Opinião
William Waack
Uma avaliação dos nossos riscos
A direita brasileira identificada com Trump vai sofrer graves danos eleitorais
Do ponto de vista exclusivamente comercial e geopolítico o tratamento que o presidente dos EUA dá ao Brasil é simplesmente burrice
O Estado de S. Paulo, 09/07/2025
Atualização: 10/07/2025 | 10h01
O ataque do presidente americano ao Brasil não tem paralelos históricos. Trata-se sobretudo de uma agressão política, cujos termos são por definição inegociáveis. Trump age com a prepotência de quem, de fato, escolheu dividir o mundo em esferas onde os fortões fazem o que querem, e os fracos — como o Brasil — que se virem.
A última vez em que um presidente americano agiu contra o Brasil por questões políticas ocorreu sob Jimmy Carter a meados da década de setenta. As semelhanças são remotas dada a brutalidade — e a irracionalidade ideológica — exibida por Trump neste momento.
Naquela época dois fatores haviam se combinado: a pressão contra a ditadura militar brasileira por conta de violações de direitos humanos e o acordo nuclear que o Brasil assinara com a Alemanha, que incluía a transferência de tecnologia sensitiva. O presidente era o general Ernesto Geisel, que reagiu cancelando um acordo de cooperação militar com os EUA. O Brasil acabou fazendo um programa nuclear paralelo e a democratização liquidou a questão dos direitos humanos.
Do ponto de vista exclusivamente comercial e geopolítico o tratamento que Trump dá ao Brasil é simplesmente burrice. Mas é um extraordinário nível de mediocridade estratégica, ignorância histórica e posturas prejudiciais aos próprios interesses da super potência que Trump vem exibindo desde que assumiu. Em nome de um eleitorado que aplaude o populista que está diminuindo em vez de aumentar a liderança e capacidade de ação americana.
Os danos comerciais ao Brasil são consideráveis mas em situações semelhantes de imposição de tarifas Trump demonstrou a falta de consistência habitual — é algo que pode ser eventualmente “negociado”. O problema muito mais grave é político e terá impacto também no contexto eleitoral doméstico brasileiro.
Como aconteceu em países como Canadá, Austrália, México e, até certo ponto Alemanha, a interferência política de Trump nos assuntos de cada um produziu os resultados contrários. Ou seja, Trump desmoralizou, enfraqueceu e tirou potencial eleitoral das forças políticas que quis “proteger”. No caso brasileiro, o clã Bolsonaro e todo agente político que aderiu ao fã clube de Trump.
É claro que esse é um problema do capitão e sua ilusão infantiloide de que um prepotente como Trump possa livrá-lo da cadeia — onde provavelmente mais e não menos gente vai querer vê-lo agora. Bem mais complicada é a situação do governo brasileiro que, ao contrário do exemplo da esquerdista que preside o México, não soube criar qualquer canal direto com a Casa Branca.
O Brasil é uma potência menor, com escassa capacidade de retaliação que não nos torne ainda mais vulneráveis, sobretudo em relação a insumos. É grande a tentação de pular para um lado no confronto geopolítico, mas um pouco de inteligência estratégica indica que os Trumps acabam indo embora, e a profundidade dos laços entre Brasil e Estados Unidos permanecem.
Mas o mais provável é que ninguém vai enxergar esse horizonte nos próximos dias.
Opinião por William Waack
Jornalista e apresentador do programa WW, da CNN
https://www.estadao.com.br/politica/william-waack/a-direita-brasileira-identificada-com-trump-vai-sofrer-graves-danos-eleitorais/?j=2132572&sfmc_sub=761468549&l=8503_HTML&u=65252480&mid=534001280&jb=3005&utm_medium=newsletter&utm_source=salesforce&utm_campaign=conectado&utm_term=20250710&utm_content=
Temas de relações internacionais, de política externa e de diplomacia brasileira, com ênfase em políticas econômicas, viagens, livros e cultura em geral. Um quilombo de resistência intelectual em defesa da racionalidade, da inteligência e das liberdades democráticas. Ver também minha página: www.pralmeida.net (em construção).
quinta-feira, 10 de julho de 2025
Opinião: Uma avaliação dos nossos riscos - William Waack O Estado de S. Paulo
Corte Europeia condena Rússia por atrocidades na Ucrânia - Rodrigo Craveiro (Correio Braziliense)
Estou imaginando que com esta decisão, de uma Corte de justiça respeitável, o Itamaraty vai finalmente soltar uma nota elogiando a conclusão a que chegou a Corte Europeia de Direitos Humanos em face de tão flagrantes provas de desrespeito ao Direito Internacional. Uma nota firma e condenatória das ações da Rússia, como sempre fez em casos semelhantes e como faz frequentemente em face dos crimes israelenses em Gaza e na Cisjordânia. Nada menos do que isto. PRA
"Corte Europeia condena Rússia por atrocidades na Ucrânia"
Tribunal de direitos humanos sediado em Estrasburgo, na França, conclui que as forças de Vladimir Putin cometeram abusos e violações flagrantes e sem precedentes. Papa Leão XIV oferece Vaticano para sediar diálogo entre Kiev e Moscou
Por Rodrigo Craveiro
Correio Braziliense, 10/07/2025
https://www.correiobraziliense.com.br/mundo/2025/07/7196155-corte-europeia-condena-russia-por-atrocidades-na-ucrania.html
Vadim Yevdokimenko, 23 anos, perdeu o pai em 3 de março de 2022, em uma fábrica de vidros na cidade de Bucha, a noroeste de Kiev, capital da Ucrânia. "Os soldados russos o sequestraram e trancaram-no com cinco pessoas em uma garagem e o fuzilaram. Em seguida, atearam fogo aos restos mortais dele, pois queriam escondê-los", contou ao Correio. Ele soube da morte do pai da pior forma: por meio de um vídeo que acessou na internet mostrando moradores de Bucha torturados e assassinados. "Os bastardos que mataram meu pai merecem o fim doloroso", disse.
No mesmo dia, Yevhen Kizilov, 49 anos, estava no exílio, quando as forças de Moscou invadiram a casa da família, também em Bucha, levaram o pai dele, Valeriy Kizilov, 69, ao jardim e o executaram com um tiro na cabeça. Nesta quarta-feira (9/7), Vadim, Yevhen e milhares de outros ucranianos tiveram um vislumbre de justiça. A Corte Europeia de Direitos Humanos, em Estrasburgo (França), concluiu que, desde 2014, a Rússia comete abusos flagrantes e sem precedentes na Ucrânia.
A Rússia é acusada de execuções de "civis e militares ucranianos fora de combate", "tortura", "deslocamentos injustificados de civis" e até mesmo "destruição, saques e expropriações", disse o presidente do organismo, Mattias Guyomar. A decisão da Corte determina que o governo de Vladimir Putin "deve liberar imediatamente, e devolver de maneira segura, todas as pessoas que, no território ucraniano ocupado pelas forças russas ou sob controle russo, foram privadas de liberdade (...) e que estão presas".
Em seu julgamento, o tribunal cita evidências de uso de violência sexual disseminada e sistemática, acompanhada de atos de tortura, como espancamento, choques elétricos e estrangulamento. "Em nenhum dos conflitos anteriormente submetidos ao tribunal houve uma condenação tão universal do 'flagrante' desrespeito do Estado demandado aos fundamentos da ordem jurídica internacional estabelecida após a Segunda Guerra Mundial", afirma a decisão. A instância também concluiu que a Rússia foi a responsável pela derrubada, em julho de 2014, de um avião da companhia aérea Malaysia Airlines, matando 298 pessoas. A aeronave havia decolado de Amsterdão em direção a Kuala Lumpur, quando foi derrubada por um míssil no leste da Ucrânia.
Yevhen considera a condenação, por parte da Corte Europeia de Direitos Humanos, um marco histórico. "Ninguém esquecerá os crimes da Rússia. Eles entrarão para a história da humanidade. Além disso, este veredicto constitui uma confirmação jurídica internacional do sofrimento das vítimas da agressão russa, uma das quais sou eu", observou. O jornalista ucraniano acredita que a decisão firmará a base para o pedido dele por indenização contra a Rússia. "O tribunal estabeleceu um precedente legal que simplificará significativamente a prova de culpa de Moscou no meu caso", acrescentou.
Horas antes de o tribunal proferir a decisão, as forças russas realizaram o maior bombardeio com drones e mísseis em 1.232 dias de guerra. Durante a madrugada, o Exército russo lançou 728 drones e 13 mísseis contra quatro regiões da Ucrânia, incluindo a capital, Kiev. Ao menos 711 drones foram interceptadas e sete mísseis, destruídos, segundo a Força Aérea ucraniana. Os ataques deixaram oito civis mortos e ocorrem depois de o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, afirmar que Putin é "inútil" e "fala muita besteira" e anunciar a retomada de ajuda militar para Kiev.
Sanções
Em visita à Itália, onde se reuniu com o papa Leão XIV e com o presidente italiano, Sergio Mattarella, o líder da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, tornou a cobrar "sanções rigorosas" contra a Rússia e, especialmente, contra o setor petrolífero de sua economia. "Todos os que querem a paz devem agir", declarou, ao lembrar que o petróleo russo "tem alimentado a máquina de guerra de Moscou por mais de três anos". Kiev tem insistido que somente o fortalecimento das sanções pode acelerar o fim da guerra.
No encontro com Leão XIV, na residência de verão de Castelgandolfo, Zelensky ouviu do pontífice a oferta de colocar o Vaticano como sede para um diálogo com Moscou.
Lista de violações
Os principais crimes apontados pela Corte Europeia de Direitos Humanos
Ataques militares indiscriminados;
Tortura e uso de estupro como arma de guerra;
Execuções sumárias de civis e militares;
Detenções arbitrárias e ilegais de civis;
Intimidação e perseguição a grupos religiosos;
Deslocamentos forçados e transferência de civis;
Destruição, saques e expropriação de propriedades;
Supressão do idioma ucraniano nas escolas;
Transferência de crianças para a Rússia e, em muitos casos, adoção.
Maksym Yakovlyev, chefe do Departamento de Relações Internacionais e diretor da Escola de Análise Política da Universidade Nacional de Kiev-Mohyla.
"Nós, ucranianos, sofremos todos os tipos de torturas e terror da Rússia. Moscou viola, de forma contúnua, os direitos humanos. Insistimos em que os crimes russos devem ser punidos. Considero bom que haja um reconhecimento legal do fato de que os russos cometeram crimes. Mas, também, espero que eles sejam punidos por tais violações."
Maksym Yakovlyev, chefe do Departamento de Relações Internacionais e diretor da Escola de Análise Política da Universidade Nacional de Kiev-Mohyla
"A decisão da Corte Europeia de Direitos Humanos envia um claro sinal à comunidade internacional sobre a natureza criminosa das ações da Rússia. Além disso, para as vítimas da agressão russa, como eu, a decisão tem enorme significado psicológico e moral. Isso significa que o nosso sofrimento foi reconhecido e confirmado por uma instituição internacional autorizada."
Yevhen Kizilov, 49 anos, jornalista ucraniano cujo pai foi executado à queima-roupa em Bucha
A escalada - Paulo Roberto de Almeida
A escalada
Argumentos teóricos, evidências empíricas não vão demover Trump de continuar perpetrando suas loucuras. Nem seus “melhores” conselheiros (se eles existem) o fazem.
Agora, o presidente Lula não pode atuar de forma atabalhoada, intempestiva, apressada, em face de todos os anúncios de Trump.
Cabe deixar a diplomacia pensar primeiro uma resposta quando atos concretos forem tomados. A devolução da carta de Trump é uma boa medida, pois ela está vazada em termos não diplomaticos e pouco condizentes com as práticas usuais em diplomacia. Mas declarações improvisadas de Lula não ajudam em nada exportadores e importadores dos dois paises. Só servem para criar problemas.
O Brasil deve se pautar pelo Direito Internacional, não pelo machismo diplomático personalista.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 10/07/2025
Os primeiros habitantes do Brasil - Aurelio Schommer
Há cerca de 15 mil anos, a América do Sul era desabitada. Os primeiros humanos, vindos da Ásia, chegam ao continente então e se espalham de oeste para leste. No território que viria a constituir a capitania, província e estado da Bahia, os achados arqueológicos identificam os primeiros grupos há 7 mil anos, vivendo nas margens do rio São Francisco e em alguns de seus afluentes. Entre há 3 mil e mil anos, surgem na região os falantes do idioma tupi. Na altura de 1500, quando do primeiro contato com europeus, eles se localizam principalmente no litoral. Para o território hoje correspondente à Bahia, a separação era quase absoluta: falantes de tupi no litoral, falantes de outras línguas nas áreas ribeirinhas dos cursos d’água interiores.
Não se sabe quantos nativos brasílicos viviam nessas terras em 1500. De modo geral, os não tupis, no interior, se caracterizavam pela transumância: passavam de uma área a outra durante o ano, conforme o regime de chuvas e para obter melhores resultados na caça e na coleta. Por vezes, essas migrações sazonais percorriam centenas de quilômetros. As habitações eram rudimentares, porque temporárias. Parte deles falava idiomas do tronco macro-jê; parte, da família linguística kariri; parte, línguas isoladas. Há indícios de que, entre eles, os paiaiás interagissem eventualmente com os tupis do litoral. Os demais evitavam adentrar as áreas de domínio tupi. Entre grupos não tupis, chamados genericamente “tapuias” pelos tupis, os conflitos eram frequentes, motivados por disputas por terrenos de maior fartura de caça.
Os tupis cultivavam principalmente a mandioca, obtendo dela a farinha e a fécula, na forma de tapioca ou beiju. Suas aldeias eram numerosas, com até 500 habitantes. Mantinham-se em um mesmo terreno por cerca de 10 anos, até o relativo esgotamento da terra. Não faziam nem comércio nem amizade com as aldeias vizinhas. Eram rivais entre si por regra cultural, evitando a formação de um Estado para além do espaço de uma única aldeia. Por essa e outras características, o antropólogo Pierre Clastres chamou os tupis de sociedade contra o Estado. Não criavam animais. Desconheciam o uso de metais. Eram hábeis no fabrico de canoas, cerâmica e engenhosas armadilhas de pesca.
Os indígenas encontrados por Pedro Álvares Cabral, descritos por Pero Vaz de Caminha, em Porto Seguro, eram tupis. Catarina Paraguaçu, esposa de Diogo Álvares, o Caramuru, era tupi. Os primeiros baianos de cultura luso-americana eram filhos de homens europeus com mulheres tupis. Durante o século XVI, franceses e portugueses disputaram a amizade, a colaboração, das diversas aldeias tupis. Tanto que os franceses patrocinaram uma viagem de Catarina à França para celebrar seu casamento. Depois, o segundo governador-geral português, Duarte da Costa, a presenteou com as terras que hoje abrigam as áreas mais nobres e valorizadas de Salvador.
Os tupis não foram um estorvo ao estabelecimento de europeus na América. Foram, ao contrário, absolutamente essenciais ao comércio franco-americano e ao povoamento luso-americano. Os europeus batizaram grandes grupos de tupis com diversos etnônimos. Para os próprios tupis, a distinção não fazia sentido. O falante de tupi era simplesmente tupi, nada mais, não importando se os estrangeiros lhes chamassem caetés, tabajaras ou tamoios, caso de grupos tupis localizados nos atuais Alagoas, Pernambuco e São Paulo respectivamente. Na Bahia, tupinambás e tupiniquins.
Quando se revoltavam, o resultado era catastrófico aos d’além-mar. O chefe Taparica devorou o primeiro donatário da Bahia, Francisco Pereira Coutinho, em ritual antropofágico típico dos tupis. Acabou ali, em 1548, o empreendimento com sede na Vila do Pereira, atual Porto da Barra, em Salvador. Em 1559, eclodiu uma revolta dos ditos tupiniquins da vila de Ilhéus, então próspera sede de capitania. A economia local só se recuperaria do estrago provocado pelos nativos mais de três séculos adiante. Naquele ano, o governador Mem de Sá recrutou ditos tupinambás de Salvador e Recôncavo para reprimir o levante. Deu-se então a Batalha dos Nadadores, na praia do Cururupe, em Ilhéus. Os tupinambás de Salvador levaram a melhor sobre os tupiniquins locais, derrotando a rebelião. Tradição muito recente identifica os vencedores de então como vencidos, quando a participação portuguesa no episódio foi muito diminuta. Tratou-se de uma guerra tupis versus tupis, uma entre muitas. Na ocasião, venceram os tupinambás, tendo por ali ficado muitos deles.
Ao final do primeiro século de interação luso-tupi no litoral baiano, esse grupo indígena estava em geral aculturados, mantido o uso da língua por uma minoria. Houve fusão étnica e genética entre portugueses e tupis em todo litoral, embora alguns tenham mantido identidade separada em aldeias ou aldeamentos jesuítas. Aos tupinambás e tupiniquins juntaram-se aparentados guaranis, vindos de São Vicente, e tupis potiguaras, dos atuais Rio Grande do Norte e Paraíba, ambos estabelecidos em Ilhéus. Poucos tupis morreram em confronto contra europeus. Muitos mais, por doenças trazidas por estes e pelos africanos, chegados em grande número a partir de 1570. A variedade africana da varíola revelou-se especialmente mortífera.
Os tupis formavam aldeias novas por um fenômeno cultural conhecido pelos etnólogos como profetismo. Um indivíduo desgarrava de sua aldeia e passava a recrutar outros alhures. Partiam em busca da chamada “terra sem males”. O profetismo foi acelerado pela presença europeia, reunindo os insatisfeitos e indispostos com a presença estrangeira. Essa migração foi especialmente aguda em São Paulo-Rio de Janeiro e em Pernambuco, muitos deles indo parar no litoral do Maranhão, em que reencontraram os franceses. Na Bahia, uma variação do profetismo agregou elementos da fé católica: a Santidade de Jaguaripe. Na década de 1580, numeroso grupo se instalou em um engenho de Jaguaripe, mantendo uma comunidade autônoma. Parte deles se deslocou para o interior do continente. Liderados por tupis, brancos, mestiços e africanos participaram desse experimento de sociedade, peculiar.
Tupis e mamelucos, mestiços luso-ameríndios, acompanharam os pioneiros das entradas baianas ao interior, como Francisco Bruza Espinosa e Belchior Dias Moreia. Eles vararam os sertões em pequenos grupos e voltaram sãos e salvos, tendo contato com diversos grupos indígenas. Raros ademais os relatos de luso-americanos atacados pelos ditos tapuias nessas andanças de sondagem e descobrimento dos séculos XVI e XVII. Ainda na primeira metade desse último século, indígenas não tupis do chamado sertão de Rodelas, no São Francisco, enviam guerreiros seus para se juntar aos luso-americanos na luta pela expulsão dos holandeses do Nordeste brasileiro. Eles e outros grupos kariris forneceriam importantes contingentes militares para dar combate a quilombos de matriz africana, entre outras missões internas de guerra.
A partir de 1650, as famílias Peixoto Viegas, Ávila e Guedes de Brito patrocinam o povoamento propriamente dito dos sertões pelo gado bovino, que podia transportar a si mesmo aos mercados do litoral depois de criado. Buscam negociar com os nativos encontrados pelos caminhos. Quando dão presentes, como anzóis, facas, roupas e alimentos, ganham aliados entre os ameríndios. Podem, assim, estabelecer casas-fortes e fazendas de criação, contando eventualmente com os novos amigos como mão de obra e reforço na proteção a seus estabelecimentos. Os Ávila, os Guedes de Brito, Domingos Afonso Sertão e Manuel Nunes Viana especialmente levam a civilização baiana a Minas Gerais, Maranhão, Piauí, a Icó, no sertão cearense, e ao vale do Pajeú, em Pernambuco, espalhando seus gados. Desses, Francisco Dias d’Ávila II se mostra menos propenso a aceitar deslealdades ou pontuais resistências dos nativos, sendo dado a ações violentas contra alguns grupos, no São Francisco ou em Jeremoabo, ações por vezes exageradas nas crônicas para a obtenção de sesmarias, direitos sobre as terras ditas conquistadas ao gentio bravo, como se chamava os não colaboracionistas. Enquanto Antônio Guedes de Brito se mostrava mais tolerante quando pequenos grupos matavam bois para consumo próprio.
Uma vez estabelecidos currais e vilas, passa a se registrar ataques com fins de saque, atribuídos a indígenas. Também nesses casos, os exageros convinham aos povoadores e aos encarregados de dar combate ao gentio bravo. Como convinha dizer que eram apenas ameríndios, pois nesses casos se podia persegui-los e escravizá-los, pelo menos temporariamente. Em muitos casos, quilombolas e criminosos comuns fugidos da justiça no litoral estavam nos grupos atacantes ou mesmo os lideravam.
Não houve na Bahia ação militar organizada indígena. Nada como o exército do rei Janduí ou de seu neto, Canindé, tarairiús do vale do Açu, menos ainda do que a revolta de Tupac Amaru II, nos Andes, que alijou vastas áreas do domínio espanhol por décadas, exigindo, em ambos os casos, a mobilização de grandes contingentes militares oficiais. O que se deu na Bahia foi uma sucessão de ataques furtivos episódicos, motivados por quebras de promessas de parte a parte. Enquanto se mantinha as aldeias abastecidas de comida, aguardente, ferramentas e roupas, e não se abusava em excesso da colaboração dos nativos, tudo ia bem e, aos poucos, os ameríndios eram assimilados pela cultura baiana de matriz europeia. Assimilados, mas nem sempre aceitos em condição de igualdade. As mulheres e as crianças entre eles podiam se juntar aos agregados das fazendas ou aos moradores dos povoados e vilas. Eram bem-vindas, pois os filhos que tivessem com brancos ou negros livres seriam tidos por brancos e mestiços livres. Daí a herança matrilinear indígena representar mais de um terço dos marcadores genéticos dos atuais habitantes da região Nordeste do Brasil. Aos homens indígenas, as possibilidades de assimilação eram parciais, quase sempre em condição subalterna ou de inferioridade. Tanto que menos de 2% dos marcadores genéticos patrilineares dos atuais moradores do Nordeste são de origem ameríndia.
Tidos como exceção no quadro de assimilação geral, os denominados maracás foram objeto de ação repressiva organizada, que contou até com a participação do paulista Estevão Baião Parente e seu exército de indígenas sulistas. Os combates se deram na região entre os atuais municípios de Iaçu e Ruy Barbosa. A vitória oficialista, vitaminada por forças paiaiás, foi rápida. Como resultado, Santo Antônio da Conquista dos Maracases, rebatizada João Amaro, atual distrito de Iaçu, foi núcleo pioneiro da expansão ao médio Paraguaçu. Data de pelo menos 1673, povoado inicialmente por 12 brancos e 43 índios aliados. Da região seriam levados até 2 mil indígenas a Salvador como presas de guerra. Apenas Baião Parente teria chegado com 550. A São Paulo teriam ido 800, dada a maior demanda local por “administrados”, eufemismo paulista para escravizados.
Ameríndios são homens tão racionais quanto quaisquer outros. Buscavam antes a negociação pacífica do que o confronto, aceitando muitas vezes se agregar à atividade agropecuária ou a reunião de grupos por padres missionários nos aldeamentos católicos, em que podiam manter a identidade indígena, enquanto tinham acesso à alimentação regular e a ferramentas. Capuchinhos franceses e italianos, e jesuítas administraram indígenas de diversas etnias, no litoral e nos sertões. Particulares também podiam reduzir grupos de uma região a um local determinado. O homem negro João Gonçalves da Costa, fundador do arraial da Conquista, atual Vitória da Conquista, se faria notável por ter aldeado camacãs, pataxós e outros maxacalis, tidos como dos grupos mais resistentes à assimilação, ambos falantes de línguas do grupo macro-jê. Costa e seus filhos, entre a segunda metade do século XVIII e a primeira do XIX, seriam responsáveis por trazer à civilização baiana o Planalto da Conquista, o Sertão da Ressaca e parte da área ao sul do curso do Rio Pardo.
Por decisão do Marquês de Pombal, as missões católicas são descontinuadas. Antes, com o rei Pedro II de Portugal, os indígenas aldeados tiveram terras demarcadas para si. Com Pombal, essas terras podiam ser elevadas a sedes de novos municípios. A Bahia dera antes o exemplo em Água Fria, município paiaiá emancipado em 1727. Pombal, em 1758, concede aos paiaiás um segundo município: Santarém, atual Ituberá. Não tupis estavam no litoral, nesse e em outros casos, por terem sido deslocados para lá.
Também foram elevados a sedes municipais, na mesma época, Trancoso, de tupis, depois incorporado a Porto Seguro; Vila Verde, também de tupis e também incorporado mais tarde a Porto Seguro; Olivença, de tupis, incorporado a Ilhéus no início do século XX; Mirandela, de kiriris, atual distrito de Banzaê; Canabrava, de kiriris, atual Ribeira do Pombal; Natuba, de kiriris, atual Nova Soure; Ipitanga, de tupis, rebatizada Abrantes, município com sede posteriormente transferida para Camaçari; Barcelos, de tupis; Almada, de grens, incorporada depois a Ilhéus; além de Pedra Branca, atual distrito de Santa Teresinha. Os indígenas ficavam submetidos à supervisão de um diretor não índio, mas podiam eleger seus próprios vereadores e gozavam dos mesmos direitos dos demais súditos do Império Português. Também podem ser creditadas aos indígenas as criações dos atuais municípios de Belmonte, Prado, Nova Viçosa e Mucuri, todos na então ouvidoria de Porto Seguro. Igualmente pertencia à jurisdição de Porto Seguro, portanto à capitania da Bahia, o município de São Mateus, ora no Espírito Santo, criado na mesma época e com a mesma motivação.
Em 1852, o número total de indígenas aculturados que, ainda assim, mantinha a identidade étnica de origem, foi estimado em 4.333 almas. A primeira contagem geral e oficial, vinte anos depois, em 1872, não menciona indígenas, compreendidos na categoria mais ampla dos ditos “caboclos”. O primeiro recenseamento brasileiro não era por autodeclaração. O recenseador devia distinguir brancos, pardos e pretos. Quem parecesse índio ou mestiço de índio era enquadrado no tipo “caboclo”. O censo então achou 49.882 caboclos na Bahia, 3,5% da população da época. Estavam em todos os 72 municípios, mas só constituíam maioria, mais de 80%, entre a população de Vila Verde. Curiosamente, na freguesia de Massacará, atual município de Euclides da Cunha, antigo aldeamento indígena, só apareceram 2% de caboclos. Em Olivença, apenas 13 indivíduos foram identificados como tendo traços indígenas ou mestiços, traços étnicos ou fenotípicos. Os locais faziam questão de negar pertencimento tupi, sendo a atual evocação étnica tupinambá no distrito de Olivença e arredores fato muito recente, também objeto de acirradas disputas políticas, com boa parte dos não índios se negando a reconhecer tal processo de etnogênese.
Termo mais adequado para descrever emergências indígenas do século XX é etnogênese, ou seja, a formação de novas identidades étnicas, em alguma medida reemergências de pertencimentos do passado. Etnogênese é preferível ao termo “remanescentes”, impreciso e por vezes a evocar preconceitos.
As atuais terras indígenas situadas na Bahia foram todas objeto de etnogênese. Nelas vivem, segundo os últimos levantamentos disponíveis, pouco mais de 20 mil indivíduos, mais da metade deles autoidentificados como pataxós, um subgrupo maxacali. São secundados pelos tupinambás de Olivença, por pankararés, kiriris, tumbalalás, kaimbés, tuxás, kantaturés, pankarus, xukurus e tupinambás de Belmonte, nessa ordem. Todos falam predominantemente o português, embora algumas comunidades procurem resgatar as línguas de origem. É um direito inegável dessas populações se identificarem como indígenas. Quanto às demarcações, as atuais não pertencem ao terreno da história remota, pois nenhuma delas corresponde às decretadas em 1700 por Pedro II de Portugal, de 36 mil hectares cada, senão por aproximação em alguns casos.
Ameaças de Trump: "Coisa de mafiosos"- Editorial Estadão
Editorial Estadão, 10/07/2025
Coisa de mafiosos
Que o Brasil não se vergue diante dos arreganhos de Trump. E que aqueles que são verdadeiramente brasileiros não se permitam ser sabujos de um presidente americano que envergonha a democracia
O presidente americano, Donald Trump, enviou carta ao presidente Lula da Silva para informar que pretende impor tarifa de 50% para todos os produtos brasileiros exportados para os EUA. Da confusão de exclamações, frases desconexas e argumentos esquizofrênicos na mensagem, depreende-se que Trump decidiu castigar o Brasil em razão dos processos movidos contra o ex-presidente Jair Bolsonaro pela tentativa de golpe de Estado e também por causa de ações do Supremo Tribunal Federal (STF) contra empresas americanas que administram redes sociais tidas pelo STF como abrigos de golpistas. Trump, ademais, alega que o Brasil tem superávit comercial com os EUA e, portanto, prejudica os interesses americanos.
Não há outra conclusão a se tirar dessa mixórdia: trata-se de coisa de mafiosos. Trump usa a ameaça de impor tarifas comerciais ao Brasil para obrigar o País a se render a suas absurdas exigências.
Antes de mais nada, os EUA têm um robusto superávit comercial com o Brasil. Ou seja, Trump mentiu descaradamente na carta para justificar a medida drástica. Ademais, Trump pretende interferir diretamente nas decisões do Judiciário brasileiro, sobre o qual o governo federal, destinatário das ameaças, não tem nenhum poder. Talvez o presidente dos EUA, que está sendo bem-sucedido no desmonte dos freios e contrapesos da república americana, imagine que no Brasil o presidente também possa fazer o que bem entende em relação a processos judiciais.
Ao exigir que o governo brasileiro atue para interromper as ações contra Jair Bolsonaro, usando para isso a ameaça de retaliações comerciais gravíssimas, Trump imiscui-se de forma ultrajante em assuntos internos do Brasil. É verdade que Trump não tem o menor respeito pelas liturgias e rituais das relações entre Estados, mas mesmo para seus padrões a carta endereçada ao governo brasileiro passou de todos os limites.
A reação inicial de Lula foi correta. Em postagem nas redes sociais, o presidente lembrou que o Brasil é um país soberano, que os Poderes são independentes e que os processos contra os golpistas são de inteira responsabilidade do Judiciário. E, também corretamente, informou que qualquer elevação de tarifa por parte dos EUA será seguida de elevação de tarifa brasileira, conforme o princípio da reciprocidade.
Esse espantoso episódio serve para demonstrar, como se ainda houvesse alguma dúvida, o caráter absolutamente daninho do trumpismo e, por tabela, do bolsonarismo. Para esses movimentos, os interesses dos EUA e do Brasil são confundidos com os interesses particulares de Trump e de Bolsonaro. Não se trata de “América em primeiro lugar” nem de “Brasil acima de tudo”, e sim dos caprichos e das ambições pessoais desses irresponsáveis.
Diante disso, é absolutamente deplorável que ainda haja no Brasil quem defenda Trump, como recentemente fez o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, que vestiu o boné do movimento de Trump, o Maga (Make America Great Again), e cumprimentou o presidente americano depois que este fez suas primeiras ameaças ao Brasil por causa do julgamento de Bolsonaro.
Vestir o boné de Trump, hoje, significa alinhar-se a um troglodita que pode causar imensos danos à economia brasileira. Caso Trump leve adiante sua ameaça, Tarcísio e outros políticos embevecidos com o presidente americano terão dificuldade para se explicar com os setores produtivos afetados.
Eis aí o mal que faz ao Brasil um irresponsável como Bolsonaro, com a ajuda de todos os que lhe dão sustentação política com vista a herdar seu patrimônio eleitoral. Pode até ser que Trump não leve adiante suas ameaças, como tem feito com outros países, e que tudo não passe de encenação, como lhe é característico, mas o caso serve para confirmar a natureza destrutiva desses dejetos da democracia.
Que o Brasil não se vergue diante dos arreganhos de Trump, de Bolsonaro e de seus associados liberticidas. E que aqueles que são verdadeiramente brasileiros, seja qual for o partido em que militam, não se permitam ser sabujos de um presidente americano que envergonha os ideais da democracia.
https://www.estadao.com.br/opiniao/coisa-de-mafiosos/
Livro: A Diplomacia dos bancos centrais: renovação versus anacronismo no Banco de Compensações Internacionais (BIS) - Davi Augusto Oliveira Pinto
A Biblioteca Digital da Funag "esconde" algumas preciosidades para o pesquisador de história diplomática, como pode ser este livro, de alguns anos atrás, que só agora vim a descobrir e que é de meu direto interesse nos trabalhos de história econômica.
A Diplomacia dos bancos centrais: renovação versus anacronismo no Banco de Compensações Internacionais (BIS)
Descrição:
Instituição financeira internacional mais antiga do mundo, o Banco de Compensações Internacionais (BIS) permanece relativamente desconhecido. Quem controla o chamado “banco central dos bancos centrais”? O que leva os principais banqueiros centrais do mundo a participarem regularmente de reuniões reservadas em uma bucólica cidade suíça? Para que servem os Acordos de Basileia? Por que a célebre conferência de Bretton Woods determinou a extinção do BIS? Houve colaboração entre a entidade e o regime nazista? Como a criação do Banco Central Europeu contribuiu para o ingresso do Brasil no BIS? Essas e outras questões são desvendadas neste livro, que, com base em inédita pesquisa nos arquivos do BIS, relata os esforços do organismo para permanecer relevante face a constantes mudanças ao longo das últimas nove décadas. O trabalho avalia a crescente participação do Banco Central do Brasil na instituição – um brasileiro ocupa desde 2015 o segundo cargo mais elevado na hierarquia burocrática do BIS – e examina implicações para a atuação do Itamaraty no contexto mais amplo da política externa Brasileira.
Detalhes
| Autor(a) | Davi Augusto Oliveira Pinto |
|---|---|
| Editora | FUNAG - Fundação Alexandre de Gusmão |
| Assunto | Acordos de Basileia | Banco Central do Brasil (BCB) | Banco de Compensações Internacionais (BIS) | Brasil - História diplomática | Diplomacia financeira - cooperação entre bancos centrais | Itamaraty - política externa brasileira |
| Ano | 2021 |
| Edição | 1ª edição |
| Nº páginas | 440 |
| Idioma | Português |
| ISBN | 978-65-8708-324-7 |
Mais uma dessas previsões aleatorias (perdão por especular) - Paulo Roberto de Almeida
Mais uma dessas previsões aleatorias (perdão por especular):
Dois poderosos dirigentes atuais, Trump e Putin, estão, de modo sistemático, meticulosamente, um deliberadamente, o outro de forma inconsciente ou involuntariamente, destruindo seus respectivos países, para dentro e para fora.
Os EUA vão se recuperar, após a passagem do seu furacão eleitoral, pela democracia e pelas liberdades consagradas em sua formação cultural.
A Rússia vai entrar num período de lutas internas, como a República da China já conheceu na primeira metade do século XX. Não sabemos ainda o que restará dela, pois os valores são outros, pouco propensos à democracia ou às liberdades.
Enquanto isso, o Brasil segue o seu curso hesitante e impreciso, por falta de clareza de seus dirigentes.
Desculpem o atrevimento.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 10/07/2025
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