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sábado, 28 de maio de 2022

Apocalípticos e Bestializados: a conspiração para acabar com as conspirações - Martim Vasques da Cunha

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Apocalípticos e Bestializados

Conheça o verdadeiro manda-chuva do governo Bolsonaro


Martim Vasques da Cunha

Presto, Feb 26, 2021

 

“Porque nada há oculto que não deva ser descoberto, nada secreto que não deva ser publicado.”

Marcos 4:22

1.

No Brasil de Jair Bolsonaro, há uma união aparentemente insólita entre os evangélicos, os protestantes e os católicos. Apesar de serem vertentes religiosas que deveriam viver em uma rixa constante, elas estão num combate contra o que chamam de “a cultura da morte”. E o quartel-general desta estratégia se encontra no Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, comandado pela ministra e pastora Damares Alves.

Um dos motivos desta união é a figura enigmática de Antonio Donato Paulo Rosa, também conhecido entre seus desafetos como “São Moita”. Católico devoto – quase “obsessivo”, diriam alguns –, ele tem uma postura tão discreta que não seria um exagero compará-lo a J.D. Salinger. De tipo franzino, cabelos grisalhos, olhos claros (ninguém se lembra se são azuis ou verdes), pele muito branca e dono de uma voz anasalada, às vezes quase infantil, Donato não dá entrevistas (até o fechamento desta reportagem, tentou-se contactá-lo três vezes em um endereço eletrônico, disponibilizado no seu site www.cristianismo.org.br, mas não se obteve nenhuma resposta).

A sua única foto pública é de alguns anos atrás, tirada sem seu conhecimento, comendo um sanduíche em um bar da região da Bela Vista, em São Paulo (a responsável por tal feito foi a filha mais velha de Olavo de Carvalho, Heloísa de Carvalho Martin Ribas). Sua obra esparsa tem um único livro e poucos textos veiculados na internet, além de diversas aulas, divulgadas via e-mail por um núcleo reduzido de alunos, nas quais ele explica a sua perspectiva sobre o que acontece no mundo atual, tanto em termos políticos como religiosos. O alvo do seu projeto é justamente o combate contra a “cultura da morte” – uma expressão inspirada nas encíclicas do Papa João Paulo II. Ela é usada de modo insistente na obra de Donato e, por ser muito ampla de significado, abriga o aborto, a pedofilia, a ideologia de gênero e a destruição dos valores familiares.

O próprio Donato explicitou essas intenções a algumas pessoas que foram às suas aulas – a maioria delas ocorre em paróquias nobres da cidade de São Paulo, como a da Nossa Senhora do Brasil. Essas pessoas narram esses encontros em textos públicos que foram pescados ali e acolá na internet e nas redes sociais (em especial, no Facebook). Uma dessas testemunhas, Heloísa Gusmão, escreveu em uma carta aberta dirigida ao site católico Montfort em 2018 sobre o que acontecia nessas reuniões. Nelas, Donato alegava que “todo o seu segredo não se trata de uma sociedade secreta, mas de uma ação política, cuja discrição é essencial para que os esquerdistas não se alertem para a movimentação que ele faz”.

Essa ação política se traduz concretamente em um comando difuso que existe há 20 anos e que, de uma maneira ou de outra, sempre volta à figura de Donato. Sua origem remonta a 1993, no mestrado que ele fez na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, sob a orientação do professor Jean Lauand, então membro do Opus Dei, muito tempo antes deste se desvincular da organização católica (evento marcado pelo lançamento de um polêmico livro que conta os bastidores da instituição religiosa, em 2005). 

O fruto desse estudo do mestrado, cujo tema era “O papel da contemplação na educação, segundo os escritos filosóficos de Santo Tomás de Aquino”, foi justamente o primeiro e único livro de Donato – A educação segundo a Filosofia Perene, depois publicado em edição particular em 1999. Depois, tanto o mestre como o discípulo se associaram a um grupo informal de pesquisas acadêmicas, também criado por membros do Opus Dei, sobre a obra do místico catalão humanista Raimundo Lúlio. Por coincidência, Donato manteve contato com outros dois orientandos de Lauand, mas que faziam parte de outras denominações religiosas – Enio Starosky, atual diretor do Colégio Luterano de São Paulo, e Rui Josgrilberg, professor da Universidade Metodista de São Paulo. Essa ala intelectual influencia fortemente o trabalho da organização não-governamental que faz a articulação da ala política, a LibCom, que seria, tal como as residências do Opus Dei, um centro de estudos e de formação, e tem o apoio de dois políticos – o deputado estadual Reinaldo Alguz e o deputado federal Enrico Misasi, eleitos por São Paulo pelo Partido Verde. 

A ação de Donato nos corredores do poder continua até o ministério de Damares Alves, com dois alunos dele, Ellen Amâncio Moreira Silva Schelb e Rodrigo Rodrigues Pedroso, empregados como assessores especiais da ministra. Este último, aliás, é mais do que aluno; é também sócio de Donato na empresa Microbookstudio Software Ltda, aberta em 2002, e localizada numa rua do bairro Jardim Bonfiglioli, em São Paulo, responsável por hospedar o site que publica a obra de Donato e também por abrigar, por meio de links fechados, os áudios das suas aulas. (Ellen Schelb e Rodrigo Pedroso foram procurados em seus e-mails institucionais. Schelb não respondeu até a conclusão desta reportagem. Já Pedroso retornou com um pedido para que a “demanda fosse enviada ao departamento de imprensa” do Ministério, o que foi feito. Até o fechamento desta matéria, a assessoria não se pronunciou.)

Em registros públicos facilmente encontrados no site do Ministério, informa-se que tanto Donato como Pedroso já participaram juntos em reuniões de trabalho: a primeira foi em 20 de setembro de 2019; a segunda em 18 de dezembro de 2019 e uma terceira ocorreu em 12 de junho de 2020. Os assuntos iam de “interesses da vida e da família” ao “direito à vida”, passando pelo remédio Citotec (que provoca aborto espontâneo). Nesses três encontros oficiais, também estava presente a secretaria nacional da Família, Angela Gandra Martins, filha do jurista Ives Gandra Martins e irmã do ministro do Tribunal Superior do Trabalho, Ives Gandra Filho, ambos membros notórios do Opus Dei.

A presença de Antonio Donato em Brasília não se tornou constante somente por causa da simpatia com as iniciativas de Damares Alves. Ela já ocorria no passado. Em vários e-mails enviados aos seus alunos, em outubro de 2016, durante o governo Michel Temer, ele avisou o cancelamento de muitas aulas, alegando que “a Medida Provisória 746, que exigiu primeiro ações imediatas, e depois duas viagens que se acumularam com suas exigências, impediram que pudesse completar a edição da última aula de quinta feira [...]”. A medida em questão discorre sobre “a Política de Fomento à Implementação de Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral, [que] altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, e a Lei nº 11.494 de 20 de junho 2007, que regulamenta o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação, e dá outras providências”. Essa lei foi promulgada um mês antes da escrita das mensagens exibidas acima. 

Em outro e-mail, de novembro de 2016, Donato explicou que se encontrou em Brasília com “um grupo de pessoas que trabalham a favor da vida” e que seria “necessária uma reunião hoje à noite para coordenar suas atividades. Não será possível por este motivo termos aula hoje à noite. Espero retomarmos na próxima segunda feira e que não nos deixemos abater por causa destes contratempos necessários. Na próxima segunda feira, pessoalmente, posso explicar melhor o que se terá feito em Brasília.”

 

2.

Com a ascensão de Jair Bolsonaro, coincidentemente a influência de Donato cresceu no ambiente religioso brasileiro. Apoiado por outras duas entidades católicas, o Centro Dom Bosco e a Liga Cristo Rei, ele passou a dar aulas não só para os católicos comuns, mas também para duas parlamentares ligadas explicitamente ao bolsolavismo (movimento informal vinculado ao filósofo Olavo de Carvalho), as deputadas federais Chris Tonietto (PSL) e Carolina De Toni (PSL). No primeiro Fórum Nacional da Liga Cristo Rei, ocorrido em 2017, “estava lá Donato a dar suas aulas secretas” e, “entre os palestrantes da Liga estavam nomes tarimbadíssimos do olavismo”, como “Allan dos Santos e Bernardo Küster”, segundo o relato público do jovem católico Filippe Irrazábal, lançado no Facebook no início de 2020.

A sombra do mestre misterioso não se estendeu apenas ao gabinete de Damares – ocorreu igualmente no Ministério da Educação (MEC). De acordo com Irrazábal, “alunos do Donato receberam cargos importantes no MEC. Um desses cargos foi para um dos líderes do CDB [Centro Dom Bosco] [...]. Claudio Titericz e André Melo eram outros alunos do Donato que receberam altos cargos no MEC. Quando um olavete era demitido do MEC pelo novo ministro Weintraub, André Melo logo o recontratava na TV Escola, que virou o bastião do Donato [...] dentro do MEC”.

A partir de março de 2020, com o anúncio da pandemia do coronavírus, ainda de acordo com Irrazábal, Donato enviou “vídeos no WhatsApp contra o distanciamento social e alertando para o ‘perigo de governo mundial’ por causa disto, até mesmo ligando para as pessoas”. Uma das fontes ouvidas pela reportagem – uma intelectual católica – confirmou a existência desses vídeos e dessas ligações. [1] A princípio, parece ser uma atitude bizarra para alguém que alega lutar contra a “cultura da morte” a qualquer custo. Porém, trata-se de uma ação muito coerente com a lógica intrínseca do seu pensamento – e que, se for analisada a contento, revela o que o poeta polonês Czeslaw Milosz disse sobre uma das tendências subterrâneas da modernidade. Trata-se do insólito fato de que “só na metade do século XX os habitantes de muitos países [ocidentais] compreenderam, em geral por meio do sofrimento, que complexos e difíceis livros de filosofia têm influência direta sobre seu destino”.

3.

Este é o caso de A educação segundo a Filosofia Perene, a obra que seria o fundamento das aulas que Antonio Donato daria para quem quisesse acompanhá-lo durante esses vinte anos de discreto magistério. O título faz referência à philosophia perennis, que, apesar de ser identificada com um conjunto de escritos de sabedoria que remonta aos movimentos esotéricos tradicionalistas surgidos no final do século 19 – e até mesmo erroneamente aos da Nova Era que fizeram sucesso entre as décadas de 1960 a 1980 – seria na verdade, segundo Donato, a reunião dos tratados dos grandes filósofos antigos e cristãos, como Platão, Aristóteles, Hugo de São Vítor e – o preferido do professor – Santo Tomás de Aquino.

O argumento geral da sua obra completa é o seguinte: o mundo moderno e democrático não possui mais condições de criar uma educação que faça o ser humano se tornar alguém dotado de virtude. Portanto, é fundamental um retorno à “filosofia perene” ensinada por Donato para a recuperação dessa qualidade, especialmente em um ambiente que já está nitidamente dominado pela “cultura da morte”. A educação, aqui, deixa de ser instrumental e voltada apenas para o mercado de trabalho – que desumanizaria o indivíduo – e partiria para um caminho moral, religioso e místico, cuja meta é a reconstituição de uma virtude heroica na alma do aluno. 

Contudo, como tornar isso factível hoje em dia? Para Donato, a solução passaria por três fatores: buscar um exemplo de sociedade perfeita que já existiu na História; criar aos poucos um círculo de sábios virtuosos; e o questionamento de tudo o que existe na nossa sociedade, da política (com a crença ferrenha de que o governo mundial é uma espécie de “sistema do Anticristo”) à ciência moderna.

No primeiro item, Donato remonta à noção de um governo monárquico, inspirada nos escritos do cardeal e santo da Contra Reforma Roberto Bellarmino, célebre por ter participado no julgamento feito pela Igreja Católica contra ninguém menos que Galileu Galilei. Mas não se trata de uma monarquia que depende exclusivamente do rei secular; aqui, o monarca seria o Papa, o qual teria a virtude de comandar o governo perfeito que sempre foi a Igreja de Roma, pois esta foi criada por Deus. Esse exemplo deveria nortear o mundo democrático, que perdeu por completo a noção de integridade moral. Aqui teríamos o segundo fator: o papel do círculo de alunos, formatado pela filosofia perene, que ajudaria o comandante deste governo perfeito a torná-lo uma realidade – e, neste aspecto, todos os seus integrantes precisam entender que a luta deles não é contra meros seres humanos, mas sim contra o próprio mal que atua na Terra. 

Não à toa que, dentro dessa linha de pensamento, há uma rejeição explícita da ciência moderna, especialmente na figura de Isaac Newton - o que nos leva ao terceiro ponto da solução proposta pela “filosofia perene”. O cientista inglês seria o principal culpado por perverter a noção da alma individual ao criar um sistema de mensuração da realidade que dependeria somente da exatidão técnica, abolindo assim qualquer perspectiva metafísica. É justamente por causa desse tipo de cosmologia, diz Donato, que surgem as ideias a favor da “cultura da morte”, em particular as que envolvem o aborto e a ideologia de gênero, pois elas perderam o sentido religioso do que significa a vida humana. O lado perigoso dessa afirmação é que, no momento em que se mais precisa das soluções dadas por este tipo de ciência – como numa pandemia, por exemplo –, torna-se perfeitamente inevitável questionar as medidas de distanciamento social (pois a Organização Mundial de Saúde [OMS] seria “globalista”), a existência do coronavírus (criado pela China “anticristã”) e até mesmo a eficácia das vacinas (cujo resultado será o controle populacional por meio da esterilização da humanidade).

Esse raciocínio encanta a todos que conhecem pessoalmente Donato – algo estimulado pela aura de segredo e de santidade que o cerca para quem participa (ou conhece) as suas aulas. Um dos seus ex-alunos disse a esta reportagem que, quando começou a ir a esses encontros, também frequentava o Curso Online de Filosofia (COF) de Olavo de Carvalho, e perguntou ao polêmico filósofo qual era a sua opinião sobre Antonio Donato. A resposta foi: “‘O Donato é um santo, quando encontrá-lo beije a mão dele’”. Além disso, esse ex-aluno disse que “tinha um conhecido que afirmou que o Donato lia sua mente nas reuniões, respondendo suas perguntas antes que ele as fizesse.” 

Entretanto, a admiração de Carvalho por Donato não parece ser recíproca. O mesmo ex-aluno informou que, um dia, comentara “com Donato que estava transcrevendo suas aulas a partir das gravações, assim como eu fazia com as aulas do Olavo, já que também participava do COF. Ele não pareceu animado com a ideia, mas tentou ser gentil, mostrando algum interesse. Parecia que eu havia falado uma obscenidade. Todos [ali presentes] prenderam o ar, trocaram olhares significativos e me senti péssimo. Donato ficou impassível. Impossível dizer o que ele achava disso.”

“Para mim, ficou nítido que o objetivo daquelas aulas era criar um grupo que influenciasse a Igreja e a sociedade a longo prazo”, continuou a me dizer esse ex-aluno. Todos esses encontros não eram cobrados. Cada vez que algum estudante pedia a Donato um exemplar físico do seu livro (impresso com uma capa branca, só com o título em letras negras, sem o nome do autor ou qualquer informação biográfica), ele o enviava por correio sem custo nenhum, além de disponibilizá-lo gratuitamente em uma versão virtual tanto no seu site como numa cópia de CD em um documento PDF. Na carta pública que Heloísa Gusmão enviou à Montfort, ela escreveu que um dos motivos desse procedimento abnegado está na história mística, contada por Donato, sobre “uma de suas alunas [que] foi vender a primeira edição do livro numa faculdade de teologia para uma moça muito piedosa, com fama de santidade. A beata hesitou em comprar o livro, por ter pouco dinheiro, então disse que iria à Capela da faculdade perguntar a Jesus o que Ele achava da ideia. Não deram 15 minutos, a beatinha saiu correndo atrás da aluna do Donato, pedindo com muito entusiasmo: ‘Me vende o livro, me vende o livro! Jesus disse que tem pressa!’”.

Mesmo assim, segundo o ex-aluno, o clima entre os estudantes não era muito acolhedor: “A primeira coisa que notei é que ninguém daquele grupo dava o menor sinal de empatia comigo, exceto o próprio Donato. Senhorzinho amável, sempre perguntava os nossos nomes, quais eram nossas paróquias de origem, etc. Todas as tentativas de conversar com seus alunos eram desanimadoras. Isso fazia eu me sentir indesejado. Insisti nos encontros, pois as aulas tinham um conteúdo muito relevante pra mim. [...] Quem chegava [na sala] colocava seu e-mail em uma lista, onde se recebia as gravações das aulas.”

O escopo dessas conferências particulares – cada uma com a duração média de duas a três horas – é ambicioso. Donato vai do questionamento da ciência moderna em Isaac Newton, passando pela Constituição Americana, até a crítica das obras de Kant e Hegel, sempre com o fio comum de mostrar o que ele afirma ser “o controle das ideias a partir da criação política das grandes fundações globalistas”, como a Ford, a Rockfeller e a Templeton. Segundo suas próprias palavras, elas são as principais responsáveis pela sedimentação da “cultura da morte” no Brasil e no resto do mundo contemporâneo, e seriam o oposto do governo virtuoso que ele tenta criar com a ajuda dos seus alunos.

4.

As ideias aparentemente desconexas que rondam a obra de Antonio Donato só ganham coerência se entendermos que, no pensamento político moderno, houve três grandes ondas de imaginação, se aproveitarmos a hipótese do filósofo Leo Strauss. A primeira seria a do republicanismo, que deu origem à democracia liberal, e teria como representante Maquiavel; a segunda seria a do jacobinismo, moldada no pensamento de Jean Jacques Rousseau, e que culminou na visão revolucionária de Marx; e a terceira seria a do reacionarismo, que teria em Nietzsche o seu líder e em Heidegger um dos seus discípulos. Contudo, Strauss esqueceu-se de uma quarta onda, subterrânea, que lentamente minou as bases construídas pela democracia liberal e se apresentou como um contraponto ao jacobinismo e ao reacionarismo. Trata-se da imaginação apocalíptica, cujo principal pensador no século 20 seria o místico francês René Guénon, também arauto de uma philosophia perennis e que influenciou ninguém menos que Steve Bannon nos EUA (ex-estrategista de Trump), Aleksandr Dugin na Rússia (guru de Vladimir Putin que já fez duas visitas no Brasil) e, aqui, Olavo de Carvalho – além de, claro, Antonio Donato, ambos os maiores inspiradores do bolsonarismo.

 

Um dos episódios recentes que demonstra como essa onda subterrânea invade a democracia liberal é o movimento conspiracionista americano QAnon. Ele surgiu no público depois da eleição de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos, mais especificamente no dia 28 de outubro de 2017, quando um usuário anônimo, de codinome Q, escreveu de modo críptico que a ex-primeira dama e ex-Secretária de Estado Hillary Clinton seria presa dentro de três dias. O prazo final chegou, e nada aconteceu com ela. Mesmo assim, esse sujeito misterioso (que se inspirou no termo “Q Clearance”, “acesso confidencial”, muito usado nos serviços secretos de informação) continuou a espalhar suas pistas (apelidadas de “migalhas”) em sites obscuros como 4chan ou 8chan, que são plataformas de mensagens onde as pessoas podem conversar sem revelar suas identidades utilizando apenas pseudônimos.

Rapidamente, criou-se uma comunidade de seguidores – o QAnon – a qual construiu a seguinte visão de mundo – uma espécie de amálgama de histórias que já existiam há muitos anos no imaginário americano: a de que, durante séculos, a Terra foi comandada por uma casta antiga, secreta e mortal. Denominada “A Cabala” – depois transformada em “estado profundo” [deep state] e reduzida ao conhecido “establishment” –, trata-se de uma organização hierárquica que, no seu núcleo, seria satânica desde a origem. Ela é um grupo oculto que se imiscuiu em todas as instituições, como os bancos, a mídia e os governos, por meio de ações macabras de chantagem, pedofilia, sacrifício humano, e até mesmo canibalismo. 

Entre seus principais membros, temos uma lista infinita, dividida em diversas seções: na política, temos Bill e Hillary Clinton, Barack e Michelle Obama, metade do Partido Republicano (especialmente os senadores John McCain e Mitt Romney) e, sem dúvida nenhuma, todo o Partido Democrata, que comanda a CIA, o FBI e a Agência de Segurança Nacional; na mídia, todos os órgãos jornalísticos estão envolvidos, sem contar Tom Hanks, Steven Spielberg e o bilionário acusado de ser o chefe de uma rede de tráfico de menores, o falecido Jeffrey Epstein; na tecnologia, o Vale do Silício em peso apoia essa iniciativa; na religião, o Papa Francisco; e no setor financeiro, as grandes fundações filantrópicas como Ford e Rockfeller, a família Rothschild, além da Organização das Nações Unidas (ONU), o Fórum Econômico Mundial e todos os participantes europeus que alguma vez foram a Davos, Suíça, para implementar a Nova Ordem Mundial (entre eles, George Soros está no topo). A meta da Cabala é a acumulação de poder a qualquer custo – e, de acordo com o QAnon, o detalhe mais macabro sobre essas pessoas é que elas são especialistas na paradoxal arte de esconder tudo isso à vista de todos [hiding in plain sight, em inglês].

O QAnon conseguiu ter um total de aproximadamente de 4,5 milhões de seguidores em páginas do Facebook e Twitter, segundo o jornal inglês The Guardian. No último ano, entretanto, a disseminação do seu pensamento aumentou ainda mais com o anúncio da pandemia do coronavírus. Além dos ataques constantes às redes secretas de abuso de menores e à imprensa, os entusiastas dessa comunidade também acreditam que a covid-19 é uma criação da Cabala para implementar, de uma vez por todas, o globalismo que fará todas as culturas, perdendo, assim, as suas características individuais. Isso seria definitivo com a distribuição de uma vacina que tornaria a humanidade estéril ou incapaz. 

Pouco a pouco, o QAnon tornou-se o centro de narrativas que ainda carecem de comprovação factual, capazes de prejudicar a saúde pública no momento grave do surto do coronavírus, além de estimular atos públicos de violência – como o de um seguidor que, em 2018, foi preso por bloquear o trânsito em Nevada com um caminhão cheio de armas, exigindo a liberação dos relatórios do FBI a respeito dos e-mails interceptados de Hillary Clinton, escândalo que foi pivô nas eleições de 2016. Por esse motivo, o mesmo FBI decidiu incluir o QAnon na categoria de “ameaças terroristas domésticas”, especialmente por causa das teorias da conspiração que atiçam a ameaça do extremismo, quando indivíduos “alegam ser pesquisadores ou investigadores que destacam pessoas, negócios ou grupos acusados falsamente de estarem envolvidos em um esquema imaginário”. Indo pelo mesmo caminho de precaução, as empresas de tecnologia (Facebook, Twitter, TikTok e YouTube) removeram numa ação conjunta, entre julho e agosto de 2020, mais de 7.000 contas no Twitter e cerca de 790 grupos no Facebook, todos envolvidos direta ou indiretamente com o QAnon. 

Apesar de todos esses alertas, ainda assim a conspiração para acabar com todas as conspirações triunfou no pleito eleitoral americano, em novembro do ano passado, com a vitória da republicana Marjorie Taylor Greene, para ser representante do estado da Georgia – por ironia, o mesmo tipo de establishment que o movimento tanto abomina. Ela foi a principal garota propaganda do QAnon e, entre as diversas declarações polêmicas dadas no passado ao negar a pandemia, a mais famosa delas após vencer a vaga foi a de que o uso de máscaras para proteção não teria nenhuma eficácia científica comprovada. E, como se não bastasse, vários membros desta organização subterrânea participaram na catastrófica invasão do Capítólio ocorrida no dia 6 de janeiro de 2021, sob incitação direta do então presidente Donald Trump.

Esses fatos descritos acima apenas comprovam que a cultura americana tem um fascínio duradouro pelo tema da paranoia. Desde da literatura de Don DeLillo, Philip K. Dick e Thomas Pynchon, passando pelo cinema de Alan J. Pakula, até as mensagens subliminares que podem ser descobertas nos álbuns de bandas de rock como Jefferson Airplane ou Nine Inch Nails, a conspiração sempre foi vista como uma espécie de discurso que se opunha ao governo burocrático o qual jamais pretendeu mostrar a verdade ao povo. O Estado e seus representantes de terno e gravata eram os inimigos a serem combatidos. Porém, com a eleição de Donald Trump em 2016, ocorreu uma reviravolta que, até agora, passou desapercebida: se antes a teoria conspiratória era uma espécie de complô que salvava a América das garras da tecnocracia corrupta, agora era o próprio governo que usava a desconfiança dos outros para permanecer no poder.

Não se trata de uma ideia nova, muito menos exclusiva do ex-presidente americano. Em 2008, os juristas Cass Sunstein (um democrata progressista) e Adrian Vermeule (um republicano católico) escreveram um artigo acadêmico intitulado “Teorias das Conspirações: Causas e Curas”. Eles explicaram no texto que, depois dos ataques de 11 de setembro, tornou-se fundamental entender o motivo de vários grupos marginais pretenderem culpar o governo americano pelo atentado terrorista contra o World Trade Center e o Pentágono. As teorias da conspiração não podiam ser desprezadas; elas deveriam ser combatidas porque, cedo ou tarde, prejudicariam o próprio funcionamento da sociedade. Por isso, os dois acadêmicos ofereceram uma solução insólita: a criação daquilo que eles chamaram de “infiltração cognitiva em grupos extremistas, elaborada para introduzir diversidade de informação nessas redes informais e assim expor suas teorias conspiratórias indefensáveis”. Em outras palavras: Sunstein e Vermeule acreditavam que a única maneira de acabar com uma conspiração seria estabelecer uma outra conspiração.

No mundo segundo o QAnon (e Trump), isso faz perfeito sentido. Com suas migalhas de pseudoconhecimento a se multiplicarem em progressão geométrica nas redes sociais, fica evidente que a intenção dessa comunidade é criar um novo discurso o qual não só transforma o presidente americano em um “salvador”, mas que também ele seja um obstáculo para o que seria a verdadeira conspiração, a mais nociva de todas: a da Cabala. Sua principal arma é estimular a imaginação – e, com isso, a esperança do sujeito que acredita que voltará a ter algum controle sobre sua situação política, social e econômica. Não à toa que o QAnon afirmava que Trump seria o responsável pela “tempestade” (storm) que enfim revelaria a todos as perversões dos integrantes do deep state. E mais: quem se inseria nesse grupo secreto era um eleito que viverá um novo “Grande Despertar” (The Great Awakening) – expressão histórica entre os americanos, a qual retrata o fervor religioso dos puritanos colonizadores nos séculos 17 e 18. Como bem escreveu o romancista Walter Kirn, o fascínio a respeito do QAnon se deve ao fato de que o seu líder misterioso sabe compartilhar como poucos a narrativa dele entre os leitores – e assim os transforma em seus parceiros. Ele lhes entrega o que promete: a possibilidade infinita de participar – e de alterar – os rumos da História.

No Brasil, um dos poucos na mídia que percebeu a importância do QAnon para alimentar a militância na fracassada campanha para a reeleição de Donald Trump foi o colunista da Folha de S. Paulo, Ronaldo Lemos. “Na prática o QAnon é uma rede articulada de produção de propaganda”, ele escreveu. “Em termos técnicos, é uma rede de Datti (Desinformação Adversarial, Táticas e Técnicas de Influência). Sua estratégia é uma das mais sofisticadas evoluções dos métodos de propaganda. Seu funcionamento ocorre por meio de um tripé de estratégias: (1) a coordenação entre pessoas anônimas pela rede, tática tornada famosa pelo grupo Anonymous (que o QAnon homenageia em seu nome); (2) a exploração de técnicas psicológicas como a chamada fixação funcional, muito comum em videogames; (3) os métodos desenvolvidos pelos chamados jogos de realidade alternativa (Alternative Reality Games), iniciados nos anos 2000 e aplicados à vida real com o auxílio da internet.”

Lemos chegou à mesma conclusão de Walter Kirn sobre a inventividade de quem participa dessa rede: “O QAnon influencia porque incentiva as pessoas a se tornarem ‘detetives’ na internet, em busca da ‘verdade’. Para isso, os mantenedores da estratégia espalham pistas muito bem escondidas pela rede. Um vídeo ali, uma informação em um site aqui, uma frase de um discurso político acolá. Ao não entregar a informação pronta, o [movimento] dá às pessoas uma sensação de inteligência e satisfação ao permitir que descubram ‘por si mesmas’ essa verdade oculta, cuidadosamente espalhada.” Em suma: com a ajuda de um imaginário deformado, não se trata mais de uma luta pelo poder por meio das categorias ultrapassadas de esquerda versus direita. Trata-se de uma luta a respeito de quem sobrevive no mundo da ficção e quem prevalece no mundo real.

Contudo, não devemos nos enganar na crença de que isso é algo que existe somente no território subterrâneo das ideias. Mesmo no ambiente religioso onde se movimenta o círculo íntimo de Antonio Donato, a imaginação apocalíptica que aquece o QAnon já alcançou a cúpula da Igreja Católica. Em outra carta aberta, lançada uma semana antes da data final para as eleições americanas de 2020, o arcebispo Carlo Maria Viganò e ex-núncio apostólico dos EUA, responsável por diversas críticas ao Papa Francisco, escreveu a ninguém menos que Donald Trump, afirmando que o republicano seria o “katechon” que impediria a realização de um plano macabro que mudaria o mundo como conhecemos. No caso, seu nome é o “Grande Recomeço” (The Great Reset), cuja principal meta é usar a pandemia do coronavírus, por meio de sucessivos lockdowns, para reelaborar a economia mundial e integrá-la de vez a um gigantesco governo globalista chefiado pela China. (De fato, há um livro com esse nome, co-escrito pelo criador do Fórum Econômico Mundial, Klaus Schwab – um dos maiores símbolos da Cabala –, lançado rapidamente em junho do ano passado, somente três meses depois da pandemia ter sido anunciada pela OMS.)

Para quem ainda não está acostumado com o vocabulário apocalíptico, katechon é uma expressão em grego, retirada da Segunda Epístola aos Tessalonicenses (atribuída ao apóstolo Paulo), e significa indistintamente “algo” que detém um poder e “contém” o definitivo triunfo do Espírito da impiedade (o Anticristo), travando assim “o seu aniquilamento pela força da boca do sopro do Senhor”. Aparentemente, segundo o italiano Massimo Cacciari, presume-se que os poderes que exerceriam esta função seriam o do Estado (na variação imperial ou “globalista”) e o da Igreja. Não é o que o arcebispo Viganò pensa: para ele, Donald Trump seria o único “poder que impediria” a destruição inevitável. Mais QAnon, impossível.

5.

Tanto o pensamento de Antonio Donato como o do QAnon são tipos de imaginação apocalíptica que se caracterizam, em sua essência, por uma atitude a qual, apesar de tomar emprestada o seu nome do famoso livro que fecha a Bíblia, é na verdade uma perversão dos seus ensinamentos. Neste caso, o seu seguidor fica obcecado com a proximidade indefinida do grande momento apocalíptico e isso o induz a ter um comportamento exaltado e extremo, que vai do ascetismo radical à generosidade extravagante, passando por atos violentos e a adoção de teorias conspiratórias. Trata-se de um pêndulo psicológico observado constantemente nas estruturas sociais dominadas por essa expectativa. De uma maneira ou outra, todas são profundamente antiautoritárias (ao menos a respeito das velhas autoridades). Geralmente começam como igualitárias radicais (por exemplo, contra a propriedade privada e a favor da propriedade coletiva) e acabam por se tornarem, conforme as circunstâncias, em sociedades ainda mais autoritárias e ainda mais desiguais, principalmente entre os seus membros. O que alimenta esse imaginário é a promessa do milênio que enfim restaurará a humanidade a uma perfeição igual a Deus e que existia antes da Queda de Adão e Eva. Essa salvação, entretanto, não é universal. Em sua essência, ela é um sentimento tipicamente elitista, reservado apenas para alguns sábios — “os poucos felizes”.

Desse modo, no Brasil, enquanto a imprensa se preocupava mais com as declarações bombásticas de Olavo de Carvalho, Antonio Donato agia na surdina. Não há nenhuma novidade nisso para quem já conhecia tanto o seu método como as características da imaginação apocalíptica. Um jornalista envolvido nos meios católicos me explicou que essa é a verdadeira natureza da tal “filosofia perene” defendida pelo professor. As referências a Platão, Aristóteles e Santo Tomás de Aquino são apenas disfarces para uma iniciação espiritual a qual somente os integrantes de um “núcleo duro”, escolhidos a dedo pelo professor, podem ser considerados como aptos a entender o seu verdadeiro ensinamento.

“É fundamental entender que o movimento ao redor do Donato é de caráter místico”, me disse essa fonte. “Ou seja: para os alunos, ele é um santo, e por isso deve ser idolatrado. Eles acreditam de verdade que estão com um sujeito que fala com os anjos e, logo, a sua estratégia está sempre certa, uma vez que ele conta com a ajuda divina”. Sem ter isso em mente, fica difícil compreender como ocorre a sua ação política no governo Bolsonaro. “De modo semelhante ao René Guénon, o Donato se vê anunciador de uma profecia, que ninguém sabe muito bem qual é porque ele reserva essa informação para os seus alunos mais próximos. Assim, é importante perceber que, em suas aulas, ele provoca a desconfiança de tudo sobre qualquer espécie de autoridade. Todos estão mentindo, segundo ele. Portanto, na cabeça dos discípulos, o único que fala a verdade a respeito do que acontece no mundo só pode ser o próprio Donato”.

E continua: “O Donato propõe uma imagem de uma pessoa ideal, do intelectual perfeito, mas com a diferença de que esse aluno já se vê como esse tipo de sujeito idealizado na vida real. Ocorre que, como estudar dá muito trabalho, o coitado fica sem saber o que fazer, e começa a surtar. O Donato fala que ele precisa ler quinhentas páginas por semana ou então acompanhar documentos ‘reservados’ sobre teorias da conspiração. Porém, ninguém em sã consciência consegue acompanhar esse ritmo. Então, passam a se sentir burros diante de tamanha sabedoria. E o que Donato faz? Ele afirma que, como o perigo da ‘cultura da morte’ é iminente, e não há tempo para estudar e compreender, a solução é agir. E assim ele pede a esses mesmos alunos que façam tarefas impossíveis, mas como elas foram ditas por alguém que conversa com os anjos, o melhor é cumpri-las sob pena de cometerem omissões ou pecados graves contra a própria alma.”

Alguns relatos de apelo místico afirmam que a profecia da qual Antonio Donato seria o seu maior representante é a que envolve justamente Dom Bosco, o santo católico italiano que viveu no século 19, foi fundador da ordem salesiana e homenageado no país como o padroeiro de Brasília. Heloísa Gusmão explica que soube da seguinte conversa, na qual Donato afirma que “Dom Bosco fez uma profecia que haveria um ressurgimento espiritual fora do comum aqui no Brasil, inconcebível. Ele não disse a data, mas disse a data antes da qual não aconteceria. Disse que primeiro seria fundada a cidade de Brasília, e surgiria um lago e depois disso seria encontrada uma grande quantidade de minério e depois disso, não se sabe quando, surgiria uma renovação espiritual fora do comum naquela terra, que a gente não sabe se é Brasília, se é o Brasil, se é a América Latina.”. Ao ser questionado se ele teria sido “profetizado” pelo sacerdote italiano, Donato negou isso com risos, sem, contudo, se esquecer de afirmar o seguinte: “Não sou eu, porque toda esta renovação que a gente está vendo no Brasil não é a gente. Eu diria que o Espírito Santo está fazendo Seu papel e cada uma dessas peças faz parte de um quebra-cabeças que não é a gente que tá fazendo. E isso é motivo de esperança”.

Neste tipo de imaginário apocalíptico que ocorre no Brasil, a solução prática parece ser a existência de um “líder providencial”, personificado na figura de Jair Bolsonaro, em que o misticismo se transforma em distopia. Como bem me explicou o jornalista católico: “Para eles, o comunismo está prestes a invadir o país, junto com o gayzismo, e todos os cristãos estarão prestes a irem para a cadeia. Portanto, o Donato e seus discípulos precisam apoiar o Bolsonaro, mesmo com todos os defeitos dele, justamente para evitarem a catástrofe. Enquanto isso, o professor educa uma nova geração que irá combater a esquerda e todos os seus representantes considerados satânicos, como os globalistas e os abortistas”.

6.

A imaginação apocalíptica representada pela “filosofia perene” de Antonio Donato também nos ajuda a entender uma pergunta simples, mas essencial, a respeito das ideias que rondam o Ministério dos Direitos Humanos: como um gabinete, cuja líder é uma pastora evangélica, permite que seus cargos de confiança sejam preenchidos por católicos? Não haveria aí uma contradição, uma vez que é notória a rivalidade entre esses grupos religiosos?

Na verdade, a resposta para essa questão está na ponte eclesiástica construída pela Igreja Católica nos últimos anos para justamente conversar com os evangélicos e também para diminuir a queda no número dos fiéis: a Renovação Carismática Católica (RCC), surgida na década de 1960. Seus membros são apelidados de “carismáticos” porque, a grosso modo, acreditam que são veículos do Espírito Santo na defesa do cristianismo. Não por acaso, graças a esta crença, Antonio Donato conseguiu dar as suas aulas em várias reuniões do movimento, apelando sobretudo para o lado místico, auxiliado pela profecia de Dom Bosco. Na carta pública à Montfort, Heloísa Gusmão conta, em detalhes, como foi um desses encontros onde Donato estava presente, ocorrido no ano de 2018 em um famoso local para os membros da RCC: a Comunidade Vida de Aliança da Misericórdia, estabelecida no bairro paulistano da Bela Vista.

“Havia em torno de 150 pessoas”, ela narra, “de diversas partes do Brasil, destacando-se alguns padres, uma freira, alguns membros do Centro de Estudos Dom Bosco, professores de Teologia, uma protestante que há anos frequenta as aulas do Donato e não se converte (apesar da fama de santidade dele...) e representantes de vários núcleos criados desde os anos 90 pelo Donato, chamados de Anistia Pela Vida, principais ativistas da causa pró-­vida no Brasil”.

Donato iria ministrar uma aula dividida em duas partes, “uma pela manhã e outra à tarde”. Gusmão acreditou que “tudo o que o Donato ensinasse fosse gravado e passado entre os alunos, mas qual foi minha surpresa ao descobrir que toda a primeira parte era apenas ad intra e ele pediu repetidas vezes que não se falasse para ninguém de fora o que fosse ‘só para nós’.”

Depois, continua o relato, ele “passou a palavra a um militante pró-­vida e este começou a exortar que todas as pessoas envolvidas com a Anistia não deveriam criticar nenhum político que se apresentasse pró-­vida, por omisso que parecesse, pois só os militantes ali presentes é que sabem, nos bastidores, se os políticos estão fazendo algo, mesmo que por baixo dos panos, para ajudar as pautas deles (as da nova direita). Donato até tentou consertar, acrescentando que não se trata de não denunciar um político pró-­vida que estivesse envolvido em corrupção, roubo, tráfico de drogas, etc, mas sim de se calar caso ele se mostrar inativo em relação às reivindicações da causa pró­-vida: independente de ser petista, independente de ser liberal, independente de ser tudo o que a Igreja Católica condena num político”. Gusmão observou que, apesar de não terem sido “citados os nomes dos políticos que negociam com a Anistia (ou melhor, que compram o silêncio destes católicos apenas por se dizerem pró-­vida)”, ela desconfiou que “as críticas ao Bolsonaro [então candidato à presidência], depois deste conselho”, diminuiriam bastante.

Assim, com a queda de prestígio do bolsolavismo por causa das trapalhadas midiáticas de Olavo de Carvalho e seus asseclas - além da derrota brutal sofrida nos pleitos municipais em novembro de 2020 e do acordo tácito entre o Supremo Tribunal Federal e o chamado “Centrão” do Congresso para manter sua família fora das investigações policiais -, não seria um exagero presumir que o presidente Jair Bolsonaro se apoiará na pauta moral do Ministério dos Direitos Humanos para permanecer fiel à sua agenda de costumes e manter o encanto desse público religioso para a sua reeleição na campanha presidencial de 2022. O carisma de Damares Alves une os olavistas remanescentes, a elite católica, os membros da bancada evangélica no Parlamento e, sobretudo, os jovens cristãos que têm quase um carinho maternal por ela – como provam as 143 mil pessoas que a assistiram e a aplaudiram no estádio do Morumbi, durante o discurso proferido em fevereiro do ano passado, no evento evangélico The Send 2020, dedicado à juventude religiosa. 

Este raciocínio pragmático é comprovado se lermos com atenção os dados compilados pelo pesquisador Franco Iacomini, no seu livreto Evangélicos No Brasil, lançado em formato e-book pelo jornal Gazeta do Povo. Ele comenta, a partir da pesquisa do Instituto Datafolha publicada em 25 de outubro de 2018 – portanto três dias antes da votação do segundo turno presidencial – que os números apresentados eram muito próximos daqueles verificados nas urnas: “56% dos votos válidos para Bolsonaro (foram 55,13% no resultado oficial), 44% para Fernando Haddad, do PT (44,87%, segundo o Tribunal Superior Eleitoral). Em extrapolação levando em conta os números totais da população brasileira, José Eustáquio Diniz Alvez conclui que os evangélicos deram 21,7 milhões de votos a Bolsonaro e 9,7 milhões a Haddad. A diferença entre eles é de 11,9 milhões de votos – mais do que os 10,7 milhões que deram vantagem ao candidato vencedor no resultado final. Esse cálculo, aliado à percepção de que os resultados foram bem mais apertados em outros grupos religiosos, aponta que os evangélicos deram uma vantagem decisiva ao candidato do PSL.”

7.

Isso é apenas mais uma evidência de como o imaginário apocalíptico, guiado por Antonio Donato no Brasil, será uma forte tendência política nos próximos anos, independentemente de quem estará no Palácio do Planalto. Um exemplo é o que aconteceu em 22 de outubro de 2020, quando o governo Bolsonaro apoiou e assinou, em Washington (DC), a Declaração do Consenso de Genebra, junto com os Estados Unidos [então na administração Trump], Egito, Hungria, Indonésia e Uganda. Segundo o texto, o acordo se apoia em quatro pilares: melhorar a saúde das mulheres; preservar a vida humana; fortalecer a família como a unidade fundamental da sociedade; e proteger a soberania de cada nação diante da política global. Ao participar da cerimônia virtual, em Brasília, a ministra Damares Alves disse que “celebramos que o texto da declaração ora assinada consagre a inexistência de um direito à interrupção voluntária da gravidez, como às vezes se afirmam em determinados fóruns internacionais.” O assunto era claro – o aborto – e o alvo era a Organização das Nações Unidas (ONU).

Não é crime nenhum lutar contra a cultura da morte. Em uma democracia liberal, como a que ainda vivemos, pode-se argumentar que se trata de um lado tão válido quanto os defensores da “liberdade de escolha do corpo feminino” ou das benesses da governança globalista. Porém, ao reconhecer a influência de grupos secretos como o QAnon e o de Antonio Donato nas respectivas políticas dos seus países, é necessário admitir que estamos diante de um falso problema.

A questão não é ser a favor ou contra, por exemplo, o aborto ou a ideologia de gênero. O ponto aqui é saber se estes assuntos delicados não estão sendo usados para manter a permanência das elites que mal se preocupam com o que realmente acontece com o cidadão comum – e com as suas crianças. No exemplo específico do Brasil, o historiador José Murilo de Carvalho comenta que há uma antiga tradição intelectual de achar que o país nunca teve uma cidadania de fato. Ele cita o famoso aforismo do jornalista Aristides Lobo, na época da proclamação da República, no qual o povo, supostamente o protagonista de acordo com o ideário republicano, “assistira a tudo bestializado, sem compreender o que se passava”.

Essa contradição permanece até hoje. De eleição em eleição, a democracia liberal brasileira revela ser cada vez mais dependente de uma troca de elites, ora de esquerda, ora de direita, e todas elas estruturadas em função de uma imaginação apocalíptica constantemente sufocada pela mesma intelligentsia que insiste viver em uma ficção secular. Portanto, nesta luta obsessiva contra a cultura da morte, todos os envolvidos nela caíram no perigo de manipular os anseios de uma população que pretende viver na verdade, ao oferecerem algo pior do que a mentira: a meia-verdade. Como bem explicou outro historiador, o inglês John Lukacs, “Santo Tomás de Aquino disse que a meia verdade pode ser mais maligna que uma mentira. Uma meia-verdade não é equivalente a 50% da verdade. Na verdade, trata-se de 100% de uma verdade misturada e subordinada a 100% de uma mentira, resultando em uma corrupção da verdade especialmente perigosa.”

Com isto em mente, é preciso recuperar o que o político Honoré Mirabeau afirmou a respeito de Robespierre, logo depois que o ouviu falar pela primeira vez, no auge da Revolução Francesa: “É um homem muito perigoso, pois acredita em tudo o que diz”. No caso brasileiro, o mesmo pode se aplicar a todos que desejam impor no país, sem amarras, a sua imaginação apocalíptica.

*A reportagem gostaria de agradecer a ajuda do jornalista Marlos Ápyus.

[1] As três fontes procuradas pela reportagem (que deveria ter sido publicada pela revista Piauí) para confirmar os fatos aqui descritos – a intelectual católica, um ex-aluno de Antonio Donato e um jornalista envolvido nos meios religiosos – só aceitaram ter suas declarações publicadas neste texto sob a condição de permanecerem em anonimato. Sem se conhecerem entre si, foram unânimes em temer represálias dos alunos de Donato, além de, segundo uma delas, me afirmar que “pretendia ficar longe dessa loucura porque era coisa do Diabo”.

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Resenhas de livros de José Augusto Lindgren Alves - Paulo Roberto de Almeida



 Abaixo, algumas das mini-resenhas dos livros de José Augusto Lindgren Alves, que preparei para o Boletim da ADB.


Tive a honra de recebê-lo em 2018 no IPRI, para uma palestra por ocasião do lançamento da segunda edição de seu grande livro sobre a Década das Conferências: 

 José Augusto Lindgren Alves: 

Os direitos humanos na pós-modernidade 

(São Paulo: Perspectiva, 2005, 254 p.).


 Depois de Os Direitos Humanos como Tema Global, publicado em 1994 e reeditado em 2003, Lindgren Alves comparece com sua continuidade natural, neste livro que resgata dezenas de ensaios escritos e publicados ao longo de sete anos. Trata-se, não apenas de direitos humanos, estrito senso, mas também de problemas como o da discriminação racial e o do “multiculturalismo”, no qual são evidenciadas as diferenças entre as situações nos EUA e no Brasil. O capítulo conclusivo, razoavelmente pessimista, indica que os valores universais associados aos direitos humanos vêm sendo atacados disfarçadamente por vários tipos de violadores de diversas tradições, sob argumentos de tipo “culturalista” ou supostamente para evitar sua “politização” nos órgãos da ONU. Mais patética é a recusa pelos EUA do Tribunal Penal Internacional, o que pode comprometer gravemente o seu funcionamento. Será que a história está andando para trás?

 


José Augusto Lindgren Alves: 

Viagens no Multiculturalismo – O comitê para a eliminação da discriminação racial, das Nações Unidas, e seu funcionamento 

(Brasília: Funag, 2010, 256 p.) 


Uma larga experiência com o tratamento multilateral dos direitos humanos autoriza o autor a tratar com notável maestria do CERD. O discurso multiculturalista é uma criação do Ocidente, pelo menos enquanto ideologia, diz Lindgren, que não deixa de refletir sobre os problemas suscitados pela passagem dos direitos humanos tradicionais, isto é, individuais, aos direitos coletivos, de minorias. O exagero das propostas pode levar a novas formas de segregacionismo e de etnocentrismo, ou seja, ao “racismo” de todos. Uma boa visão histórica e argumentos de bom-senso podem revelar como organismos bem-intencionados, como o CERD, podem resvalar para situações absurdas. O autor admite a validade de ações afirmativas, sem um viés racial mais explícito, o que o coloca do lado dos multiculturalistas moderados.

 


José A. Lindgren Alves

Os novos Bálcãs

(Brasília: Funag, 2013, 161 p.; ISBN 978-85-7631-478-3; Coleção Em Poucas Palavras)

 

         


   Os “novos Bálcãs” talvez se pareçam um pouco com os “velhos”, no sentido em que os muitos povos eslavos – católicos, ortodoxos, ou islamizados – voltaram a se dividir em meio a conflitos por vezes sanguinários. Depois de algumas décadas de socialismo, quando eles estavam “unidos” pela razão ou pela força, eles estão prontos para receber novamente o Orient Express, que ia das terras cristãs ao império dos otomanos justamente atravessando essas terras complicadas. Lindgren Alves esclarece como a fragmentação étnica reconstruiu a balcanização, com alguns massacres no caminho. Um alerta de como a Europa também pode recriar os velhos demônios da guerra e da violência étnica. O chauvinismo está na origem dessa utopia estilhaçada. Uma síntese que se apoia na melhor bibliografia e num conhecimento direto da região.

 

Lindgren Alves também possui estes livros, publicados pelo IPRI, pela Funag, ou por editoras comerciais: 


Cadernos do IPRI - Número 10 . 1994 . O sistema internacional de proteção dos direitos humanos e o Brasil (memória da Conferência Mundial de Direitos Humanos)

Descrição: A realização da Conferência Mundial de Direitos Humanos em Viena, o papel proeminente do Brasil naquele evento e a persistência de graves e frequentes violações desses direitos em nossa sociedade exigem uma reflexão aprofundada sobre o tema, que leve à adoção de medidas adequadas pelas autoridades competentes. Tais medidas, imprescindíveis ante os anseios do próprio povo brasileiro, são hoje um imperativo também pela ótica internacional. 


Detalhes: 
Autor(a)Antônio Augusto Cançado Trindade | José Augusto Lindgren Alves
EditoraFUNAG - Fundação Alexandre de Gusmão
AssuntoDireitos Humanos
Ano1994

Disponível neste link: https://funag.gov.br/biblioteca-nova/produto/1-1037-cadernos_do_ipri_numero_10_1994_o_sistema_internacional_de_protecao_dos_direitos_humanos_e_o_brasil_memoria_da_conferencia_mundial_de_direitos_humanos_








José Augusto Lindgren Alves, In Memoriam - Gilberto Vergne Saboia


 Linda homenagem do embaixador Gilberto Saboia ao nosso colega recentemente falecido, autor de muitos livros de direitos humanos e diplomata especializado nessa área, como destacado nesta digna mensagem de adeus a um grande diplomata, amigo sincero. Escrevi algumas resenhas de seus livros, que transcreverei em próximas postagens.

Paulo Roberto de Almeida

Mensagem do embaixador Gilberto Saboia na lista da Associação dos Diplomatas Brasileiros (ADB), em 27/05/2022:

Queridos colegas e amigos,
Com grande pesar recebi a notícia do falecimento do grande amigo e companheiro de jornadas profissionais, Embaixador José Augusto Lindgren Alves. Ele exerceu muitos postos em sua carreira diplomática, sempre com sucesso e brilho. Mas foi no âmbito da diplomacia multilateral onde se notabilizou e, mais particularmente, nos temas de direitos humanos e questões sociais. José Augusto foi um dos primeiros chefes da Divisão de Direitos Humanos e o primeiro chefe do Departamento de Direitos Humanos e Temas Sociais, onde ficou vários anos, durante o período em que se sucederam as grandes conferências internacionais sobre direitos humanos e temas sociais que marcaram a década dos anos 90. 
Foi o condutor, no Itamaraty, da preparação dessas conferências e se esmerou na articulação com os demais órgãos governamentais brasileiros interessados, sem excluir os poderes legislativo e judiciário e o ministério público. Estávamos, convém lembrar, num período de entusiasmo com o exercício das liberdades de associação e de promoção de uma democracia mais inclusiva, oriundos da Constituição de 1988. Espero que esta chama volte a brilhar . Seu dom de comunicação facilitou o diálogo com a sociedade civil que passou a se incorporar na preparação das conferências . 
Nossa amizade e proximidade se reforçaram durante a preparação e realização da Conferência Mundial de Direitos Humanos de 1993, em Viena. Nessa conferência coube-me o delicado papel de presidir o Comitê de Redação, órgão ao qual incumbia negociar a declaração e o plano de ação, longos textos que estavam eivados de graves divergências. Busquei sem sucesso atrair algum delegado de outro pais para dividir o encargo dirigindo um grupo para avançar o exame do plano de ação. Finalmente o José Augusto assumiu o papel de coordenador do Plano de Ação, com o que deu uma contribuição inestimável a que fosse alcançada a aprovação consensual dos documentos, garantindo o êxito da Conferência.
José Augusto exerceu também cargos eletivos em órgãos de peritos da ONU como o Comitê sobre Eliminação da Discriminação Racial (CERD) . 
Outro capítulo importante da sua trajetória foi o extenso número de obras que publicou sobre os temas de sua especialidade e sua disponibilidade para dar palestras e realizar seminário com o ânimo de compartilhar seus conhecimentos e sua experiência. Associo-me ao tributo que, merecidamente lhe dedicou FUNAG. 
José Augusto era de fácil comunicação e tinha uma alegria contagiante… 
Meus sentidos pêsames a sua esposa Edna e a sua filha Juliana .
Sinceramente,
Gilberto Saboia 








quinta-feira, 26 de maio de 2022

Oliveira Vianna, O Idealismo da Constituição (1924)

 Uma frase de ontem, ainda válida:

“Não há nenhuma classe entre nós realmente organizada, exceto a classe armada.”

E este trecho sobre o papel do presidente:

“Cada presidente da República improvisa um programa administrativo. Diremos melhor: cada presidente da República é forçado a improvisar um programa administrativo. E isto porque todas as vezes que ascende ao poder um novo presidente, a Nação inteira fica atenta, toda ouvidos e toda olhos, num grande silêncio, à espera que ele diga o que ela, a Nação, precisa para a sua salvação e prosperidade.”

Oliveira Viana, “O Idealismo da Constituição [de 1891]” (in: Vicente Licínio Cardoso, À Margem da História da República, 1924; nova edição em dois volumes: Brasília: Câmara dos Deputados-Editora da UnB, 1979, p. 114), prelúdio ao livro do mesmo nome, publicado em 1927, reeditado em 1938, com a análise agregada das constituições de 1934 e 1937.

Oliveira Vianna absolutamente atual.

Gilberto Amado nas páginas de Vicente Licinio Cardoso: permanência do pensamento

Neste livro, publicado originalmente em 1924 — aqui na edição de 1979, da CD e da Editora da UnB — figura um texto de Gilberto Amado, “As instituições políticas e o meio social no Brasil”, que começa com uma frase que deveria interessar nosso maior historiador da escravidão, Laurentino Gomes:

“Atentai, Senhores, aí está esboçada toda a história do Brasil no século XIX: Senhores e escravos.” (p. 45) Eu apenas corrigiria: não é só no século XIX, mas em toda a história do Brasil, da conquista portuguesa aos nossos dias. Gilberto Amado trata, em sua contribuição ao livro de Vicente Licínio Cardoso, não só do tráfico, como da escravidão, de uma forma geral, e também da ausência de escolas no imenso território brasileiro. 

Gilberto Amado se perguntava, ao final, se “diante do estado social do Brasil, é lícito acreditar que qualquer mudança nas instituições possa influir decisivamente para a felicidade do país? É de crer que qualquer modificação nos textos da Constituição [de 1891] tenha efeito sobre um meio nas condições em que se acha o nosso?” (p. 58)

Ele termina por um julgamento que, 98 anos depois, ainda parece válido para os nossos tempos;

“A ação política não pode deixar de exercer-se senão através de homens bem intencionados que possam suprir pela própria energia construtiva, atividade e patriotismo — no sentido do desinteresse pessoal e da capacidade de resistência às agitações improfícuas — as insuficiências de uma população ainda incapaz de exercer os seus direitos políticos e cumprir, como responsável pelos próprios destinos, os deveres cívicos que lhe incumbem.” (p. 59)

Cem anos depois desse diagnóstico desanimador, parece que ele se mantém intacto na perenidade de suas constatações. Triste constatar isso!

Paulo Roberto de Almeida 

Brasília, 26/05/2022

quarta-feira, 25 de maio de 2022

‘ As áreas de influência não existem mais', diz embaixador da União Europeia no Brasil - André Duchiade (O Globo)

'As áreas de influência não existem mais', diz embaixador da União Europeia no Brasil

Em entrevista ao Globo, Ignacio Ybáñez reitera que desmatamento impede avanço de acordo comercial, pede para Brasil se somar às sanções e critica declarações de Lula

Por André Duchiade — Rio de Janeiro
O Globo, 25/05/2022 04h30  Atualizado há uma hora

Embaixador da União Europeia (UE) no Brasil, o espanhol Ignacio Ybáñez é um diplomata franco. Em entrevista ao GLOBO no Rio, onde esteve para um seminário na PUC-Rio na semana passada, ele reconhecer incongruências na política imigratória europeia e faz análises sobre a política externa russa com a experiência de quem foi embaixador em Moscou quando integrava o corpo diplomático da Espanha. Assim como o fez no começo da guerra, Ybáñez também pede para o Brasil se somar às sanções contra a Rússia — segundo ele, o caminho mais rápido para restabelecer a normalidade internacional. Também afirma que o desmatamento impede o avanço do Acordo Comercial entre Mercosul e UE, critica a recente declaração do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva equiparando os líderes de Rússia e Ucrânia e assegura a confiança europeia no sistema de votação eletrônica brasileiro.

A Comissão Europeia deu sinais de que a Ucrânia poderia ser aceita na União Europeia por meio de um processo de admissão rápido. No entanto, vários países, incluindo Alemanha e França, já deixaram claro que isso não irá acontecer. Por que a UE alimentou estas esperanças?
Para ser membro da UE é necessário cumprir requisitos bem importantes: ser europeu, mas também ser uma democracia onde o Estado de direito funcione, onde haja um sistema Judiciário que funcione perfeitamente, onde haja mecanismos para o controle da corrupção. O processo nunca é de um dia para outro, é realmente necessário cumprir uma longa série de avaliações e ajustar políticas. O processo é conduzido pela Comissão Europeia, mas os Estados-membros sempre têm a palavra. O importante é quando a UE reconhece um país como candidato, e isso é o que pode acontecer no caso da Ucrânia. Ninguém falou nunca que a adesão seria repentina.

E como a Comissão Europeia vê a admissão ucraniana?
O importante para nós é, em primeiro lugar, combater a ideia de que existem áreas de influência, e que portanto há limitações de quem quer que pode ser membro. Essas áreas de influência já não existem mais. Existia no tempo da União Soviética e dos Estados Unidos; nós, como europeus, não gostávamos dessa situação, e agora gostamos ainda menos. Os países têm a liberdade de escolher em qual grupo querem entrar e se associar. O fato de que a sociedade da Ucrânia demonstrar uma vontade determinada para aderir à UE é muito gratificante e positivo, por vir de um país que tinha um sistema bem diferente, tendo feito parte da União Soviética. É gratificante que queiram fazer uma transformação tão grande.

Como as declarações do ex-presidente Lula à revista Time equiparando Zelensky a Putin foram recebidas em Bruxelas e em outras capitais europeias?
Qualquer declaração que põe no mesmo patamar o país agressor e o país agredido não é aceitável para nós. No âmbito privado, quando há uma pessoa que agride outra, as condições entre elas são diferentes. No caso dos países acontece a mesma coisa. Nós não compreendemos, portanto. Podemos compreender que haja uma vontade, por países não europeus, de tentar encontrar soluções para uma crise que logicamente afeta o mundo inteiro. Essa vontade que o presidente Lula expressou de tentar encontrar uma solução é também a nossa. Mas é importante atribuir a responsabilidade correta a cada ator, e o país que precisa tomar uma ação para restituir a legalidade internacional é a Rússia. Se a Rússia mudar de comportamento e parar sua agressão, todos nós, europeus, e seguramente também o Brasil, estaremos preparados para nos sentar e discutir como responder às preocupações, inclusive algumas que podem ser legítimas, da Rússia.

Qual seria uma política brasileira, em termos concretos, que a União Europeia gostaria de ver em relação à Ucrânia?
Algumas delas o Brasil já faz. Para nós é muito importante manter a unidade da comunidade internacional na condenação à agressão da Rússia, e vimos isso nas vezes em que tivemos uma votação no Conselho de Segurança, com o Brasil votando nessa direção. Avaliamos muito positivamente o Brasil no Conselho de Segurança. Na Assembleia Geral, também os votos do Brasil foram positivos, foram sempre na mesma direção. Somente em alguns organismos não concordamos com a posição do Brasil, como o voto sobre a expulsão da Rússia do Conselho de Direitos Humanos, no qual o Brasil se absteve.

E no âmbito das sanções?
O Brasil não acredita nas sanções, não somente nesta questão, mas em outras. Queremos convencê-lo de que as sanções são o caminho mais curto para chegar ao ponto aonde queremos chegar. Queremos restabelecer a legalidade internacional, e pensamos que, quanto maior a pressão sobre a Rússia agora, mais probabilidade temos de que o conflito seja curto. Ao contrário, se não exercemos a pressão, o conflito pode durar anos e o efeito sobre a Ucrânia vai ser devastador, e também sobre o conjunto da comunidade internacional, porque há muitíssimas coisas que precisam funcionar bem, como as Nações Unidas e o G20, que não vão poder cumprir a sua função.

A recepção na UE aos refugiados que saem da Ucrânia tem sido muito diferente do que vimos em outras crises, como por exemplo na crise síria em 2015. Essa diferença não prejudica a imagem europeia?
O tema dos refugiados e da migração é sempre muito delicado. É fácil fazer juízos de valor, mas difícil cumprir os valores que nos promovem. Há um fator de integração, que é importante, e também, eu diria, da percepção da opinião pública em cada um dos momentos. É normal haver uma maior compreensão de um conflito em um país vizinho do que de algo muito distante.A crise ucraniana é muito mais uma crise europeia do que a crise na Síria, por exemplo. Isso não é bom do ponto de vista moral, mas é compreensível do ponto de vista humano. Mas a solidariedade europeia à população da Síria foi importante, a UE continua a ser uma das regiões que recebeu o maior número de pessoas refugiadas de lá. Podemos fazer mais, é verdade, mas temos que ter ciência de que chegadas massivas de refugiados acarretam em problemas de integração E, logicamente, populações culturalmente mais próximas são mais fáceis de integrar. Por exemplo, no caso da Espanha, a migração que chega dos países da América Latina é muito mais facilmente integrável, porque falam o mesmo idioma e tem uma cultura muito mais próxima do que uma pessoa vinda de um país africano com outro idioma ou outros costumes.

Moscou se recusa a falar com Bruxelas, sempre preferindo conversar diretamente com os Estados-membros. Em fevereiro de 2021, o chanceler russo, Sergei Lavrov, desrepeitou Josep Borrell, o principal diplomata da UE, em uma visita à Rússia. Quais são os limites à atuação da UE nesta crise?
Fui embaixador da Espanha na Rússia, e conheço essas ações. Elas são usadas pelo ministro Lavrov com o objetivo de criar uma divisão dentro da União Europeia. Ao preferir falar com os Estados do que com a União, ele acredita que divide o grupo. No caso da guerra, a Rússia errou esse cálculo. Erraram quando estavam convencidos de que a ofensiva levaria dias ou no máximo semanas, e seriam recebidos como libertadores em Kiev. Mas também erraram quando estavam convencidos de que a UE ia se dividir, que cada um dos países atuaria por conta própria. A Rússia recebeu a melhor lição que um político pode receber, a de que as suas teorias não são reais. A UE demonstrou uma unidade enorme. Agora todos compreendem os desafios que muitos países já falavam antes. Em 2014, o Ministro das Relações Exteriores da Polônia falava de uma possível invasão a Kiev, e os outros ministros pensavam ser um exagero. A unidade que estamos demonstrando, entre UE, EUA, Canadá, Suíça, e também os países da América Latina condenando a agressão da Rússia é a melhor demonstração de que a multilateralidade também serve para defender valores.

Nas últimas semanas vimos uma mudança de objetivo estratégico de Washington. Agora há explicitamente a estratégia de enfraquecer a Rússia. A UE corrobora essa meta?
A UE tem a plena convicção de que é necessário que o custo desta agressão seja o mais alto possível, adotado o mais rapidamente possível. Estamos convencidos que se deixarmos a situação sem uma reação internacional, a Rússia vai continuar com essa política. Hoje pode anexar uma parte da Ucrânia, mas amanhã pode ir além. O que queremos é que nossas sanções mudem o comportamento da Rússia. São medidas que queremos que sejam focadas, para que não haja muito dano à população russa, e sim para a liderança. Estamos tentando focar em setores particulares, como a energia, ou então reduzir a capacidade da Rússia de financiar a guerra, e também limitar as operações dos seus bancos. Todas as questões que achamos que podem ser tomadas, e se for por um número maior de países, melhor.

Na semana passada, os EUA removeram algumas sanções relacionadas à Venezuela. Podemos esperar alguma aproximação da União Europeia?
Sempre mantivemos a convicção de que a solução para a situação da Venezuela só é possível a partir dos próprios venezuelanos, não chegando de fora. Ou seja, o regime e a oposição precisam negociar uma negociação e trabalhar juntos. Nenhuma solução sustentável vai chegar de fora. Essa era a intenção do Grupo de Contato Internacional no México, e o diálogo parou por conta do regime. Todos os passos para a redemocratização são bem vindos e estamos abertos para a discussão, mas ela precisa incluir a oposição. Ouvi falar muito sobre essas conversas entre o regime e os americanos. Quando pergunto aos americanos, respondem que o objetivo continua a ser o apoio ao restabelecimento da democracia e a volta do regime para a mesa de negociação. Então, se for isso, continuamos no mesmo caminho. Acreditamos que o Brasil tem um papel muito relevante a desempenhar nesse diálogo. É verdade que o governo Bolsonaro decidiu cortar vínculos e tirar a embaixada, mas avaliamos que o Brasil tem um papel a cumprir.

Como o senhor explica que o acordo entre União Europeia e Mercosul não tenha andado até agora?
O acordo é a nossa aposta para o futuro. Acreditamos 100% nele, tanto que não queremos mudar nenhuma vírgula, e não queremos reabrir as negociações. Mas é verdade que há uma percepção na Europa, no Parlamento Europeu e em muitos Estados-membros, de que é difícil finalizar e assinar um acordo se uma das partes começa a ir contra os princípios do acordo antes mesmo de sua entrada em vigor. Desse ponto de vista, é importante que o Brasil cumpra seu compromisso com o Acordo de Paris. Os números do desmatamento impedem o Brasil de cumpri-lo. Há uma demanda da opinião pública europeia, e também de vários governos, de que precisamos ter garantias maiores por parte do Brasil. A participação do Brasil na COP-26, com o compromisso de zerar o desmatamento ilegal até 2028, foi em uma boa direção. O que faltam são os resultados. É muito difícil dizer que o Brasil acredita no Acordo de Paris se todos os meses os números do desmatamento aumentarem. É verdade que a guerra torna ainda mais importante fechar acordos comercial, mas não os faremos em detrimento dos valores.

Recentemente, o TSE desistiu de convocar observadores eleitorais da UE para as eleições de outubro. Como a UE vê essa desistência?
É o Brasil que deve pedir os observadores. Nós estamos à espera. Tivemos primeiro uma petição do TSE, e demonstramos vontade de aceitar, mas em seguida o TSE, depois de conversas com o governo, decidiu retirá-la. A situação europeia é que já não existe um pedido brasileiro de observação. Nós não entramos no debate interno. Vamos acompanhar o processo eleitoral, sabemos que o Brasil é uma democracia que funciona bem, que tem um sistema de voto eletrônico que tem funcionado muito bem. Acreditamos nesse sistema. Desejamos que seja um processo aberto, transparente, no qual se respeitem os resultados.

https://oglobo.globo.com/mundo/noticia/2022/05/as-areas-de-influencia-nao-existem-mais-diz-embaixador-da-uniao-europeia-no-brasil.ghtml

terça-feira, 24 de maio de 2022

Bolivia reduz fornecimento de gás ao Brasil para vender mais caro à Argentina

 Bolivia está tripudiando sobre os contratos de fornecimento de gás à Petrobras para tentar vender mais caro.

Petrobras sobre notícias divulgadas na imprensa

 

Rio de Janeiro, 24 de maio de 2022 - A Petróleo Brasileiro S.A. – Petrobras esclarece notícias veiculadas na mídia sobre o contrato de compra de gás natural celebrado entre a Petrobras e a Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos (YPFB).

 

Em 1996, a Petrobras celebrou com a YPFB contrato de compra e venda de gás natural de longo prazo, com volume contratado de 30 MM m³/dia.

 

Em 2019, o Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) estabeleceu diretrizes e aperfeiçoamentos de políticas energéticas voltadas à promoção da livre concorrência no mercado de gás natural, por meio da Resolução CNPE nº 16, de 24/06/2019, a qual foi substituída recentemente pela Resolução CNPE nº 3, de 07/04/2022. A resolução recomenda a criação de condições para facilitar a participação de empresas privadas na oferta de gás natural importado, em especial o gás boliviano.

 

Em consonância com essas diretrizes, a Petrobras celebrou Termo de Compromisso de Cessação de Prática (TCC) com o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) em julho de 2019, com anuência da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), prevendo um conjunto de compromissos visando à abertura do mercado de gás natural.

 

Conforme divulgado ao mercado em 06/03/2020, em aderência com o seu compromisso de contribuir com o processo de abertura do mercado brasileiro de gás, estimulando sua concorrência ao incentivar a entrada de novos agentes, a Petrobras celebrou aditivo com a YPFB reduzindo os volumes contratados de 30 MM m³/dia para 20 MM m³/dia.

 

Em 2021 e no 1º trimestre de 2022, a Petrobras recebeu em média os 20 MM m³/dia de gás natural, objeto do contrato com a YPFB.

 

Em 10/04/2022, a YPFB divulgou compromisso de venda de volumes adicionais de gás natural para a Argentina durante o inverno, de cerca de 4 MM m³/dia, a um preço mais elevado. Ainda em abril de 2022, a YPFB informou para a Petrobras que a partir de maio reduziria unilateralmente em 4 MM m³/dia as entregas de gás natural no âmbito do contrato assinado.

 

Após tomar conhecimento da redução informada pela YPFB, a Petrobras deu ciência às instâncias governamentais cabíveis, bem como informou as medidas adotadas para assegurar o fornecimento aos seus clientes.

 

Desde 01/05/2022, a Petrobras recebeu, em média, cerca de 14 MM m³/dia da YPFB. O contrato prevê consequências ao fornecedor em caso de falha de fornecimento, as quais serão aplicadas pela Petrobras à YPFB. A companhia está tomando as providências cabíveis visando ao cumprimento do contrato.

 

Ressaltamos que os contratos de venda de gás natural celebrados pela Petrobras com os seus clientes possuem preço previamente estabelecido, cuja atualização é baseada em fórmulas paramétricas atreladas a indicadores de mercado e acordadas entre as partes, as quais não são afetadas por situações pontuais de falhas com fornecedores.  

 

A Petrobras reafirma o seu compromisso com os seus clientes e com o cumprimento das condições estabelecidas contratualmente, assim como o seu comprometimento com o desenvolvimento de um mercado de gás aberto, competitivo e sustentável no país.


As Forças Armadas e o momento político nacional - Rubens Barbosa

 COLUNISTA Rubens Barbosa

Presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice) e ex-embaixador do Brasil em Londres (1994-99) e em Washington (1999-2004), Rubens Barbosa escreve mensalmente na seção Espaço Aberto


Não tenho dúvida de que, se houver qualquer quebra das regras democráticas com o apoio das FA, a reação vinda de fora será imediata. 

Opinião


As Forças Armadas e o momento político nacional

Rubens Barbosa

O Estado de S.Paulo. 24 de maio de 2022


Um ano após o ataque de apoiadores trumpistas ao Congresso dos EUA, contestando o resultado da eleição que, estimulados pelo então presidente, julgavam fraudada, um general norte-americano publicou artigo no Washington Post manifestando preocupação com o dia seguinte das eleições presidenciais em 2024 e a ameaça de divisão entre os militares, o que poderia pôr em risco a democracia no país.

Não afastando a possibilidade de contestação dos resultados da eleição e de um golpe de Estado, o militar apontou para o risco de confrontação no interior das Forças Armadas (FA) e a eventual quebra da hierarquia para respaldar essa diferente visão. Todos os militares juram respeitar a Constituição, mas numa eleição contestada, com lealdades divididas, alguns poderão seguir as ordens do comandante-em-chefe e outros, o comando trumpista. Como exemplo, mencionou a recusa da Guarda

Nacional em acatar pedido do presidente Biden para que todos os seus membros se vacinassem. Com o país muito dividido, as FA e o Congresso deveriam tomar medidas para prevenir qualquer tentativa de insurreição e adotar providências cautelares, observou.

O alerta do militar norte-americano sobre a ameaça à quebra dos valores democráticos nos EUA, a partir de uma ação política das FA, não poderia ser mais atual para o cenário político brasileiro. A descrição feita pelo militar muito se assemelha a uma série de atitudes que colocam as FA brasileiras no centro do debate político nacional.

A gradual profissionalização das FA nos últimos 35 anos está sendo testada nos dias que correm. No atual governo, surgiu uma situação diferente dos governos anteriores desde 1985. Desde o período de governos militares, nos últimos 30 anos, podem ter surgido tensões esporádicas, mas atualmente elas se acentuaram a partir da participação de grande número de militares da ativa e da reserva em cargos públicos no governo federal. A crescente exposição dos militares no governo, com acusações de

corrupção, de ameaça à democracia e de contestação das urnas eletrônicas e das ações do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), está causando um forte desgaste à imagem pública das Forças Armadas. Os acontecimentos do 7 de setembro, com o silêncio eloquente dos comandantes militares, contudo, reafirmaram o papel profissional e constitucional das FA. A politização das Polícias Militares estaduais preocupa, em especial se apoiarem pessoas armadas, não militares, passíveis de reforçar um

movimento de apoio ao presidente, porque poderão se chocar com as FA.

Nas últimas semanas, afirmações de que as Forças Armadas não assistirão passivamente ao pleito, de que as FA deverão fazer apuração paralela da votação, por questionar o sistema de urnas eletrônicas e a lisura das apurações (auditoria privada), e o pedido do ministro da Defesa para a divulgação das sugestões de aprimoramento da eleição apresentadas pelos militares, sobre a função das FA (“o permanente estado de prontidão das Forças Armadas para o cumprimento de suas missões 

constitucionais”) parecem reforçar a ideia de que as FA poderiam desempenhar um papel de poder moderador, à luz do artigo 142 da Constituição, quando, na realidade, não há uma nova missão para as Forças Armadas além daquela definida pela Carta Magna, como decidido pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

Apesar da dubiedade de afirmações sobre a preservação da democracia, sobre eleições conturbadas, sobre ato de força que ponha em risco as instituições (“só Deus me tira daquela cadeira”) e parcialidade do TSE, não há sinais de que as FA, como instituição, poderão se engajar numa aventura que ameace as eleições e a democracia. A discrição da maioria das lideranças militares, em especial do Alto Comando, parece indicar que os militares deverão se manter dentro de seu papel de instituição de Estado,

profissional, sem interferência política em apoio de partidos ou grupos políticos ou em decisões tomadas pelas instâncias civis competentes.

Assim, não me parece haver ameaça à realização das eleições nem ações violentas antes de 2 de outubro, mas o roteiro que está sendo traçado indica que, dependendo do resultado da eleição, é real o risco de, no dia 2, haver mobilização de grupos radicais, armados, para tentar atacar o STF ou o TSE, não o Congresso, como no caso dos EUA. De qualquer forma, a sociedade civil, o Congresso e as próprias Forças Armadas devem estar atentos e mobilizados para evitar qualquer tentativa de ameaça à democracia.

As eleições brasileiras estão despertando crescente atenção no exterior também pela presença dominante de dois políticos que, por razões diferentes, despertam fortes reações e apreensão sobre as perspectivas políticas e econômicas do País. A preocupação com a preservação da democracia e a condenação do autoritarismo estão muito presentes hoje num cenário de grande instabilidade global e de crescente confronto entre os dois regimes de governo representados pelos EUA e por China/Rússia.

Não tenho dúvida de que, se houver qualquer quebra das regras democráticas com o apoio das Forças Armadas, a reação vinda de fora será imediata e o Brasil poderá ser alvo de sanções econômicas e comerciais que, além de aumentar o isolamento internacional do País, afetarão ainda mais o crescimento e os setores mais dinâmicos da economia nacional.

*

É PRESIDENTE DO CENTRO DE DEFESA E SEGURANÇA NACIONAL (CEDESEN)

segunda-feira, 23 de maio de 2022

Como chegamos a ter uma ameba parlamentarista? - Paulo Roberto de Almeida

Como chegamos a ter uma ameba parlamentarista? 

Paulo Roberto de Almeida 
Diplomata, professor (www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com) 

Comentário privado a respeito de nosso atual "não sistema" político-partidário, feito à margem de um debate bilateral, que aproveito para reproduzir aqui. 

 Permito-me chamar a atenção para a seguinte peculiaridade de nosso sistema político: estamos todos acostumados com o populismo, ou seja, políticos vão continuar mentindo e enganando os eleitores para obterem vantagens eleitorais, ou seja, a manutenção da representação política. 
 Mas, na atual conformação do sistema político-partidário brasileiro, caracterizado por fragmentação partidária, exacerbação do uso privado de recursos públicos e deformação do princípio proporcional, tivemos a consolidação de um estamento político que atua diretamente no controle das verbas públicas para enriquecimento pessoal e desvirtuamento completo do processo orçamentário, com "projetos" deliberadamente corruptos por incapacidade governamental de organizar um sistema racional de apoio parlamentar a projetos do executivo (que nem existem racionalmente num governo marcado pela inépcia dos principais mandatários). Estamos, assim, no pior dos mundos: a never ending corruption machine... 

Até quando a cidadania consciente vai permitir que o jogo se reproduza? 

Finalizo, dizendo que ele é infenso a qualquer coloração partidária ou ideológica: o assalto aos recursos públicos por bandos, matilhas, enxames ou maltas organizadas de meliantes "públicos" se dá e continuará se dando indiferente ao fato de o governo central ser ocupado por forças supostamente de esquerda, de centro ou de extrema-direita. Todas elas são coniventes, concordantes, convergentes com o objetivo principal de assaltar o eleitor-cidadão-contribuinte compulsório. Isso significa que o próximo dirigente será tão corrupto como já registramos em casos clamorosos de assalto direto aos recursos públicos nos últimos anos, num crescendo organizado de regras burocráticas e aparentemente legais (mas não legítimas) para facilitar a extorsão privada pelos "representantes" do povo? 

Não necessariamente, mas o "sistema" tem sido pacientemente construído ao longo dos anos para justamente permitir esses vícios privados, ao mesmo tempo em que se proclamam virtudes públicas. É por isso que eu chamo a classe política de "estamento", pois ela já superou aquelas elaborações formais dos marxistas lukacsianos de "classe em si" ou "para si". Ela já constitui uma categoria à parte da burocracia civil das corporações públicas: ela já se tornou um quisto entranhado no corpo da sociedade, aberto aos novos "talentos", mas todos estes talentos direcionados a preservar e ampliar privilégios privados. A principal desigualdade brasileira atualmente, ao lado das iniquidades sociais bem conhecidas e tradicionais – incluindo o chamado "racismo estrutural", um conceito ambíguo –, é justamente a que separa o brasileiro comum daqueles ungidos por cargos públicos obtidos nas urnas regulares. 

Invertendo a famosa expressão de Gilberto Amado – para quem, na República Velha, as eleições eram falsas, mas a representação verdadeira –, atualmente as eleições são perfeitamente verdadeiras, mas a representação é completamente falsa. 

Paulo Roberto de Almeida 
Brasília, 4162: 23 maio 2022, 2 p.

Recuerdos de Icaparay - Paulo Roberto de Almeida

Recuerdos de Icaparay 

Paulo Roberto de Almeida

 Se querem saber os ignaros, o PT e os lulopetistas me deixaram na geladeira do Itamaraty durante os 13,5 anos do regime dos corruptos neobolcheviques, pelo fato de eu simplesmente escrever o que pensava sobre a diplomacia partidária dos companheiros. 
Fiquei na Biblioteca lendo e escrevendo o que sempre achei deles e de suas políticas esquizofrênicas. Escrevi o que pensava dessas políticas em meu livro de 2014, Nunca Antes na Diplomacia, e depois complementei em Contra a Corrente (2919). Tivemos, de 2019 até aqui, o mais horrendo dos governantes desde Dom Tomé de Souza (1549), ou seja, desde sempre. 
Não sou de votar em corruptos, mas, parafraseando Winston Churchill, eu me aliaria ao demônio se o Bozo invadisse o inferno. 
Tudo para obliterar o psicopata perverso! Escrevi o que penso sobre a horrenda bolsodiplomacia em Apogeu e Demolição da Política Externa (2021), o quinto de uma série de livros que não deveriam existir, que começou com Miséria da Diplomacia: a destruição da inteligência no Itamaraty (2019). 

 Vou continuar incomodando os companheiros, se eles voltarem ao poder, não porque eles sejam de esquerda (pois acho todas as posições políticas legítimas, desde que ascendam democraticamente ao poder), mas porque eles geralmente são incompetentes em economia, corruptos na condução dos negócios públicos e ideológicos na política externa. 
Persistirei no meu quilombo de resistência intelectual. 

 Paulo Roberto de Almeida 
Brasília, 23/05/2022