O fato de que mais de dois terços dos candidatos ao CsF estejam se
dirigindo a países latino-americanos ou aos ibéricos, em lugar de
lugares onde se faz ciência de verdade, significa que, finalmente, esses
jovens vão fazer mais turismo acadêmico, remunerado pelo CNPq, do que
propriamente formação científica de qualidade.
Ou seja, um
programa que não está, de verdade, integrado aos centros produtores de ciência,
e ao cabo do qual não se conecta a programas brasileiros de formação,
sendo uma espécie de turismo à la carte voluntário (mas financiado por
todos nós), vai terminar sendo apenas um gasto inútil de dinheiro.
Paulo Roberto de Almeida
Desafios fronteiriços
Ciência Hoje On-line, 30/11/2012
Aposta
do governo federal para melhorar educação superior no País, o programa
'Ciência sem Fronteiras' é destaque de revista científica internacional,
mas ainda enfrenta obstáculos e críticas quanto à sua implementação.
Cem
mil brasileiros estudando no exterior até 2015. A ambiciosa meta do
programa federal 'Ciência sem Fronteiras' tem chamado a atenção da
comunidade científica internacional. A iniciativa é tema de editorial da
edição atual da Science, uma das mais influentes revistas científicas
do mundo. Mas, em meio à exaltação, o programa também suscita críticas
entre professores e estudantes.
Assinado pela química Célia
Garcia, da Universidade de São Paulo (USP), pelo presidente do CNPq,
Glaucius Oliva, e pelo pesquisador argentino Armando J. Parodi, o
editorial da Science destaca o papel do 'Ciência sem Fronteiras' (CsF)
como promotor de inovação e pontua a importância de outras iniciativas
de intercâmbio na América Latina.
"O sucesso alcançado até agora
com programas como os aqui descritos deixa claro que esse caminho vai
fazer com que o continente se torne um líder global em ciência,
tecnologia e inovação", diz o texto. "De fato, toda nação pode se
beneficiar com o fomento do conhecimento e da capacidade de sua força de
trabalho."
O CsF vai fechar seu primeiro ano com 20 mil alunos
de graduação, doutorado e pós-doutorado enviados para universidades
estrangeiras de 30 países. Podem concorrer às bolsas estudantes que
tenham concluído 20% de algum curso das áreas listadas no site do
programa, focado nas disciplinas tecnológicas, exatas e biomédicas. Os
alunos selecionados recebem seguro de saúde, uma 'mesada' e auxílio para
instalação e material didático.
Os países que mais recebem
estudantes do programa são Estados Unidos, com 3.898 bolsas concedidas;
Portugal, com 2.775; e França, com 2.478. Portugal é também o país mais
procurado: 12 mil pedidos foram feitos para universidades do País.
A
preferência revela um dos desafios do programa: a língua. A maioria das
universidades cadastradas ministra aulas em inglês e a dificuldade
geral dos estudantes brasileiros com o idioma já vem sendo criticada por
representantes de instituições estrangeiras envolvidas com o CsF. Na
última chamada de bolsas, dois terços dos estudantes foram reprovados
por falta de conhecimentos em inglês.
O físico Ivan Oliveira, do
Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) e que tem alunos
beneficiados no CsF, destaca esse entrave do programa. "Mandar 100 mil
estudantes para o exterior, muitos sem preparo, é uma loucura, é jogar
dinheiro fora", diz. "O que vai acontecer é que a maioria dos
estudantes, principalmente os de graduação, não vai aproveitar nada
porque não tem fluência na língua; ou então vai para Portugal." E
completa: "Mas, desde as grandes navegações, Portugal deixou de ser uma
potência tecnológica."
Na sua avaliação, o CsF foi lançado como
estratégia política, sem uma reflexão mais aprofundada envolvendo a
comunidade acadêmica. "Para mudar realmente o nível, é preciso primeiro
investir na educação de base, para depois mandar os estudantes para as
universidades top. Do jeito que está, o CsF só aumenta a desigualdade,
pois só quem é de classe média e fez curso de inglês tem alguma chance
de tirar proveito."
O problema da língua fez com que o governo
anunciasse o investimento de R$ 21 milhões na criação o programa 'Inglês
sem Fronteiras', que vai organizar núcleos de ensino de inglês nas
universidades federais e promover testes de proficiência da língua entre
os estudantes. Aqueles que mostrarem nível próximo do necessário para
passar em provas de certificação, como o TOEFL, serão selecionados como
prioritários para participar gratuitamente de cursos intensivos.
Fuga
de cérebros - Outra questão preocupante por trás da iniciativa é a
emigração de profissionais. A presidente da Sociedade Brasileira para o
Progresso da Ciência (SBPC), Helena Nader, apoia o CsF, mas teme que os
alunos, depois de qualificados em universidades estrangeiras, não
retornem ao Brasil.
"O que me preocupa é que temos que ter uma
garantia para a volta com qualidade desses profissionais, para que eles
encontrem no Brasil condições para colocar em prática o que aprenderam
no exterior", coloca Nader.
Oliveira também se preocupa com a
captação de profissionais brasileiros. "Existe uma demanda nos países
desenvolvidos pelos alunos que se destacam nas ciências duras", diz. "Os
Estados Unidos drenam força especializada de países como o Brasil e
acredito que os melhores estudantes não vão voltar. O CsF vai ser um
mecanismo para financiar a mão de obra ultraespecializada brasileira
para o exterior, só vai voltar para cá quem não for convidado para ficar
por lá."
Humanas de fora - Outro ponto do CsF que vem sofrendo
críticas é a ausência de bolsas para estudantes das ciências humanas e
sociais. Quando o programa foi lançado, cerca de mil estudantes dessas
áreas conseguiram bolsas inscrevendo-se na vagamente denominada
'Indústria criativa'. Mas o governo já sinalizou que a prática não
poderá continuar.
No site do projeto, esse setor já está
descrito como voltado "a produtos e processos para desenvolvimento
tecnológico e inovação" e o mais recente edital do programa deixou claro
que alunos de cursos de humanas e sociais não podem concorrer a
bolsas. Em resposta, alunos dessas áreas que já se preparavam para
concorrer a bolsas entraram com uma ação no Ministério Público Federal
pedindo que a atual chamada seja suspensa.
Estudantes indignados
criaram no Facebook a página 'Ciência com fronteiras', que tem mais de
41 mil seguidores. No grupo, os alunos reivindicam: "O fato de alguns
cursarem faculdades exatas ou biológicas não os torna melhores que nós.
Vocês podem revolucionar as descobertas na saúde, na robótica, na
ecologia e tudo quanto é mais ciência, mas não se esqueçam: nós
revolucionamos o pensamento e, sem ele, nenhuma sociedade democrática se
sustenta."
A assessoria de comunicação do CNPq responde que o
novo edital do CsF só reforça a ideia original do programa, que tem
ênfase tecnológica. O órgão ressalta ainda que "os estudantes de
ciências humanas e sociais continuam sendo atendidos pelo CNPq com
bolsas concedidas por outros programas institucionais", que agora estão
até menos concorridas.