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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

terça-feira, 25 de maio de 2021

Revisitando a negociação nuclear Brasil-Turquia com o Irã - Rubens Barbosa (OESP)

 REVISITANDO A NEGOCIAÇÃO BRASIL-TURQUIA COM O IRÃ.

 

Rubens Barbosa

O Estado de S. Paulo, 25/05/2021


Espera-se para esta semana, a conclusão dos entendimentos entre os Estados Unidos e o Irã a fim de definir as condições para a volta do governo Biden ao acordo nuclear, abandonado por Trump e, por isso, desconsiderado por Teerã. 

 

Por seu interesse e oportunidade, transcrevo a descrição que o ex-embaixador da França nos EUA, Gerard Araud, fez dos entendimentos sobre esse importante acordo. No livro Passeport Diplomatique (Grasset,2019), Araud, na época diretor político do Quai D’Orsay e negociador francês nas tratativas com o Irã, comenta as negociações encetadas pelo Brasil e Turquia com o Irã, segundo a visão dos países que negociaram com o governo iraniano.

 

A iniciativa brasileira e turca de levar adiante a negociação, na interpretação de Lula e de seu ministro do exterior, resultou de pedido formulado por carta do presidente Obama, na qual ressaltava que os EUA apoiavam a proposta do ex-diretor geral da Agência Internacional de Energia Atômica no sentido de que o Irã transferisse 1.200 quilos de seu urânio de baixo enriquecimento para fora do país (Turquia). O presidente dos EUA lembra que havia pedido cautela a Lula nas negociações com o Irã, por não acreditar na boa fé do governo de Teerã, e instara o Brasil a insistir junto ao Irã a aceitar o oferecimento do governo de Washington de o país manter seu urânio na Turquia como caução, enquanto o combustível nuclear estava sendo produzido. Esse foi o encorajamento contido na carta de Obama. O acordo negociado pelo Brasil e Turquia com o Irã previa o envio por parte do Irã à Turquia de 1.200 quilos de seu urânio levemente enriquecido (a 3,5%) para uma troca, em um prazo máximo de um ano, por 120 quilos de combustível altamente enriquecido (20%), necessário para o reator experimental de Teerã. O acordo, que reconhecia ainda o direito do Irã de utilizar para fins pacíficos a tecnologia nuclear e o enriquecimento de urânio, segundo Celso Amorim, foi rejeitado pela secretaria de Estado Hillary Clinton, menos de 24 horas depois da sua assinatura.

 

Segundo Araud, no meio de uma difícil negociação que se estendia por mais de seis anos, “o Brasil e a Turquia, sem conhecer todos os detalhes desses entendimentos, decidiram interferir no processo, com base em uma interpretação da carta de Obama que reafirmava o objetivo que o grupo 5+1 (EUA, França, Reino Unido, Rússia e China) estava perseguindo (transferência do uranio para fora do país), sem entrar nos detalhes, como era de se esperar nesse tipo de correspondência”. “Os negociadores brasileiros e turcos, que desconheciam o histórico das longas negociações com o Irã, decidiram começar uma negociação paralela com base na carta de Obama a Lula e assinaram com os iranianos – que sabiam precisamente o que estava por detrás das palavras – um texto desequilibrado, que todos, inclusive a Rússia e a China, tiveram de rejeitar”. “No primeiro parágrafo do acordo, ficava reconhecido o direito do Irã de enriquecimento do urânio, que não estava em negociação com os EUA. Isso representava, de um lado, o descumprimento de cinco resoluções do Conselho de Segurança da ONU que solicitavam que o Irã suspendesse as atividades nessa área, e de outro, uma relevante inovação em termos de não proliferação, pois nunca o enriquecimento do urânio para programa nuclear foi considerado um direito, contrariamente ao direito no tocante ao uso pacífico da energia nuclear”. “O Brasil e a Turquia caíram em uma armadilha”. A bem da verdade, comenta Araud, “a carta de Obama era ao mesmo tempomuito pouco precisa e contribuiu para deixá-los perdidos em um labirinto, no qual os próprios negociadores do grupo estavam sem saída há seis anos”. “Brasil e Turquia se abstiveram na votação da Resolução do conselho de segurança que impôs sanções contra o Irã”. Araud conclui que, “além de desequilibrado, o acordo incorporou reivindicações do Irã que não haviam sido aceitas pelo grupo 5+1, como o direito ao enriquecimento do urânio para o programa nuclear, o que contrariava cinco resoluções da ONU, prevendo apenas sua utilização para fins pacíficos”.

Os comentários do ex-embaixador francês em Washington qualificam as reiteradas manifestações de Lula e de Amorim de que o Brasil se engajou na negociação com o Irã em decorrência de um pedido formal de Obama. Uma leitura atenta da carta do presidente dos EUA mostra que o governo americano apenas instou o Brasil e a Turquia a convencer Teerã a transferir o urânio de baixo teor para fora do país, nos termos da proposta a AEIA. 

 

Depois desse episódio que envolveu o Brasil diretamente, as negociações prosseguiram por quase uma década e foram concluídas em 2019. O Irã assumiu a obrigação de suspender por 15 anos seu programa nuclear com a redução do total de centrífugas e de seu estoque de urânio. Com a saída dos EUA, Washington voltou a impor sanções políticas e econômicas. A plena reativação do acordo sobre o programa nuclear de Teerã passa pelo cumprimento pelo Irã das restrições ao processamento do urânio e pela suspensão das sanções americanas.

 

Rubens Barbosa, presidente do IRICE e membro da Academia Paulista de Letras.

Bolsonaro, porcos e sardinhas - Bruno Carazza (Valor)

 segunda-feira, 24 de maio de 2021

Bolsonaro, porcos e sardinhas


Bruno Carazza

- Valor Econômico

Orçamento secreto inova para continuar tudo igual

Rogério Marinho, atual ministro do Desenvolvimento Regional, faz parte de uma linhagem da qual pertenceram Fernando Bezerra, Ramez Tebet, Ney Suassuna, Ciro Gomes, Geddel Vieira Lima, Mário Negromonte, Gilberto Kassab, Fernando Coelho e Helder Barbalho, entre outros. Em comum, são políticos com forte base local e que tiveram sob suas mãos a distribuição de verbas para a realização de obras Brasil afora. Trata-se da árvore genealógica do novo escândalo que ronda o governo Bolsonaro: o orçamento secreto - ou “tratoraço”, como preferem alguns.

Em qualquer lugar do mundo, político adora uma obra pública. Seja no lançamento da pedra fundamental ou no descerramento da placa de inauguração, não podem faltar o discurso das autoridades, a banda de música, a entrevista para a rádio local, as fotos para as redes sociais e aquele “banho de povo” que pode render muitos votos nas próximas eleições.

Enquanto educação, saúde e segurança são políticas públicas difíceis de serem atribuídas a um político em particular - pois resultam da cooperação entre União, Estados e municípios e apresentam resultados apenas no médio e longo prazos -, obras são entregas concretas que levam a marca de quem conseguiu os recursos em Brasília e viabilizou a construção da ponte ou do açude, o asfaltamento da estrada ou o embelezamento da praça da Matriz.

Houve uma época, nos Estados Unidos, em que ter uma despensa cheia de carne de porco era sinal de fartura e boa situação financeira. Daí vem a expressão “pork barrel”, usada na ciência política para designar a prática em que políticos tentam garantir recursos para agradar suas bases eleitorais. Assim, na discussão do Orçamento cada parlamentar tenta “puxar a brasa para a sua sardinha” - outra expressão alimentícia que talvez faça mais sentido em português do que o “pork barrel” dos americanos.

No Brasil, graças ao desenho da Constituição de 1988, esse jogo se dá em três etapas: 1) o Poder Executivo elabora a proposta de orçamento anual; 2) o Congresso Nacional a analisa, podendo modificá-la por meio de emendas e 3) a bola retorna ao Executivo, que executa o que foi aprovado, de acordo com a disponibilidade de dinheiro.

Dadas as características de nosso processo orçamentário, a pesquisa sobre o presidencialismo de coalizão brasileiro sempre atribuiu papel central a essa dimensão. Como é o presidente da República quem, em última instância, tem a chave do cofre, decidindo como vai aplicar os escassos recursos arrecadados, isso vira uma moeda de troca valiosa nas negociações com deputados e senadores. Atire a primeira pedra o presidente que nunca liberou dinheiro para a execução de emendas parlamentares nas vésperas de votações importantes no Congresso.

A prática do “é dando que se recebe” tem origem em tempos imemoriais - e vale aqui a indicação do clássico “Coronelismo, Enxada e Voto”, de Victor Nunes Leal (1948). A ditadura militar ressuscitou o Ministério do Interior, ao qual ficavam vinculadas todas as autarquias e estatais criadas para atuar em âmbito local, como a superintendências de desenvolvimento (Sudene, Sudam, Sudeco), o Departamento Nacional de Obras contra a Seca (Dnocs), a Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco (Codevasf), os bancos da Amazônia (Basa) e do Nordeste (BNB) e o Banco Nacional da Habitação (BNH), entre outros.

Já na Nova República, o balcão foi rebatizado como Ministério da Integração Regional por Itamar Franco, que o entregou ao então senador maranhense Alexandre Costa, do antigo PFL (atual DEM). Nos governos seguintes, os nomes mudaram - Integração Nacional, Desenvolvimento Regional - e houve desmembramento e depois reincorporação no Ministério das Cidades. Mas a lógica permaneceu a mesma: o governo concede a pasta a algum partido ou cacique regional, que decide onde alocar o orçamento para obras de infraestrutura, geralmente com fins eleitoreiros ou de barganha legislativa. E dá resultado.

O cientista político Fernando Meireles defendeu em 2019 uma tese de doutorado intitulada “A Política Distributiva da Coalizão”, da qual recebeu, com justiça, menção honrosa no Prêmio Capes. Utilizando técnicas econométricas modernas, Meireles demonstra relações de causalidade que comprovam que: 1) prefeitos de mesmo partido dos ministros recebem mais dinheiro público, especialmente em anos de eleição; 2) ministros tendem a favorecer municípios de seus Estados; e, fechando o ciclo, 3) localidades contempladas pelas políticas distributivas tendem a entregar mais votos para seu partido nas eleições seguintes para a Câmara dos Deputados.

Como Meireles alerta em sua tese, ao distribuir recursos orçamentários de forma estratégica, buscando conquistar votos ou apoio no Congresso, o governo acaba criando distorções. Sem dados ou evidências, aplica o dinheiro público nos lugares que dão maior retorno político aos políticos que patrocinam as emendas, e não onde é realmente necessário. E abrem as portas para a corrupção - tema que não é objeto da pesquisa do pesquisador.

Nos tempos de vacas gordas, quando o país crescia após o Real ou pelo “boom” das commodities, FHC e Lula construíram um arranjo político e econômico que gerava um superávit primário de 3% do PIB ao ano e ainda sobrava recursos para os partidos de sua base aplicarem nos seus redutos eleitorais. Com a crise a partir de 2015, a fonte secou e os parlamentares trataram de garantir sardinha para a sua brasa colocando na Constituição a execução obrigatória de parte de suas emendas individuais ou coletivas.

Com Bolsonaro, inaugura-se uma nova etapa do “pork barrel” brasileiro. Da boca pra fora, o presidente se gaba de não ter incluído seus ministérios no toma-lá-dá-cá com o Centrão. Entre quatro paredes, porém, Rogério Marinho e Luiz Eduardo Ramos (Casa Civil) criaram o orçamento secreto das emendas de relator (RP9), distribuindo bilhões a quem se dispõe a apoiá-lo, sem transparência ou controle, facilitando a corrupção.

Tudo muda, para continuar igual.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”. 

Bolsonaro e o Orçamento rabilongo - Marcus André Melo (FSP)

 segunda-feira, 24 de maio de 2021

Marcus André Melo* - Bolsonaro e o Orçamento rabilongo

- Folha de S. Paulo

O 'Orçamento secreto' é mecanismo opaco para premiar o apoio legislativo para além dos controles institucionais

Rui Barbosa foi a um só tempo espirituoso e preciso quando chamou o Orçamento federal de rabilongo: as leis orçamentárias continham adendos sem relação com o Orçamento. O rabo era longo —as chamadas “caudas” e a Constituição de 1891 só previam o veto total que funcionava como uma camisa de força, pois o presidente era forçado a acolher os adendos à sua própria proposta orçamentária. Era pegar ou largar.

Era comum a inclusão na “cauda” de dispositivos prevendo novas despesas (sem previsão de receita) pela criação de órgãos ou cargos, e matérias alheias ao assunto, incorporadas na 25ª hora diretamente no plenário do Congresso.

Paradoxalmente o Orçamento rabilongo não expressava o poder do Executivo, mas sua impotência. O veto parcial introduzido na reforma constitucional de 1926 foi acompanhado de dispositivos para fortalecer o poder presidencial (na área da intervenção federal nos estados etc).

Com o veto parcial, a assimetria funciona a favor do Executivo, e é reforçada pela prerrogativa de contingenciamento do Orçamento (que é apenas autorizativo). O Executivo detém o poder negativo de não gastar o aprovado, o que possibilita a barganha em torno de emendas individuais. Uma emenda expressa “preferência revelada” do deputado, informação estratégica para o Executivo.

O poder de contingenciar permaneceu integralmente com o presidente até a aprovação das EC 86/2015 e 100/2019, pelas quais as emendas individuais e coletivas passaram a ser impositivas.

O Orçamento impositivo reduz a assimetria pró-Executivo, mas exacerba problemas de racionalidade fiscal e administrativa. Onde o Legislativo detém poder sobre o Orçamento, os partidos políticos facilitam o alinhamento entre interesses individuais dos parlamentares (local/setorial) e do presidente (nacional), mitigando a chamada tragédia dos comuns. Ao contrário do parlamentares individuais, partidos fortes e disciplinados têm horizonte político longo e escopo nacional.

Sob o parlamentarismo, na OCDE, o poder Executivo é exercido pelo gabinete que não é outra coisa senão uma supercomissão partidária com funções executivas. Nos EUA, a assimetria pró-Legislativo é expressa no Orçamento mandatório (reafirmado pelo Impoundment Act de 1974 após escândalo de contingenciamento no governo Nixon).

O “Orçamento secreto” de Bolsonaro não é rabilongo: ao contrário, é mecanismo opaco para premiar o apoio legislativo para além de controles institucionais. Nesse sentido, não tem a ver com a dinâmica do Orçamento crescentemente impositivo. Ele reduz a assimetria pró-executivo, mas representa forma predatória em contexto de hiperfragmentação partidária.

*Professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA).


A volta da carestia - Felipe Salto (OESP)

 A volta da carestia

Felipe Salto

O Estado de S.Paulo, 25 de maio de 2021


“O Estado não pode assistir a isso calado. A população pobre é a que sofre mais”

A inflação de alimentos, o aumento do número de pessoas sem emprego ou fora da força de trabalho e a evolução da renda preocupam. A população pobre sofre mais. O Estado tem o dever de dirimir essas mazelas por meio de políticas adequadas. Não pode assistir calado à volta da carestia.

A inflação foi impulsionada pela alta do dólar, que afetou os preços dos insumos e dos bens finais importados. O repasse para a inflação geral acabou ocorrendo à medida que essa pressão da taxa de câmbio resistia. Em paralelo, a alta das commodities tem afetado os preços internos. A Instituição Fiscal Independente (IFI) aponta que o IPCA totalizará alta de 7,4% no acumulado em 12 meses até junho.

O IPCA indicou inflação de 6,8% no acumulado em 12 meses até abril. Cálculos do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea) mostram que o fardo é maior sobre as classes mais baixas. Na classificação do instituto, as pessoas com renda muito baixa enfrentaram alta de preços de 7,7% até abril, enquanto as de renda alta perceberam 5,2% de inflação.

A abertura do IPCA, conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostra que os preços do grupo alimentação no domicílio cresceram 16%. Os preços de dois itens básicos, arroz e feijão, subiram 57% e 51%, respectivamente. O grupo das carnes no IPCA aumentou 35%. O patinho ficou 37% mais caro, o preço do músculo bovino aumentou 41% e os do acém e do peito cresceram 38% e 46%. Mesmo o frango em pedaços teve alta de 14%.

A renda média do brasileiro subiu apenas 1,3% acima da inflação entre o trimestre encerrado em fevereiro de 2020 e o encerrado em fevereiro de 2021. A renda dos trabalhadores do setor privado com carteira assinada caiu quase 1% em termos reais. O trabalhador doméstico amarga uma queda de 4,5% nos seus rendimentos. Já a remuneração do trabalhador formal por conta própria caiu 4,6%.

O número total de brasileiros e brasileiras ocupados passou de 93,7 milhões para 85,9 milhões. O total de pessoas desocupadas ou fora da força de trabalho saltou de 78,3 milhões para 90,9 milhões. No mercado informal, quase 2 milhões de trabalhadores sem carteira perderam seu trabalho. Já entre os informais que trabalham por conta própria, 1,3 milhão perdeu o ganha-pão.

Então, quem está empregado vê sua renda corroída pela inflação de alimentos. Por sua vez, os que perderam emprego dependem dos programas sociais e do auxílio emergencial. A esse respeito, é preciso ter claro que o programa em vigência é insuficiente. E não é por falta de orçamento, mas pela escolha equivocada de prioridades e pela insensibilidade social de um governo fraco. Governar é escolher.

No ano passado, a primeira versão do auxílio emergencial pagou, durante cinco meses, um benefício em torno de R$ 697 para mais de 66 milhões de pessoas. Agora são R$ 230 reais para 39 milhões de pessoas. Serão quatro parcelas mensais, insuficientes para garantir a subsistência de milhões de brasileiros.

Para ter claro, se o beneficiário utilizasse os R$ 230 mensais apenas para comprar arroz, feijão e carne, ele conseguiria sustentar sua família por quatro dias. A conta considera um consumo de 200 gramas de cada item, no almoço e no jantar, tomando como base uma família de quatro pessoas.

Um cálculo alternativo: o valor médio da cesta básica está em torno de R$ 550, ou seja, o auxílio deste ano representa pouco mais de 40% da cesta, o equivalente a 12 dias de alimentação em um mês. E os outros 18 dias?

Muitas famílias só estão sobrevivendo graças à boa vontade de ONGs, associações e pessoas que se mobilizaram para arrecadar alimentos e distribuí-los em comunidades pobres. Se o Estado não é capaz de cuidar disso, está falhando no essencial.

Antes da crise da covid-19, o País já estava em situação de elevada desigualdade e pobreza. Mas em fevereiro deste ano, segundo levantamento recente da Fundação Getúlio Vargas (FGV), 27 milhões de pessoas viviam em situação de pobreza. O número é quase três vezes superior ao observado em agosto de 2020, quando o auxílio emergencial (em valor mais alto) cumpriu o seu papel. As mudanças no benefício têm efeitos drásticos sobre as famílias pobres.

Estudo elaborado pelos pesquisadores do Ipea Rodrigo Orair, Letícia Bartholo, Luiz Paiva e Pedro Souza mostra que é possível cuidar mais adequadamente da questão social. Eles também apresentam alternativas para financiar os gastos adicionais necessários. Não é por falta de diagnóstico e de proposta que o governo está paralisado. É por inépcia.

É preciso, nesta quadra de trevas da vida nacional, lembrar dom Hélder Câmara: é inaceitável assimilar a pobreza como uma condição imutável. A culpa é nossa, de todos, mas, sobretudo, de quem tem poder para formular e executar políticas públicas. Temos de nos organizar para mudar essa situação. A volta da carestia e o aprofundamento das desigualdades são consequências da crise. Aceitá-las é apenas uma entre muitas escolhas possíveis.

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Primeiro Diretor-Executivo da IFI. As opiniões são pessoais e não vinculam a instituição.

Sun Tzu e Tucídides: da arte da guerra aos erros da diplomacia - Paulo Roberto de Almeida

 Um possível ensaio reflexivo sobre uma das grandes paranoias contemporâneas, não muito diferente, talvez, da ridícula teoria conspiratória sobre a dominação do mundo e a subtração das soberanias nacionais pelo monstro metafísico do globalismo. A primeira lição da História, inventada pelos gregos, é que os homens não aprendem nada com as lições da História...


Sun Tzu e Tucídides: da arte da guerra aos erros da diplomacia

Paulo Roberto de Almeida 

Uma releitura da obra do mestre chinês em estratégia, que é bem mais uma profunda reflexão sobre as virtudes da diplomacia como meio de evitar um tipo de guerra que foi apenas relatado, com os dotes de verdadeiro estadista pelo genial historiador grego da Antiguidade, não teorizado, e transformado em suposta “armadilha”, por cientistas políticos contaminados pela arrogância míope de um império pretensamente hegemônico. 

Analogias históricas são atraentes, mas geralmente, ou inevitavelmente, falsas. A História não se repete, nem como tragédia, nem como farsa. 

Sun Tzu ainda tem muito a ensinar aos contemporâneos, sobretudo aos que equivocadamente imaginam que o mundo gira em torno de seus interesses nacionais. Esse novo tipo de “geocentrismo” está destinado a falhar, como falharam os infelizes equívocos diplomáticos dos atenienses, no trato com seus aliados, tomados que foram pela conhecida  “hubris” sobre a qual alertavam os mesmos gregos da Antiguidade.

A História pode fornecer lições, mas uma das principais é a de que os homens enfrentam algumas dificuldades para aprender com as lições da História. 

Será que a diplomacia não fez grandes progressos desde a guerra de Troia? As paixões e os interesses continuam a prevalecer sobre a modesta racionalidade da ciência histórica, criada pelos mesmos gregos, da poesia de Homero às cruéis realidades descritas por Heródoto e, finalmente, refletidas de forma ponderada por Tucídides? 

Cabe, portanto, destacar, as virtudes do mestre chinês da Grande Estratégia diplomática, em face das deformações militaristas de aprendizes de pequenas estratégias equivocadas, e portanto condenadas ao fracasso. Os paranoicos da “armadilha” inventada fariam bem em aprender com Sun Tzu, em primeiro lugar sua lição principal: a grande sabedoria está em ganhar a “guerra” sem precisar combater.


Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 25/05/2021

Will Covid-19 mean another lost decade for Latin America? - Jeremy Cliffe (New Statesman)

  

New Statesman, Londres – 23.5.2021

Will Covid-19 mean another lost decade for Latin America?

From Mexico to Argentina, the pandemic has intensified inequality, social unrest and political instability.

Jeremy Cliffe

 

On 18 October 2019 a group of Chilean school pupils began a campaign of fare dodging on the metro in Santiago. In stations across the centre of the capital exuberant teenagers leaped over turnstiles while chanting: “Evadir, no pagar, otra forma de luchar!” (“Evade, don’t pay, a different way to fight!”). Their grievance was a small one, a 30 peso (about $0.04) hike in ticket prices. But it proved the sparkAnd Chile, long held up as a beacon of prosperity and stability in Latin America, turned out to be the tinderbox.

The country’s economic growth had slowed in recent years, exposing the inequalities in a free-market model that had often been brandished as an example to others in Latin America. Despite having had a left-led government for 14 out of the past 20 years, and falling rates of poverty, Chile remained one of the most unequal states in the Organisation for Economic Co-operation and Development. Healthcare, education and pensions provision for low- and mid-earners were threadbare. What followed the high school students’ protest in October 2019 came to be known as el estallido social – the social explosion – as citizens surged on to the streets. A state of emergency was declared. More than 1.2 million people marched in the biggest demonstration in Chile’s history.

Then Covid-19 struck. But far from curbing el estallido, it supercharged the movement. Many Chileans, particularly those working in the large informal economy, lost their jobs and fell through the country’s ragged social safety net. In El Bosque, a deprived neighbourhood in Santiago that is far from the gleaming skyscrapers dubbed “Sanhattan”, residents defied lockdown to stage “hunger protests”, demonstrating against food shortages. Without even the meagre support paid to the poorest, and often heavily indebted after years of easy credit, many middle-class families slipped into penury. Cacerolazos – pot-banging protests – rang out from balconies.

In October 2020, against a backdrop of renewed street protests, 78 per cent of Chilean voters supported rewriting the country’s constitution, a revised form of the one introduced by the Pinochet dictatorship in 1980. A vote held this past 15-16 May to elect a constitutional convention, the body tasked with drafting new legislature, was a triumph for the left and for political outsiders. The conservative coalition of Sebastián Piñera, the country’s billionaire president, failed to secure enough seats to hold a one-third blocking minority. The country is now putting its social contract up for discussion in a way never seen before in its post-Pinochet history. Change is afoot. But change to what?

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It is hard to generalise about the countries between the Rio Grande and Tierra del Fuego. Parts of Latin America such as Chile and Panama are as rich as the poorer regions of western Europe; others such as Venezuela and Nicaragua are nearer to sub-Saharan development levels.

Politically, Latin American leaders range from the free-market right (Chile), via populists of right (Brazil) and left (Mexico) to the progressive left (Costa Rica); from autocracies (Venezuela) via hybrid regimes (Guatemala) and flawed democracies (Argentina) to full democracies (Uruguay). Covid has struck unevenly, killing a few hundred per million in parts of central America and the Caribbean but more than 2,000 per million in Brazil.

 

Yet broad shifts have, historically, defied the region’s borders and made it possible to talk about a common Latin American experience. Millennia of indigenous history were abruptly interrupted by colonisation. Then in the early 19th century came liberation, which the Chilean poet and public figure Pablo Neruda described as the “tree of the people” in his poem “The Liberators”:

Its heroes rise up from the earth

as leaves from the sap,

and the wind spangles the whispering

multitude’s foliage

 

Battles between liberals and reactionaries in the young republics gave way to the export boom of the turn of the 20th century, then dictatorships before and during the Cold War. Debt crisis, then political and economic liberalisation followed in the 1990s, then debt crisis once more. In the 2000s the Latin American narrative involved a turn to the left as part of a so-called pink tide, often accompanied by an economic boom and social progress, before a more difficult 2010s halted, or even reversed, many of those trends.

Across the continent, Covid has severely worsened that hangover, intensifying Latin America’s economic problems, social unrest and political instability. Nayib Bukele, El Salvador’s right-wing strongman president, last month won a super-majority in the country’s legislative elections, which could enable him to overhaul his country’s legal and political systems. Inflation is soaring in debt-burdened Argentina as its president Alberto Fernández rushes to refinance some $45bn in loans soon due to the International Monetary Fund.

In Colombia, violence is escalating as protests triggered by an unpopular tax reform enter their third week. The fatal collapse of a metro overpass on 3 May has highlighted Mexico’s crumbling infrastructure. Brazil, the region’s most populous country, is experiencing a new surge in Covid infections as Jair Bolsonaro, its right-wing authoritarian president, faces a parliamentary inquiry over his country’s pandemic response. Peru’s presidential run-off on 6 June pits two anti-system candidates, populists of right and left, against each other. Across the region, dashboards are flashing red.

***

To understand the present it helps to go back to the optimism of the recent past, recalling when Latin America was, as it has been at various points in its history, the “land of the future”, as the author Stefan Zweig once wrote of Brazil. In the years after the turn of the millennium things seemed to be going the region’s way. It had escaped from dictatorship, it produced many of the commodities that a rising China needed (oil, soy, meat, iron, copper, ethanol, wheat, aluminium), it was flush with foreign investment, and demographically it was growing richer but not yet old.

With the pink tide, the region was suddenly governed by a cluster of left-of-centre leaders: the social democrats Michelle Bachelet in Chile and Luiz Inácio Lula da Silva in Brazil; the Peronist Néstor Kirchner in Argentina; the indigenous rights activist Evo Morales in Bolivia; and the socialist strongman Hugo Chávez in VenezuelaDespite their different shades of leftism, these leaders were united by a commitment to reducing Latin America’s appalling inequalities. Collectively, they did so. According to the UN Economic Commission for Latin America and the Caribbean (ECLAC), poverty fell from 45.4 per cent in 2002 to a low of 28.6 per cent in 2013. The Latin American middle class in particular burgeoned, with mid-income groups swelling from 27 per cent of the population in 2002 to 41 per cent in 2017.

But then the golden decade gave way to a lost one. Hubris, mismanagement, clientelism and corruption that were present to varying extents across the pink tide countries – and most grotesque in Venezuela – took their toll. The rise of China and other geopolitical shifts (such as the North American shale energy boom) cut commodity prices. Credit dried up. Left-of-centre governments had not used the good times to build innovative, productive, broad-based economies that could sustain social progress once the fruits of the mines and fields, rainforest and pampa, no longer did so. “Fiscal responsibility and handouts to the poor, that’s not leftism in my book,” says Roberto Unger, a Brazilian philosopher and a former minister of the Lula administration.

So several negative trends were already in place even before Covid hit. Real GDP/capita in Latin America and the Caribbean declined by 0.6 per cent per year between 2014 and 2019. Economic growth in 2019 was just 0.5 per cent across the region, compared with more than 5 per cent during the boom years of the 2000s. Unemployment rose, as did the proportion of workers in low-productivity sectors. Poverty and extreme poverty started to rise again.

In some places the failure of the pink tide prompted a turn to the political right: in Chile in 2010 (and again in 2018), in Argentina in 2015, in Brazil in 2018 and in Uruguay in 2020. But the backlash was also felt across political systems and societies as a whole.

The Economist Intelligence Unit’s Democracy Index shows that the quality of democracy has fallen in Latin America and the Caribbean every year since 2015. “Democracy in Latin America is facing a critical period,” wrote Daniel Zovatto, of the Brookings Institute, in a report published in February 2020. “[It] is marked by ‘irritated democracies,’ characterised by anaemic economic growth, citizen frustration, social tensions, discontent with politics, and weak governance.”

Such was the backdrop to the pandemic. Covid has hit Latin America harder than any other part of the world. In the next few days it will become the first region to record its one millionth death from the virus. One explanation for its particularly disastrous experience is that it combines rich-world levels of urbanisation with mid-income and poor-world levels of state and health system capacity. The result has been the world’s most severe social restrictions. According to Unicef, Latin American children have missed more school than their counterparts anywhere else, constituting almost 60 per cent of all those globally who have missed an entire year. Prolonged lockdowns have hit hard in countries with large informal economic sectors in which workers cannot easily claim welfare benefits.

Latin America’s economic contraction, of 7.4 per cent last year, was the biggest of any region in the world. In the region’s own history you have to go back two centuries to 1821, the time of Simón Bolívar and the Spanish American wars of independence, to find a downturn so big. Its recovery so far looks meagre. Far from becoming the world’s fifth economy, as Goldman Sachs predicted in 2003, Brazil last year fell from ninth to 12th.

Just as the pandemic is intensifying Latin America’s economic woes, so it is further inflaming social relations. Chile is not the only country where middle-class citizens are feeling the squeeze: ECLAC assesses that some 59 million Latin Americans classed as mid-income in 2019 are in a worse economic situation now than they were then, and that 25 million people have dropped out of the mid-income bracket in the past year. During lockdowns the region’s rich have fled to country or coastal second homes, while others either struggle to find work or do so from homes where internet access is limited.

In poor areas, such as the shanty towns around the edges of many major Latin American cities, support has been almost non-existent. “Large poor communities like the favela da Rocinha and the favela da Maré [slums in Rio de Janeiro] cause us great concern,” Margareth Dalcolmo, a pulmonologist in Rio, told the New Statesman last spring. “The favelas receive no help, even in terms of access to sanitation and drinking water.” Her concern would prove prescient: not only have some favelas seen more Covid deaths than some whole countries, but areas like da Maré also now face new crises of hunger and violence (a police raid in one favela in Rio on 6 May left at least 25 dead).

Such pressures are putting democracies under strain. Andrés Manuel López Obrador, the president of Mexico, last month tried to extend the term of a judge considered sympathetic towards him in what critics called an unconstitutional power grab. The second round of Peru’s presidential election pits the self-described Marxist-Leninist Pedro Castillo against Keiko Fujimori, the daughter of the country’s authoritarian 1990s president.

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In Brazil, Bolsonaro is attempting to politicise the military and has hinted he might seek to defy a defeat in next year’s presidential electionMeanwhile, the region’s economic struggles are creating footholds for illiberal foreign powers such as China – whose vast investments there have continued and whose Sinovac vaccine is a major component of Latin American portfolios of orders. The current turmoil in Colombia, sparked by a modest package of measures to help stabilise the public finances introduced by its president, Iván Duque Márquez, may prove a foretaste of unrest across the region when the bills for Covid support programmes are due.

The major trend of recent elections in Latin America has been less an ideological one than one of instability and anti-incumbency. But seeing as many sitting presidents are conservatives elected as part of the reaction against the pink tide, there may overall be a new tilt to the left. Obrador’s election in 2018 in Mexico and that of Fernández in Argentina in 2019 looked like isolated cases. But they may soon be joined by others. The leftist Castillo is ahead in the polls in Peru. Colombia’s protests have been accompanied by soaring support for Gustavo Petro, the left-wing former mayor of Bogotá who has played a leading role in the demonstrations, ahead of a general election in 2022.

In Brazil, a new poll on 12 May showed a resurgent Lula – whose corruption convictions were quashed by a supreme court judge in March – taking a 55 per cent lead against Bolsonaro in next year’s presidential election run-off. Meanwhile, Chile’s referendum to redraft its constitution indicates that the left there too is on the rise. Daniel Jadue, a communist, has strong polling numbers ahead of a presidential election in November.

It would be a mistake to make assumptions about how those contests will play out. But nonetheless it is valid to ask: if the 2020s do herald a second pink tide in the region, will it be one that learns from the mistakes of the first? Can it construct an economic model that goes beyond clientelism and commodities? Can it build a sustainable foundation for productive, innovative, investment-led economies? Can it embed progressive goals through institutional and structural reform?

There are reasons to be sceptical. Latin America will probably emerge from Covid slowly. At the time of writing, only 15 per cent of South Americans have had their first vaccine dose (and numbers in Mexico and Central America are similar), compared with 47 per cent in the US. Herd immunity will come only around the turn of the next year, at the earliest. And when it does, Latin America will face the same problems as before – democracy deteriorating, inequality rising, economies stagnating – but made more difficult by the pandemic’s legacy of increased debt, polarisation and distrust.

It is not hard to imagine the next few years being yet another period of stagnation for this region defined more than most by false dawns. Neruda captured the long frustration. “Latin America is very fond of the word ‘hope’,” he wrote. “This hope is really something like a promise of heaven, an IOU whose payment is always being put off. It is put off until the next legislative campaign, until next year, until the next century.”

***

Yet hope is not nothing. There are reasons why Latin America is imbued with so much of it. It remains the most democratic region in the world after North America and Europe. It is urban, open and broadly socially liberal: relatively comfortable with its ethnically diverse make-up (even if deep inequalities persist), the most advanced on LGBT rights of any part of the Global South. It is moving forward on other measures of progress, such as Argentina’s historic legalisation of abortion in December 2020. Latin America’s only ongoing major war, which was fought between the Colombian government and the Farc rebels, reached a ceasefire agreed five years ago.

Reflecting on Brazil, his country and Latin America’s most populous nation, Unger defies the ambient gloom:

“I’ve gone through the whole country, every state, the interior of every state. I’ve spoken with people of every class of society. My experience is one of complete openness. The country is ready, is capable of taking a surprising turn… It’s enormously exciting. It’s the real thing. That’s what politics is for.”

Across the Andes, Chile’s constitutional convention can be seen in the same way: it is not just a symbol of what is broken but also of the will to making things better, the mark of a region where people have the fire in their veins to stand up when things are wrong and open a structural discussion. Neruda was right: hope is not a sufficient condition for change. But it is a necessary one.

 

This piece appears in the current issue of the New Statesman magazine

segunda-feira, 24 de maio de 2021

Ian Buruma sobre o conflito EUA-China (2012)

 Reproduzo matéria do Le Monde, de janeiro de 2012, postada originalmente em meu blog Shanghai Express:

Sunday, January 8, 2012

Ian Buruna on China - Le Monde

"Le modèle chinois ébranle les certitudes américaines"

LE MONDE CULTURE ET IDEES | 07.01.12 | 17h08   •  Mis à jour le 08.01.12 | 09h15
par Propos recueillis par Sylvain Cypel
Des employées d'une ligne de production dans l'entreprise de matériel électronique Suzhou Etron à Suzhou, en Chine.
Des employées d'une ligne de production dans l'entreprise de matériel électroniqueSuzhou Etron à Suzhou, en Chine.Reuters/© Aly Song / Reuters

NEW YORK, CORRESPONDANT - Installé depuis 2005 à New YorkIan Buruma est devenu l'un des intellectuels les plus en vue aux Etats-Unis. Il collabore à la New York Review of Books, au New York Times et au New Yorker. Polyglotte (néerlandais, anglais, allemand, chinois, japonais et français, quoi qu'il en dise), il a été l'éditeur des pages culturelles de la Far Eastern Economic Reviewà Hongkong, et de The Spectatorà Londres. Aujourd'hui professeur de démocratie, droits de l'homme et journalisme à l'université Bard - "façon de dire que j'enseigne ce que je veux, c'est le charme du système universitaire américain", dit-il en riant -, il est un auteur polyvalent et prolifique. Nous avons interrogé cet intellectuel à focale large, prix Erasmus 2008, sur sa spécialité initiale : la Chine et l'Extrême-Orient.

Votre itinéraire vous place au carrefour de l'Asie, de l'Europe et de l'Amérique. En quoi cela influence-t-il votre regard sur le monde ? 
Mon père est néerlandais, ma mère anglaise d'origine juive allemande. L'Asie puis l'Amérique se sont ajoutées un peu par hasard. Très jeune, étudiant en langue et littérature chinoises, j'étais un cinéphile. Un jour, j'ai vu à Paris Domicile conjugal(1970), de François Truffaut. Le personnage d'Antoine Doinel y tombe amoureux de la Japonaise... et moi aussi ! A l'époque, aller en Chine était impossible. Je me suis donc tourné vers le Japon, où j'ai étudié le cinéma et participé à la troupe de danse Dairakudakan. L'Amérique est venue à moi tardivement, quand on m'a proposé d'yenseigner. Je me sens toujours plus européen qu'américain. Un Européen marié à une Japonaise et parfaitement chez lui à New York, la ville de la mixité.
Vous êtes progressiste et un produit typique du multiculturalisme. Pourquoi dénoncez-vous la "courte vue" des progressistes sur l'islam ?
Je ne suis pas "progressiste". C'est ce pays tellement conservateur que sont les Etats-Unis qui m'a beaucoup poussé à gauche ! Je l'étais moins en Europe et en Asie. Je n'ai jamais admis les complaisances de gens de gauche pour toutes sortes de potentats sous le prétexte d'accepter les différences. Et je suis opposé à l'idéologie du multiculturalisme. Lorsque le terme décrit une réalité, il me convient. Sur le plan factuel, je suis multiculturel. Mais l'idée que les gens doivent impérativement préserver toutes leurs racines est absurde. Dans le cas célèbre d'un crime d'honneur commis en Allemagne, où le juge avait estimé que le criminel avait des circonstances atténuantes en raison de sa culture d'origine, je considère qu'il a tort.
Il y a des choses plus importantes que la culture. Je n'admets pas l'argument culturel pour justifier l'excision. En même temps, je suis plus tolérant que la loi française pour l'affichage des symboles religieux. Qu'une policière ou une enseignante soit interdite de porter le niqab dans ses fonctions, oui. Une personne dans la rue, non. Ce type d'interdiction n'est qu'une façon de dissuader des gens impopulaires d'adhérer à une religion impopulaire.
La peur des Japonais était très forte il y a vingt-cinq ans aux Etats-Unis. Comment expliquez-vous qu'un même phénomène soit aujourd'hui dirigé contre la Chine ?
Les deux phénomènes ne sont pas similaires. Ce qui faisait peur aux Américains il y a une génération, c'était la visibilité des Japonais : Mitsubishi rachetait leRockefeller Center, Toyota déboulait, etc. Leurs marques étaient très visibles. De plus, dans l'histoire américaine, les Japonais sont suspects. Aujourd'hui, les Américains se disent que, si les Chinois parviennent à la puissance qu'avaient les Japonais, ils seront bien plus dangereux. Mais, sur le fond, la menace nipponne avait été grandement exagérée et la menace chinoise l'est tout autant. D'abord, l'absence de liberté intellectuelle en Chine reste un obstacle très important pour son développement. Ensuite, l'intérêt des deux parties à préserver des liens l'emportera sur les forces poussant au conflit.
Quelle est la part de réalité et de fantasme dans cette tension montante ?
Par fantasmes, vous entendez peur. Elle est fondée : la montée en puissance de la Chine ne pourra que réduire le pouvoir et l'influence américaine dans le monde. Après 1945, les Etats-Unis sont devenus le gendarme de l'Asie. Ce n'est plus le cas. Des peurs populistes sont également fondées sur des motifs socio-économiques. Mais je ne pense pas qu'elles atteignent le niveau des peurs antinippones de la fin des années 1980. Et les craintes de l'influence économique chinoise sont surtout concentrées dans les Etats de la vieille économie, où l'industrie lourde est en déclin.
Un sondage de l'Institut Pew a montré que les Américains croient que la Chine est devenue la première puissance économique mondiale. Or elle reste loin des Etats-Unis. C'est un fantasme typique... 
C'est une combinaison d'ignorance et de peurs, exploitées par des chroniqueurs de radios dans le but de blâmer Barack Obama. Mais je le répète : le déclin des Etats-Unis est un fait, comme la montée en puissance économique de l'Asie. Ce déclin génère un choc, dont il ne faut pas s'alarmer inconsidérément. Au début du XXesiècle, l'invention du personnage de Fu Manchu (sorte de génie du Mal incarnant le "péril jaune") avait provoqué un arrêt de l'immigration sino-nipponne en Amérique qui avait même eu un impact en Europe. A suivi la menace communiste, qui était, pour les Etats-Unis, loin d'être aussi réelle qu'on l'a présentée. Mais même la CIA y a sincèrement cru.
Les Etats-Unis sont un pays qui vit sous la peur constante de puissances extérieures qui menaceraient de faire disparaître son espace sécurisé. Ce pays a bâti et a été bâti par une société d'immigrés mais, dans le même temps, il pourchasse ces immigrés pour se protéger. Comme la France, du reste. Et, comme les Français, les Américains s'estiment porteurs d'une mission civilisatrice universelle. Or le "modèle chinois" ébranle leurs certitudes.
Est-ce parce que les Américains fondent leur économie sur l'idée que la liberté est le meilleur garant du succès, alors que les Chinois ont une croissance très supérieure avec un régime dictatorial ?
C'est exactement ça. Ce mélange chinois réussi de capitalisme et d'Etat fort est plus qu'une remise en cause, il est perçu comme une menace. Je ne vois pourtant pas monter une atmosphère très hostile à la Chine dans l'opinion. Depuis un siècle, les Américains ont toujours été plus prochinois que pronippons. Les missions chrétiennes ont toujours eu plus de succès en Chine qu'au Japon. Pour la droite fondamentaliste, ça compte. Et, dans les années 1980, des députés ont détruit des Toyota devant le Capitole ! On en reste loin.
Et le regard des Chinois sur les Etats-Unis, comment évolue-t-il ?
Tout dépend de quels Chinois on parle, mais, pour résumer, c'est attirance-répulsion. Surtout parmi les classes éduquées qui rêvent d'envoyer leurs enfants dans les universités américaines et en même temps peuvent être emplies de ressentiment à l'égard d'une Amérique qu'elles perçoivent comme hostile, pour beaucoup à cause de la propagande de leur gouvernement. Du communisme comme justificatif du pouvoir il ne reste rien. Le nouveau dogme est un nationalisme fondé sur l'exacerbation d'un sentiment victimaire vis-à-vis du Japon et des Etats-Unis. En Chine, à Singapour, en Corée du Sud, on constate une forte ambivalence typique de certaines élites, par ailleurs fortement occidentalisées, pour qui le XXIesiècle sera asiatique. Dans les années 1960, au Japon, a émergé une nouvelle droite ultranationaliste, dont les représentants les plus virulents étaient professeurs de littérature allemande ou française. Ils voulaient se sentir acceptés, légitimes en termes occidentaux, et se sentaient rejetés. C'est ce que ressentent aujourd'hui les nationalistes chinois.
En 2010, vous avez écrit que la Chine est restée identique sur un aspect essentiel : elle est menée par une conception religieuse de la politique. Serait-elle politiquement soumise à l'influence du confucianisme, comme l'espace musulman le serait par le Coran ?
Dans le cas chinois, il ne s'agit pas que de confucianisme ; le maoïsme était identique. Il n'y a aucune raison pour que les musulmans ne puissent accéder à la démocratie tout en préservant leur religion. La Turquie, l'Indonésie l'ont fait. La Chine le pourrait tout autant. Des sociétés de culture sinisante comme Taïwan ou la Corée du Sud ont montré qu'un changement est possible. L'obstacle àsurmonter, en Chine, est que le confucianisme rejette la légitimité du conflit. L'harmonie est caractérisée par un ordre social ou règne l'unanimité. Donc la plus petite remise en cause apparaît instantanément menaçante.
Qu'est-ce qui pourrait déclencher un processus démocratique en Chine ?
Le plus grand obstacle est l'alliance entre les élites urbaines et le Parti communiste. Les deux ont peur de l'énorme masse paysanne ignorante. Ces élites ont une telle histoire récente de violence et une telle peur d'un retour du chaos qu'elles préfèrent un ordre qui leur assure la croissance, au risque d'avancer vers la démocratie. Pour le pouvoir, la grande faiblesse de ce système est que, le jour où l'économie cesse de croître et que l'enrichissement des élites urbaines s'arrête, l'édifice s'écroule. Dans ce cas, tout pourrait advenir, d'une alliance entre démocrates, ressortissants des nouvelles élites, et une fraction du parti, jusqu'à un coup d'Etat militaire.

domingo, 23 de maio de 2021

A diplomacia bolsolavista no contexto mundial e comparada aos antecedentes lulopetistas: um depoimento pessoal - Paulo Roberto de Almeida

 A diplomacia bolsolavista no contexto mundial e comparada aos antecedentes lulopetistas: um depoimento pessoal 

Paulo Roberto de Almeida

Entrevista para estudantes da Pós-graduação em Economia da FEA-USP – EPEP

e para membros do LAI - Laboratório de Análise Internacional Bertha Lutz, IRI-USP. Texto de apoio a mentoria, em 28/05/2021; EPEP-FEA-USP.

 

Perguntas do EPEP-FEA-USP e respostas de Paulo Roberto de Almeida (PRA):

1. A gestão do Ernesto Araújo frente ao Itamaraty, como o senhor bem coloca em seus textos, foi desastrosa para a imagem do Brasil no exterior. Com esse novo chanceler, o Carlos França, parece que o governo brasileiro está tentando reduzir alguns atritos construídos da gestão anterior. Quais o senhor diria que são os caminhos para a reconstrução da imagem brasileira pós-Ernesto Araújo? O que o Itamaraty pode fazer agora para amenizar a condição de “pária internacional” do Brasil? (possivelmente: uma saída de Bolsonaro é condição necessária para isso?)

PRA: Como um dos poucos diplomatas da ativa – talvez o único – a ter oferecido resistência aos despautérios perpetrados contra a nossa política externa por essa coisa horrorosa e disfuncional que eu chamei de bolsolavismo diplomático, recebi diversas demandas de jornalistas tão pronto o desequilibrado chanceler acidental foi, finalmente, afastado da direção do Itamaraty, em 29 de março de 2021, depois de dois anos e três meses de sua obra nefasta de demolição da diplomacia profissional. Todos os jornalistas formulavam a mesma pergunta: o que se poderia esperar de “diferente” na nova gestão, comparada à do seu esquizofrênico antecessor.

Eu imediatamente argumentei que “nada” haveria a esperar de “diferente” no Itamaraty, e sim a continuidade do que sempre tinha sido a nossa ferramenta e ação diplomáticas. Diferente havia sido, sim, e com um imenso grau de potencial destrutivo, a inacreditável não-gestão da Casa de Rio Branco pelo vergonhoso capacho do guru presidencial (o Rasputin de Subúrbio) e da família Bolsonaro, numa cadeira na qual ele nunca deveria ter se sentado. À nova gestão bastaria ser exatamente igual ao que sempre foi o Itamaraty, ou seja, nada de diferente do que sempre fizemos, nós os diplomatas profissionais, na condução das relações internacionais do Brasil, na agenda externa do país e na excelência dos serviços diplomáticos que sempre soubemos prestar à nação.

(...)


As perguntas adicionais são estas: 

 

2. O Itamaraty sempre foi considerado uma das instituições de Estado mais respeitáveis e idôneas do Brasil. Que tenha havido um ponto fora da curva dentro do Ministério como o Ernesto Araújo pode causar estranho, mas não é estatisticamente significante. O que causa espanto, porém, é que parece que ele conseguiu cooptar (ou sequestrar, como o senhor usa no título do seu livro) o Itamaraty para o projeto bolsolavista do governo. Como isso foi possível? O senhor acha que houve conivência interna suficiente?

 

3. Embora o senhor tenha se tornado amplamente conhecido por opor-se à política externa de Bolsonaro, sabemos que também foi bastante crítico da diplomacia sob os governos do PT. Qual é a sua visão hoje, com algum distanciamento temporal, sobre a política externa de Lula e Dilma? Sua opinião mudou desde que o PT saiu do poder?

 

4. O senhor é muito vocal nas suas opiniões, muitas vezes críticas às direções tomadas na política externa brasileira. No Itamaraty, qual é a extensão da liberdade de expressão que os ‘soldados de terno’ têm? Diplomatas podem criticar livremente o comando do MRE? Na sua percepção, isso mudou sob Bolsonaro?

 

5. Em 28 de junho de 2019 foi assinado o tratado de livre comércio entre a União Europeia e o Mercosul. Entretanto, ele ainda precisa ser ratificado no âmbito econômico pelos congressos nacionais dos países sul-americanos e pelo Parlamento Europeu. Este processo tem sido dificultado pela repercussão dos escândalos ambientais recentes dos países do Mercosul, especialmente o Brasil, e pela resistência de representantes dos setores agrícolas de alguns países europeus, como os da França. Qual é a expectativa de que esse acordo seja posto em prática por ora?

 

6. O Itamaraty é muito conhecido por grandes nomes do seu pensamento diplomático. Figuras como Rio Branco, San Tiago Dantas e Oswaldo Aranha deram à política externa brasileira um conjunto de ideias para - como você mesmo escreveu - “sustentar-lhe as ações”. Como o senhor vê o pensamento diplomático brasileiro hoje em dia? Quais contribuições o Itamaraty tem trazido para esse campo nos últimos anos?


7. Nos últimos 20, 30 anos, exceção feita aos últimos três, algumas pautas foram constantes na diplomacia nacional. A reforma do conselho de segurança da ONU, bem como a integração latino-americana e a afirmação da multipolaridade marcaram a condução da política externa brasileira - ainda que com variações importantes entre governos distintos. Em sua visão, qual o futuro dessas pautas para a agenda do MRE?

 

8. Teoricamente, política externa deve ser uma política de Estado. Entretanto - e o senhor tem sido bastante crítico disso em diversas instâncias -, ela muitas vezes acaba sendo cooptada para interesses políticos internos, tornando-se muito mais uma política de governo. Como impedir que, nas mãos de governantes eleitos e que buscam agradar sua base, a política externa seja “sequestrada” como política de governo?

 

9. Muitos dentre nós pensam em tentar seguir carreira diplomática. Que dica o senhor daria para universitários que querem perseguir esse caminho?

 

10. Um conceito bastante em voga nas relações internacionais é o de “armadilha de Tucídides”, do Graham Allison. Segundo ele - puxando o exemplo da Guerra do Peloponeso entre Esparta e Atenas, analisado pelo historiador grego Tucídides -, o crescimento de uma nova potência em ascensão sempre irá criar tensões com uma velha potência estabelecida, a ponto de irem à guerra. Esse conceito é muito usado para analisar as relações conflituosas entre EUA e China, sugerindo que um conflito armado seria inevitável. Na sua opinião, os EUA e a China, na condição de potências concorrentes, estão fadados a uma escalada nas suas relações conflituosas, levando, por exemplo, à guerra?

 

11. Desde o governo Sarney, a integração econômica latino-americana esteve entre as prioridades da diplomacia brasileira. Esse tema perdeu relevância não só no Brasil, como também em outros países historicamente defensores do Mercosul. Qual é a sua opinião, enquanto diplomata, sobre o futuro da integração regional?

 

Ler a íntegra das respostas às perguntas acima, neste link da plataforma Academia.edu: 

https://www.academia.edu/49026031/3918_A_diplomacia_bolsolavista_no_contexto_mundial_e_comparada_aos_antecedentes_lulopetistas_um_depoimento_pessoal_2021_