ser conhecido como as conversações em Formato Normandia, ocorreu sob mediação da Alemanha e da França.

Ao mesmo tempo, o Exército ucraniano se mostrou incapaz de expulsar os separatistas. No final de agosto, Kiev acusou Moscou de intervir militarmente em larga escala, o que o Kremlin nega. Forças ucranianas próximas a Iloviask, a leste de Donetsk, foram derrotadas, em um episódio que se tornou um ponto de virada na guerra. O conflito foi oficialmente encerrado em setembro, com a assinatura de um cessar-fogo em Minsk.

Guerra de exaustão em Donbass

O que se seguiu foi uma guerra de exaustão que continua até os dias atuais. No início de 2015, os separatistas lançaram uma nova ofensiva, segundo Kiev, apoiados por tropas russas que, antes dos combates, removeram de seus uniformes suas identificações, o que Moscou também nega.

As forças ucranianas sofreram uma nova derrota, dessa vez na cidade estrategicamente importante de Debaltseve, de onde foram forçadas a se retirar. A intermediação do Ocidente resultou no que passaria a ser conhecido como o Protocolo de Minsk, um acordo que serve como base para os esforços de paz, mas que até hoje não chegou a ser cumprido.

A última vez em que houve uma ponta de esperança de paz na região foi no outono de 2019, quando soldados dos dois lados foram retirados das linhas de frente. A chamada Cúpula da Normandia em Paris, em dezembro de 2019, marcou a última vez em que os dois lados se sentaram à mesma mesa.

O presidente russo não tem interesse em se reunir frente a frente com seu homólogo ucraniano, Volodymyr Zelensky, a quem Moscou acusa de não cumprir o Tratado de Minsk. Putin continua a exigir que os Estados Unidos mantenham a Ucrânia fora da Otan e que o país não receba ajuda militar. A Otan rejeita categoricamente essa exigência.