Desde que os livros de história do Brasil, principalmente os elaborados por jornalistas, começaram a bombar, críticas do meio acadêmico vieram à tona. Alguns historiadores são contrários ao fato de profissionais de imprensa não terem uma formação adequada para ingressar nesse nicho historiográfico.
"Penso que qualquer pessoa pode escrever livros de história, mas se esse livro será de boa qualidade, aí é outra história. No geral, parte da comunidade acadêmica é bastante resistente a isso. Compreende-se essa resistência porque pesquisadores passam anos fazendo seus trabalhos com grande cuidado e rigor científico, levantando documentos em arquivos, lendo livros em bibliotecas, escrevendo artigos, teses e livros. De repente, ele vê um livro de história repleto de informações equivocadas enchendo os bolsos de jornalistas best sellers", defende o historiador da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) André Raboni.
Leia capítulo de 1822 (em PDF).
Para Laurentino Gomes, o jornalista não pode ser um franco atirador e precisa, antes de tudo, de orientação adequada quando for tratar de um assunto. Mas isso não o impede de realizar um bom trabalho, mesmo não tendo o diploma de um historiador. "No caso do 1822, por exemplo, tenho a orientação de um dos maiores intelectuais e historiadores brasileiros que é o embaixador Alberto da Costa e Silva. O meu trabalho é jornalístico, porém a consistência da investigação é quase acadêmica. O jornalista pode, tem o direito e a prerrogativa da profissão, se envolver com qualquer assunto, ainda mais se for de interesse público. Mas ele precisa de orientação e fontes adequadas para dar consistência ao trabalho de apuração", enfatiza. Laurentino agora prepara seu próximo livro, que é 1889, sobre a proclamação da República.
Há casos de historiadores que concordam com Laurentino e não veem problemas no fato de jornalistas enveredarem por esse caminho. Para a doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) Mary Del Priore, autora, ao lado do escritor Renato Venâncio, de um dos livros mais vendidos no país atualmente, Uma breve história do Brasil (Editora Planeta), existe uma interação e um diálogo amistoso, no qual uns aprendem com os outros e que, inclusive, já prefaciou obras de muitos escritores/jornalistas.
"Vários jornalistas vêm contribuindo para o entendimento da sociedade brasileira contemporânea. Nós, historiadores, também temos muito o que aprender com os jornalistas. A narrativa que eles produzem é mais ágil e mais fácil de ler do que a nossa. Quanto mais gente escrevendo e lendo sobre história, melhor. O importante é que haja história para todos: quem quiser trabalhos mais musculosos, leia ensaios ou teses universitárias. Quem quiser se distrair, aprendendo sobre o nosso passado, não faltam manuais. E as biografias são deliciosas leituras que ajudam na compreensão fácil de épocas inteiras de nossa história", opina.
O professor de História Contemporânea da UnB Estevão Martins revela que um complementa o trabalho do outro, e esse tipo de discussão acaba sendo desnecessária. "Não significa que um jornalista se transformou em historiador. Ele está escrevendo um romance, um livro-reportagem. E ninguém está livre de cometer erros, independente do ofício que exerça. Às vezes, uma tese muito bem feita não consegue atingir o público que um livro como esse consegue. Não tira o mérito nem de um e nem de outro. Na minha opinião, somos aliados e não precisamos ficar com ciúmes besta. Todos ganham com isso", expressa.
*** "O colégio foi uma experiência traumática"
Entrevista com Eduardo Bueno, escritor, tradutor, jornalista e editor. Escreveu mais de 20 livros, a maioria deles sobre História do Brasil:
Você percebe que há um interesse maior por parte do leitor, que antes não tinha pelo assunto? Por que esse grande interesse?Eduardo Bueno – O crescente interesse pela história é um fenômeno mundial, de maneira nenhuma restrito ao Brasil. E não se trata apenas da história propriamente dita, mas de diversos gêneros que dialogam com o passado, como biografias, textos memorialistas, relatos de viagem, romances de época etc. Pode soar contraditório, mas as pessoas parecem desejar cada vez mais a presença do passado. Não, elas não querem mais datas para decorar, nomes para lembrar. Querem sentir esse passado, vislumbrar as paisagens, encontrar os personagens, sentir o sabor e o cheiro dos tempos que já se foram, nem que seja para entender os tempos que virão – ou, quem sabe, para escapar deles... Aliado a isso tudo, existe uma indústria editorial cada vez mais dinâmica e atenta aos desejos dos leitores. Criam-se áreas específicas de mercado e, no Brasil, com certeza estamos vivendo a expansão do nicho historiográfico.
Você acredita que tenha uma grande participação nesse contexto? Que seja o principal responsável por essa "popularização"?E.B. – Comecei a perceber que existia uma espécie de "demanda reprimida" por textos desse estilo desde os tempos em que atuei como editor, no início dos anos 80. Lancei, justamente, cartas e relatos de viagens do século 16 (Diários de Colombo, Cabeza de Vaca, Cortez, Pero Vaz de Caminha, Bartolomeu de las Casas e até Marco Polo pela editora L&PM). Foi um sucesso imediato e, para época, bastante inusitado, não apenas pelo tema, mas principalmente por serem textos de domínio público que, ainda assim, chegaram às listas de mais vendidos. As biografias históricas de Fernando Moraes já faziam sucesso, as de Jorge Caldeira também; o último, inclusive, viria a lançar uma História do Brasil em CD-ROM, algo bastante avançado para a época. Mas essas publicações não pareciam ser suficientes para suprir a procura. Com a proximidade das comemorações dos 500 anos do Brasil, percebi que era chegada a hora de escrever livros sobre história – e achei que era o momento certo para investir no chamado período "colonial" do Brasil, que me parecia aprisionado dentro da sala de aula. E, sim, acho que se pode dizer que foi o estrondoso sucesso da coleção Terra Brasilis – com mais de seiscentos mil exemplares vendidos – a gênese do surto editorial que hoje presenciamos. Não apenas a coleção, mas também Brasil: uma história, o livro que agora relanço, me parecem ter sido os óbvios protagonistas desse processo. E eles não apenas abriram espaço para novos títulos, como também ocasionaram o surgimento de revistas especializadas em história.
Sempre gostou de história do Brasil? Mesmo quando era estudante, na escola?E.B. – O colégio foi uma experiência traumática, quase devastadora para mim. Sentia um tédio avassalador. E lamento informar que, de certo modo, isso se repete com minhas três filhas, que não têm paciência para a escola, embora tenha certeza de que estejam bem encaminhadas na vida. Apesar disso tudo, sempre achei que ia escrever sobre história – só não imaginava que seria a do Brasil e muito menos que fosse fazer tanto sucesso.
"Recebi elogios de Hobsbawm e Kenneth Maxwell"Por que decidiu investir nesse nicho?E.B. – Por dois motivos. Primeiro, porque história era um assunto de que eu gostava, especialmente depois de ler, aos 15 anos de idade, Enterrem meu Coração na Curva do Rio, de Dee Brown, um livro maravilhoso que conta a história trágica dos indígenas norte-americanos e que me deu a nítida percepção de que os primórdios do Brasil deveriam ter sido bem mais dinâmicos, movimentados e sangrentos do que faziam supor aquelas aulas insuportáveis. Segundo, como já expliquei, pela minha experiência no mercado editorial, sentia que havia uma demanda reprimida por livros de história no país, escritos em linguagem jornalística. Ou seja, livros de divulgação, desvinculados de certas peias acadêmicas. Quando se aproximaram os 500 anos do Brasil, percebi que aquele seria o meu gancho.
O que acha de alguns historiadores que criticam o fato de jornalistas escreverem sobre história?E.B. – Acho que cada vez mais essa vem se tornando uma discussão desnecessária e tola. No caso particular dos meus livros, coincidentemente ou não, aqueles que perceberam de imediato o significado e o propósito do meu trabalho foram justamente os historiadores que sempre admirei e cuja opinião me interessava. Eles instantaneamente identificaram a óbvia diferença entre uma obra de divulgação – que é o que eu faço – e uma investigação historiográfica – que é o que possibilita o meu trabalho. Desde o início, creio ter obtido a compreensão e o respeito de profissionais renomados, todos eles grandes investigadores historiográficos, entre os quais posso citar Nicolau Sevcenko, Max Justo Guedes, Joaquim Romero Magalhães, Lilia Schwarcz e, é claro, a minha querida amiga Mary Del Priore. Mas o fato é que, a seguir, para minha surpresa e enorme orgulho, acabei recebendo elogios também de Eric Hobsbawm e Kenneth Maxwell. Acho que está de bom tamanho, não? Creio que isso enfraquece – virtualmente pulveriza – a opinião retrógrada de alguns historiadores de menor tirocínio que continuam achando que jornalistas não devem, não sabem ou não "podem" escrever sobre história.
"O passado não precisa ser um fardo"Já teve algum problema sério nesse sentido? Alguém criticar sobre algum dado histórico errado ou algo do gênero?E.B. – Que eu me lembre, não. Com certeza, cometi alguns deslizes, mas julgo que foram todos menores, aliás típicos de jornalista, acho eu. A edição original de A Viagem do Descobrimento, por exemplo, teve 23 erros, depois corrigidos; e 21 deles foram de conversão de pesos e medidas – de léguas para quilômetros, de quintais para quilos etc. Acontece que fiz todos os cálculos de cabeça e, gênio da matemática como sempre fui, errei todos... De qualquer modo, todos meus primeiros livros tiveram historiadores como consultores técnicos – Ronaldo Vainfas na coleção Terra Brasilis e Mary del Priori em Brasil: uma história. Sou grato a ambos, mas atualmente acredito que não preciso mais de consultoria alguma.
O que os livros feitos pelos jornalistas diferem das obras dos historiadores? Acredita que é uma forma leve e divertida de aprender sobre a história do Brasil?E.B. – Como já falei, o que os jornalistas produzem, em geral, são obras de divulgação. Não se tratam de investigações historiográficas originais. Salvo exceções, não fazem pesquisa de arquivo – não vão às "fontes primárias", no jargão dos historiadores. Meu trabalho, em especial, sempre foi pautado pelas ferramentas que a minha profissão original proporciona: escrevo livros com um trato jornalístico no texto e um olhar de editor no produto final. E essa é uma tarefa do jornalista: como comunicador, tornar um tipo de produção em geral inacessível ao grande público em algo mais palpável. Nesse sentido, dotar o texto histórico de uma narrativa mais fluída – inclusive com a aplicação de técnicas literárias a um texto de não-ficção – é, por que não, uma maneira mais leve e divertida de se ler sobre História do Brasil (sem o compromisso chato de estudá-la ou aprender com ela). Afinal, o passado não precisa ser um fardo, ele também pode ser entretenimento, diversão. Acho que essa é uma forma muito mais libertária de encarar a questão – embora certeza não seja, e muito menos deva ser, a única.
"O ponto alto de minha carreira são os livros sobre o Grêmio"E você pretende continuar nesse caminho? Escrever mais sobre a história do Brasil?E.B. – Sim. Na verdade, tenho inúmeros projetos, tantos que chega a ser difícil saber qual deles sairá primeiro. Estou terminando um livro sobre a história da Caixa Econômica Federal. Em 2001, o presidente Fernando Henrique Cardoso solicitou que eu escrevesse sobre os 140 anos daquela instituição. O atual governo encomendou outra edição atualizada, para os 150 anos, que estou finalizando agora. Mas é claro que, além de vários projetos de encomenda e livros institucionais que tenho feito, tenho planos de continuar escrevendo livros para o mercado. Pretendo retomar a Coleção Terra Brasilis, cujo próximo volume deverá tratar mesmo do episódio que ficou conhecido como "França Antártica", quando os franceses tentaram colonizar o Rio de Janeiro, entre 1555 a 1567. Creio que em 2011 ele haverá de estar nas livrarias. Mas, muito possivelmente, não pela mesma editora que publicou os primeiros quatro volumes da série.
Quantos livros exatamente sobre esse tema você já escreveu?E.B. – Escrevi mais de 25 livros, a maioria sobre História do Brasil, embora cerca de 15 deles tenham sido obras institucionais ou de encomenda que não chegaram às livrarias. Por exemplo, escrevi, a convite da CNI, uma história da indústria no Brasil, chamada Produto Nacional; na sequência, também em parceria com minha mulher, a poeta Paula Teitelbaum, fizemos a história da indústria no Rio Grande do Sul, sob o título Indústria de Ponta. Para a Caixa federal, além da história da instituição, escrevi a história da avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro, e para a Embratel, a história da avenida Presidente Vargas. Fiz, por encomenda da Anvisa, uma história da propaganda de medicamentos no Brasil, chamada Vendendo Saúde e, para a mesma instituição, escrevi a história da vigilância sanitária, chamado À sua saúde. Além disso, já editei mais de três dezenas de volumes ligados à história. Mas, claro, o ponto alto de minha carreira são os três livros que escrevi sobre a história de meu glorioso time, o Grêmio. Com certeza, são minhas obras mais sérias, equilibradas, ponderadas e profundas, cuja frase de abertura de uma delas já diz tudo: "Futebol-arte é coisa de veado..."
*** "Minha contribuição para a história do Brasil é de linguagem"
Entrevista com Laurentino Gomes, jornalista e autor dos livros 1808 e 1822.
Há um interesse maior pelos livros de história?Laurentino Gomes – O interesse mudou totalmente. História virou um tema popular no Brasil e isso se reflete na lista dos livros mais vendidos. Isso tem a ver não só com uma mudança no mercado editorial, com livros em uma linguagem mais acessível para um leitor não especializado, geralmente escritos por jornalistas, mas também há uma busca por explicações para um Brasil de hoje. As pessoas estão olhando para o passado para entender porque o Brasil é um país tão complicado de construir, de organizar e de pactuar soluções rumo ao futuro.
Há um uso instrumental da historia. E acho que é um uso correto. A história serve para isso mesmo. Ninguém estuda história só para ter informações sobre personagens e acontecimentos pitorescos do passado. O objetivo é outro. É entender as nossas raízes, de onde viemos, como é que chegamos até aqui e para onde nos vamos. E preparar as pessoas para construir o futuro. Uma sociedade que não estuda história não consegue compreender a si própria. Acho que essa é a grande transformação. Mas isso é produto de uma grande novidade na história do Brasil que é um exercício continuado de democracia, são 25 anos de democracia. E acho que a gente alimentou algumas ilusões a respeito do Brasil recentemente, de que era muito fácil resolver tudo. Acredito que as pessoas estão meio chocadas com a persistência da corrupção, da desigualdade social, da criminalidade, da ineficiência do serviço público. E ficam se perguntando: por que somos assim? E aí a história ajuda a responder esse tipo de questão.
Você acredita que ajudou a popularizar esse tipo de leitura?L.G. – Acho que sim. Isso é um motivo de muito orgulho. É uma contribuição. Tenho percorrido o Brasil, dando aulas, palestras, bate papo com leitores, participando de feiras literária. Tenho ouvido com muita frequência: "Eu não gostava de história e passei a gostar por sua causa." Ou, às vezes, até crianças e adolescentes dizendo que por minha causa decidiram virar historiadores, ou jornalistas. Então acho que aí baixa um senso de missão muito forte porque o livro transforma a vida de uma pessoa.
E acho que não é verdade que o brasileiro não gosta de ler por natureza. Especialmente que ele não gosta da história. Mas ele quer uma leitura acessível, que ele consiga compreender, que não seja banal, que não fique apenas no caricato, no pitoresco. Acho que esse é o grande desafio do jornalista: atingir um público mais amplo sem banalizar o conteúdo. Esse é o desafio do jornalista em qualquer área. Como você tornar o relevante em atraente, como transformar uma matéria sobre reforma tributária, medicina, história do Brasil em algo sedutor para um público mais leigo. Acho que o jornalista bem-sucedido consegue enfrentar esse desafiou e vencê-lo. Então o que eu faço nos meus livros é aplicar o que eu aprendi nos meus 30 anos como repórter e editor de jornal e revista. E ser muito acessível na linguagem, facilitar a vida do leitor em favor de uma compreensão. Resumindo: a minha contribuição para a história do Brasil é de linguagem. Não faço pesquisa acadêmica em fontes primárias; o que faço é usar uma linguagem acessível para ampliar o conhecimento nessa área de história do Brasil.
"O jornalista precisa orientação para dar consistência ao trabalho"Você sempre gostou de história?L.G. – Desde criança, gostava muito mais de ciências sociais e humanas do que exatas. Minhas notas sempre foram melhores em português, história, geografia do que física, matemática. E esse interesse me levou para o jornalismo. Trabalhei na Veja, Abril, Estadão; mas eu diria que não existe muita diferença entre o trabalho de jornalista e do historiador. A diferença está na profundidade e na dimensão do tempo. O jornalista escreve história a sangue quente todos os dias, quando cobre uma eleição, um buraco de rua, um acidente, um jogo de futebol. O jornalista está testemunhando e narrando a história acontecendo diante dos seus olhos. O historiador tem uma perspectiva de mais de longo prazo. Muitas vezes, o próprio jornal, a revista, se tornam história no futuro. Hoje, estudar as páginas da Gazeta do Rio de Janeiro, do Correio Braziliense do Hipolito José da Costa, é um documento precioso para os historiadores. Esses jornalistas estavam fazendo história quando ela estava acontecendo, 200 anos atrás. Os dois usam uma ferramenta básica e fundamental, que é a reportagem. De investigar e de tentar chegar o mais próximo da verdade dos acontecimentos. Embora essa verdade absoluta seja inatingível, por uma questão até filosófica, mas a reportagem e a investigação nas fontes permitem a gente chegar o mais próximo possível. Então nesse sentido, o trabalho do jornalista e do historiador é muito parecido.
Chegou a receber críticas pelo fato de não ter a formação de historiador?L.G. – Não, felizmente não. Nunca recebi. No começo, às vezes apareciam alguns blogs. Mas muito pelo contrário, e é uma coisa que me deixa muito feliz: nunca, nenhum historiador me fez uma crítica estrutural, tipo essa informação está errada, não é exatamente assim. Ao contrário; recebi resenhas muito favoráveis de historiadores que respeito muito, como a Mary Del Priore, o Jean Marcel França, da Unesp, Tome Elias Saliba, da USP.
Uma coisa importante: jornalista não pode ser um franco-atirador. Ele precisa de orientação adequada quando vai tratar de um assunto. Por isso que a gente recorre às fontes, faz as entrevistas. E no meu caso, do 1822, eu tenho a orientação de um dos maiores intelectuais e historiadores brasileiros, que é o embaixador Alberto da Costa e Silva. O meu trabalho é jornalístico, mas a consistência da investigação é quase acadêmica. O Alberto viu o projeto do livro, analisou a bibliografia, depois leu, anotou e comentou cada um dos capítulos. E isso foi fundamental pra consistência do livro.
O jornalista pode, tem o direito e a prerrogativa da profissão, se envolver com qualquer assunto, ainda mais se for de interesse público. Mas ele precisa de orientação, fontes adequadas para dar consistência ao trabalho de apuração.
"Desafio da educação é associar o ensino ao prazer de aprender"Como surgiu a vontade de escrever sobre história do Brasil?L.G. – Um foi puxando o outro. O 1808 surgiu por esses bons acasos da vida. Eu era editor da Veja e a revista tinha a intenção de fazer uma série especial sobre história do Brasil e eu fiquei encarregado da equipe que ia investigar a presença da corte do Dom João VI no Rio de Janeiro. Aí, o projeto foi cancelado. Fiquei chateado, num primeiro momento, e segui em frente por minha própria conta. Fazer um livro-reportagem, ao invés de uma reportagem sobre o assunto. E aí aconteceu uma grande surpresa: o livro virou um best seller. Nunca imaginei que pudesse acontecer. Sempre dizem que para fazer sucesso no Brasil nesse ramo, você tem que escrever sobre esoterismo, auto-ajuda ou literatura barata. História do Brasil, nem pensar. E, de repente, o livro vendeu mais de 600 mil exemplares no Brasil e em Portugal, ganhou um monte de prêmios e então eu animei. Primeiro porque iria sair da minha rotina nas redações. Saí da Editora Abril em maio de 2008 e passei a me dedicar aos livros. A consequência obvia do 1808 era escrever o 1822. Porque é quase impossível se entender a independência do Brasil sem estudar o que aconteceu antes, essa grande transformação da colônia portuguesa em função da presença da corte de Dom João VI nos trópicos. Então isso me levou ao 1822.
E já me levou ao meu terceiro livro, que estou pesquisando agora e que é a terceira data-ícone do século 19 na construção do Brasil – 1889, ano da proclamação da República. É o livro que eu espero lançar daqui a três anos.
Essa linguagem mais leve e direta é um dos ingrediente desse sucesso?L.G. – Esse é o desafio do jornalista: oferecer técnicas que se aprendem ao longo do exercício da profissão. Você usar muitas histórias humanas, misturar dados pitorescos, engraçados, com uma análise mais profunda, ter uma linguagem provocativa na capa. Por exemplo, no 1808 foi "Como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a história do Brasil". É uma linguagem que provoca a atenção do leitor. Eu acho que o jornalista tem essa técnica. Quando a gente faz uma manchete do jornal, uma capa de revista, estamos o tempo todo tentando disputar a atenção do leitor.
Então, são técnicas de comunicação que eu estou aplicando à área de História do Brasil. E isso é uma grande novidade. Porque antes, os livros acadêmicos tinham uma linguagem excessivamente técnica, repleta de jargões próprios da academia e usavam nas capas linguagem muito neutra. O conteúdo muitas vezes é muito bom, muito profundo, mas não consegue chamar a atenção de um público mais amplo. E eu acho que aí é uma virtude do jornalista. Sempre conseguir uma audiência maior para determinados assuntos. O jornalista serve como um divulgador da ciência em geral. Por isso acredito que não há uma competição entre jornalista e historiadores. Nós nos complementamos.
O jornalista tem uma coisa que geralmente o historiador não tem. O uso de linguagem didática, acessível para um público mais amplo. A gente tem um acesso a uma audiência maior. Então, essas duas coisas se complementam. O jornalista pode ser um ótimo divulgador dos historiadores. É o que eu tenho procurado fazer. Não banalizo o trabalho deles e não misturo ficção com não ficção. Não procuro preencher lacunas por conhecimento histórico com romance, literatura. Tudo que eu faço é não ficção. De maneira que isso confere uma grande legitimidade ao meu trabalho. Aliás, esse trabalho de divulgação cientifica é relativamente novo no Brasil.
Estou fazendo, na área de história do Brasil, o que o dr. Dráuzio Varella faz em medicina, o Marcelo Gleiser em astronomia. Eu acho que é um campo maravilhoso. Torço para que em outras áreas de conhecimento, alguma hora chegue um divulgador na área de matemática, física, biologia, porque isso vai facilitar a vida dos nosso professores e estudantes – eles têm que ensinar essas coisas hoje de uma forma muito técnica, muito árida. Imagina uma criança tendo que aprender história do Brasil só decorando data, nome, números, sem entender exatamente o que se passou. Então, acho que esses livros ajudam a chamar a atenção para que essas disciplinas sejam estudadas com prazer. Isso é o grande desafio da educação do Brasil. Como associar o ensino ao prazer de aprender, de ler. Acho que a divulgação científica segue nesse caminho.
"Guerra da independência não teve nada de pacífica"Houve surpresas na sua pesquisa do 1822?
L.G. – História é sempre alvo de manipulação, de construção posterior em cima dos fatos verdadeiros. Por exemplo, o quadro do Pedro Américo, sobre o Grito do Ipiranga. Nada do que está ali é verdadeiro. Dom Pedro não estava vestido como príncipe; estava vestido como tropeiro. Não estava em um cavalo alazão; estava em cima de uma mula de carga, que era o jeito correto de subir a Serra do Mar. Os dragões da independência ainda nem existiam. Eram tropeiros, fazendeiros, sertanejos do Vale do Paraíba, e Dom Pedro estava com dor de barriga na hora do grito do Ipiranga. Tinha comido uma coisa estragada em Santos. O que não torna essa cena da independência menos importante do que ela é. Mas ela é mais brasileira, mais simples, mais bucólica e mais próxima do verdadeiro. Não é aquele quadro épico do Pedro Américo. Isso me chamou a atenção. Mas por que ele fez aquilo? É um quadro que Dom Pedro II encomenda para celebrar um feito da monarquia. Então, o quadro não se propõe a ser uma foto jornalística. Ele é uma alegoria, uma celebração e por isso usa elementos épicos.
Outro aspecto que me chamou a atenção foi de que existe um mito de que a independência do Brasil foi um processo pacífico. Que foi resultado de uma negociação entre Dom João e Dom Pedro. Não é verdade isso. Morreu muita gente durante a guerra da independência, que durou um ano e meio. A minha estimativa é de que morreram, pelo menos, 5 mil pessoas. O que é bastante gente. Mas por que passa essa imagem de que foi pacífica? Porque o imperador Pedro I, que assumiu a coroa, é um integrador, um agente de pacificação, de tentar organizar esse território vasto, diverso, muito complexo, de muitos escravos e muitas diversidade étnicas e culturais. Então esse agente pacificador passa essa imagem de que o processo foi pacífico. Quando na verdade não foi. Essas coisas me surpreenderam bastante. |