Bolsonaro perde aliados na América e sofre prejuízos do isolamento
Brasileiro colhe outro revés com a eleição do esquerdista Boric, no Chile, e inicia o último ano de sua gestão mais isolado do que nunca
Raphael Veleda
Metrópoles, 21/12/2021
A vitória do esquerdista Gabriel Boric nas eleições presidenciais chilenas no último domingo (19/12) foi mais uma na série de más notícias para o presidente Jair Bolsonaro (PL) no cenário internacional.
Por escolha e falta de sorte, o governo brasileiro trilhou um caminho rumo ao isolamento diplomático ao longo dos primeiros três anos de mandato, segundo especialistas e diplomatas ouvidos pelo Metrópoles, e agora colhe os amargos frutos desse ostracismo.
A gestão Bolsonaro teve início em meio a uma conjuntura externa positiva. A diplomacia apostou suas fichas numa aproximação sem precedentes com os Estados Unidos, então governados pelo direitista Donald Trump, e o Brasil ainda contava com aliados ideológicos no poder na maioria dos vizinhos estratégicos: Maurício Macri, na Argentina; Iván Duque, na Colômbia; Martín Vizcarra, no Peru; Enrique Peña Nieto, no México; e Sebastián Piñera, no Chile. Três anos depois, quase todos eles foram tirados do poder pela oposição e, assim como no Brasil, na Colômbia haverá eleição em 2022 e o favorito nas pesquisas é de esquerda: o senador Gustavo Petro.
O crescente isolamento diplomático incomoda Bolsonaro e seu entorno. Enquanto esta reportagem era produzida, o presidente brasileiro era o único líder sul-americano que ainda não havia cumprimentado Boric por sua vitória. Já o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), principal antagonista político de Bolsonaro no Brasil, já havia feito isso no domingo, além de ter previsto uma aliança com o chileno e com o argentino Alberto Fernández, caso também vença a eleição do ano que vem.
A proximidade com a esquerda brasileira também fez com que Bolsonaro ignorasse a vitória de Fernández, em 2019, quando não só não o parabenizou, mas lamentou sua vitória, inaugurando uma relação fria com um dos maiores parceiros históricos do Brasil na região.
Os prejuízos
A escolha por uma política externa de enfrentamento aos organismos multilaterais e o fracasso de aliados nos quais o Brasil apostou estão causando prejuízos reais ao Brasil de acordo com o cientista político Guilherme Casarões, professor da Fundação Getulio Vargas (FGV) e pesquisador da extrema-direita no mundo. “Portas foram fechadas e nossa margem de manobra em temas comerciais ficou bem estreita”, afirmou ele, em entrevista ao Metrópoles.
Um dos exemplos desse prejuízo foi dado pelo próprio Bolsonaro em seu discurso na última reunião de chefes de Estado do Mercosul, na semana passada, quando ele admitiu não ter conseguido avançar no objetivo de reduzir a Tarifa Externa Comum do bloco durante a presidência temporária do Brasil. “Lamentamos que não tenhamos podido lograr acordo neste semestre sobre esse tema, a despeito dos esforços realizados pelo Brasil e de nossa disposição de aceitar redução inferior àquela que planejávamos inicialmente”, disse o brasileiro.
Outros reveses
O insucesso em flexibilizar a tarifa comum no Mercosul se junta a outros problemas recentes que têm relação com o isolamento diplomático. Também na última semana, o país foi surpreendido pela notícia de que cinco redes europeias de supermercados não vão mais vender carne brasileira devido ao problema do desmatamento na cadeia de produção. Esse revés veio logo após o Brasil conseguir reverter outro boicote à sua carne, esse da China, que durou mais de três meses e causou prejuízo próximo a R$ 10 bilhões, segundo a Confederação da Agricultura e Pecuária (CNA).
Num cenário de longo prazo, o governo Bolsonaro viu supostas vitórias diplomáticas se transformarem em problemas. Em 2019, primeiro ano da atual gestão, o então presidente norte-americano, Donald Trump, anunciou apoio à ambição brasileira de integrar a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que é uma espécie de clube dos países ricos.
Com a derrocada de Trump, porém, o processo pouco andou desde então. O mesmo acontece com o acordo de livre comércio entre o Mercosul e a União Europeia, fechado em junho de 2019, mas que não foi ratificado pelos parlamentos de países do Velho Continente, como a França. As nações que resistem usam o comportamento errático de Bolsonaro como motivo para não fecharem de vez um acordo que pode pressionar suas próprias economias.
Saída de Ernesto Araújo fez pouca diferença
A política externa brasileira tenta voltar a um comportamento mais pragmático desde março deste ano, quando um dos auxiliares mais ideológicos de Bolsonaro, o diplomata Ernesto Araújo, foi trocado pelo discreto Carlos França. Para Guilherme Casarões, no entanto, a mudança foi mais na forma do que no conteúdo.
“Claro que é positivo a gente não ter um chanceler tuitando absurdos o tempo todo, mas França não tem muito espaço para mudanças mais profundas porque é funcionário de Bolsonaro e também precisa lidar com as bravatas e maluquices do presidente”, afirmou ele, lembrando que Bolsonaro usou seu discurso na Assembleia Geral da ONU neste ano para defender a política brasileira para o meio ambiente e insistir em tratamentos ineficazes contra a Covid-19.
Para o cientista político, o prejuízo da política bolsonarista para a diplomacia brasileira ainda deverá durar algum tempo. “Quem assumir o próximo governo vai ter de lidar com um passivo diplomático muito grande e vai precisar arrumar os rumos da política externa. Se Bolsonaro for o vencedor das eleições, a dificuldade será maior ainda, pois ele está carente de aliados e necessitará inventar um jeito de lidar com um isolamento que atrapalha”.
Diplomatas do Itamaraty ouvidos pela reportagem sob a condição de anonimato concordam com essa avaliação e lamentam a perda de influência do Brasil em debates globais nos quais havíamos conquistado relevância, como em relação ao meio ambiente, aos direitos humanos e à saúde pública em nível global.
Para eles, a saída de Ernesto Araújo foi positiva, mas seu legado é forte e pode ser resumido num discurso do ex-chanceler feito em outubro de 2020, quando disse a novos diplomatas que estavam se formando no Instituto Rio Branco: “Se a nova política externa do Brasil faz de nós um pária internacional, então que sejamos esse pária”.
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Bolsonaro silencia, e aliados lamentam vitória de Boric no Chile
Presidente é praticamente o único na América do Sul que ainda não se manifestou
Marianna Holanda
Um dia depois de o Chile eleger o esquerdista Gabriel Boric, Jair Bolsonaro (PL) ainda não o havia parabenizado pela vitória até as 18h desta segunda-feira (20). Aliados do presidente, por sua vez, lamentaram o resultado nas redes sociais.
Dentre os principais mandatários da América do Sul, só Bolsonaro não havia se pronunciado. Ele está, desde a sexta-feira passada (17), em Guarujá (SP).
O presidente do Paraguai, Mario Abdo Benitez, por exemplo, felicitou Boric e disse que os países trabalharão juntos para seguir fortalecendo as relações entre os países.
Já Alberto Fernandez, da Argentina, disse: "Devemos assumir o compromisso de fortalecer os laços de irmandade que unem nossos países, e trabalhar unidos na região para pôr fim à desigualdade na América Latina".
Reservadamente, embaixadores relataram mal-estar com a demora do Brasil em se manifestar. O processo deve partir do presidente, em nome do governo, e depois o Itamaraty também costuma divulgar uma nota.
Na época em que Fernández foi eleito na Argentina, em 2019, Bolsonaro não só não o parabenizou como lamentou sua vitória. O líder argentino é próximo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Líder dos protestos estudantis de 2011, Boric foi eleito no domingo (19) ao derrotar o ultradireitista José Antonio Kast. Venceu por 55,8% contra 44,1%.
Com 4,6 milhões de eleitores, o candidato da Frente Ampla se tornou mais votado da história chilena. O voto não é obrigatório no país, mas mais da metade da população compareceu às urnas (55,65%).
Ainda assim, aliados do presidente Bolsonaro ressaltavam a alta abstenção e faziam relação com a disputa em 2022 no Brasil.
"Bater no peito dizendo que não votou em político nenhum só fará a história [no Brasil] se repetir", disse Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), deputado federal e filho do presidente.
"Se não percebermos a estratégia da esquerda acabaremos governados por um deles".
Já o vereador do Rio de Janeiro e filho do presidente, Carlos Bolsonaro, disse que, "enquanto isso no Brasil", cresce o possível voto na "terceira via", que chamou de "LULO", dando a entender que pode beneficiar Lula.
O tom nas redes bolsonaristas, que levantaram a hashtag #JairOuJáEra, foi de alarmismo com a eleição chilena. O ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles disse: "O Chile caiu".
A ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alvesa publicou no Twitter um mapa da América do Sul com o símbolo comunista da foice e do martelo.
"Como ainda tem gente que não entendeu, me pediram para desenhar! Não é de Bolsonaro que falo, é de esperança, é de democracia! Sim, a mais importante eleição do mundo no ano de 2022 acontecerá no Brasil!", afirmou.
A imagem foi compartilhada por apoiadores do presidente.
Ainda que Boric seja diametralmente oposto no espectro ideológico a Bolsonaro, experientes diplomatas no Itamaraty veem-no como diferente de outras lideranças esquerdistas mais tradicionais da região.
A avaliação é de que ele não terá uma postura tão nacionalista na economia como Fernández, por exemplo. O Chile é um importante parceiro comercial do Brasil.
A expectativa é de que ele terá de fazer alianças com demais partidos, de forma a caminhar mais ao centro. Sua agenda à esquerda, apostam, se dará mais quanto à pauta dos "costumes", como questões de gênero.
Para conseguir se eleger, Boric teve de adotar um tom mais moderado em seu discurso e se reconciliou com a Concertação, aliança de centro-esquerda que governou o Chile por 20 anos. Ele representa a nova geração de políticos de esquerda que emergiram das revoltas estudantis de 2011.
O resultado da eleição chilena marca também a derrota de Kast, que sustenta bandeiras consideradas conservadoras do ponto de vista social e é admirador do ditador Augusto Pinochet (cujo regime matou mais de 3.000 pessoas, segundo estimativas oficiais).
https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2021/12/bolsonaro-silencia-e-aliados-lamentam-vitoria-de-boric-no-chile.shtml?utm_source=twitter&origin=folha
Chile mostra que refluxo da direita pode chegar ao Brasil
Vitória de Boric marca virada na América Latina para governos de esquerda voltados ao diálogo e a causas sociais
Guilherme Boulos
Enfim, abriram-se as grandes alamedas chilenas por onde passarão o homem e a mulher livres. Essa foi a previsão de Salvador Allende em seu último e corajoso discurso, antes de ter o Palácio de La Moneda bombardeado e ser morto pelas forças golpistas de Pinochet. Demorou 48 anos, mas as alamedas se abriram neste domingo.
A vitória de Gabriel Boric sobre José Antonio Kast representa uma espécie de segunda morte do pinochetismo, o mais cruel regime latino-americano. Foi a expectativa de presenciar esse acerto de contas histórico que me levou, com a delegação do PSOL, a Santiago para acompanhar as eleições.
O resultado tem dois significados diretos para a América Latina. Simboliza, primeiro, o refluxo da ofensiva direitista. No último período, a esquerda venceu na Bolívia, no Peru, em Honduras e, agora, no Chile. Já havia vencido antes no México e na Argentina. No Brasil, Bolsonaro está enfraquecido, e pesquisas indicam amplo favoritismo de Lula para 2022. Ao que parece, a onda de governos autoritários e antipopulares se desfaz antes do que muitos imaginavam.
E Boric venceu apesar de todo o jogo baixo da extrema direita. Tantas foram as fake news que ele teve que mostrar um exame toxicológico para comprovar que não usava drogas. No dia do pleito, empresas de ônibus reduziram a frota para dificultar a locomoção de eleitores, afetando mais a base de Boric. Ainda assim o comparecimento foi recorde, e a vitória foi por margem maior do que a esperada, 55% a 45%.
O segundo ponto que merece destaque é a chegada de nova geração de esquerda ao poder. Boric tem 35 anos. É produto das grandes mobilizações estudantis de 2011, que também formaram lideranças como Giorgio Jackson e Camila Valejos, com papel de destaque na coalizão vitoriosa e provavelmente no futuro governo. Foram ainda os jovens chilenos que protagonizaram as grandes mobilizações de 2019, sem as quais a vitória de Boric seria impensável.
Pude conversar com várias dessas lideranças e com o próprio Boric nesses dias em Santiago e é muito bom ver como não carregam velhos vícios políticos, têm abertura para novas pautas —com destaque para a ambiental e a feminista— e são capazes de uma comunicação mais direta com a juventude, sem chavões tradicionais.
Mas o governo de Boric terá grandes dificuldades, a começar pelo boicote anunciado de setores econômicos e por não ter maioria parlamentar. Além disso, a contraofensiva da direita se concentrará na Constituinte, formada como resposta à revolta popular. A próxima batalha será o plebiscito sobre as alterações constitucionais progressistas. E não será fácil. Na verdade, nunca foi. Mas os ventos que vem do Chile nos enchem de esperança. O próximo acerto de contas será no Brasil.
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/guilhermeboulos/2021/12/chile-mostra-que-refluxo-da-direita-pode-chegar-ao-brasil.shtml