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sexta-feira, 6 de outubro de 2023

Quatro líderes e um mundo virado ao revés Israel , EUA, Rússia e China - Thomas L. Friedman (NYT, Estadão)

 Quatro líderes e um mundo virado ao revés

Israel EUA, Rússia e China

Thomas L. Friedman
The New York Times É colunista e ganhador de três prêmios Pulitzer
O Estado de S. Paulo, 6/10/2023

Desde o dia em que aprendí que, em 1947, Walter Lippmann popularizou o termo Guerra Fria para definir o conflito que emergia entre EUA e União Soviética, achei que seria legal poder batizar um período histórico. Agora que o pós-Guerra Fria acabou, o pós-pós-Guerra em que entramos tem de ganhar um nome. Então, aqui vai: é a era do "Isso não estava nos planos".

Eu sei, não é uma expressão fácil de articular - e não espero que cole. Mas ela é certeira. Eu tropecei nela na minha viagem recente à Ucrânia. Estava conversando com uma mãe ucraniana que me contava que sua vida social tinha se reduzido a jantares ocasionais com amigos, festas de aniversário "e funerais".

Depois de digitar a citação na minha coluna, acrescentei meu próprio comentário: "Isso não estava nos planos". Antes do ano passado, jovens ucranianos vinham desfrutando de acesso facilitado à União Européia, entrando em startups de tecnologia, pensando sobre fazer faculdade e decidindo se passavam férias na Itália ou na Espanha. Então, como um meteoro, a invasão russa virou as vidas deles de ponta cabeça da noite para o dia.

Aquela ucraniana não está só. Muitos planos de muita gente - e de muitos países - saíram completamente dos trilhos. Entramos na era do pós-pós-Guerra Fria, que tem pouco a prometer em comparação à prosperidade, à previsibilidade e às novas possibilidades do período pós-Guerra Fria, que abrangeu os 30 anos desde a queda do Muro de Berlim.

Há muitas razões para isso, mas nenhuma é mais importante do que o trabalho de quatro líderes cruciais com uma coisa em comum: acreditam que sua liderança é indispensável e estão dispostos a adotar medidas extremas para se manter no poder o máximo que puderem.

PODER. Estou falando de Vladimir Putin, Xi Jinping, Donald Trump e Binyamin Netanyahu. Esses quatro - cada um à sua maneira - criaram perturbações dentro e fora de seus países com base em seu interesse particular, em vez dos interesses de seus povos, e dificultaram a capacidade de suas nações funcionarem normalmente no presente e se planejarem sabiamente para o futuro.

Veja Putin. Ele começou a carreira como um tipo de reformador que estabilizou a Rússia pós-Yeltsin e coordenou um boom econômico graças aos preços do petróleo em elevação. Mas a renda com o petróleo começou a cair e, conforme descreve o acadêmico russo Leon Aron em seu próximo livro, Ridingthe Tiger: Vladimir Putirís Rússia and the Uses ofWar, Putin deu uma grande virada no começo de seu terceiro mandato como presidente, em 2012, após os maiores protestos contra seu governo irromperem em 100 cidades russas e sua economia empacar.

A solução de Putin? "Mudar a fundação da legitimidade de seu regime do progresso econômico para o patriotismo militarizado", disse Aron, colocando a culpa de todas as dificuldades no Ocidente e na expansão da Otan. No processo, o presidente russo transformou seu país em um forte sitiado, que, em sua mentalidade e propaganda, somente Putin é capaz de defender. Ele ter invadido a Ucrânia para restaurar a mítica Mãe-Pátria russa foi inevitável.

Os acontecimentos na China também têm se desdobrado de maneira bastante inesperada. Depois de se abrir e afrouxar controles internos constantemente desde 1978, tornando-se mais previsível, estável e próspera que em qualquer outro momento da história moderna, a China experimentou uma virada de quase 180 graus sob o presidente Xi: ele suprimiu o limite de mandatos - respeitado por seus antecessores para evitar a ascensão de um novo Mao Tsé-tung - e fez-se presidente indefinidamente.

Xi, aparentemente, acreditou que o Partido Comunista estava perdendo o controle e, portanto, reafirmou seu poder em todos os níveis sociais e empresariais ao mesmo tempo, o que eliminou qualquer rival.

Isso tomou a China um país mais fechado do que em qualquer momento desde os dias de Mao e desencadeou comentários de que o mundo pode já ter visto o auge da China em relação a potencial econômico, o que equivalería a um terremoto na economia global.

Certamente não estava nos meus planos acabar escrevendo, depois de quase uma vida inteira acompanhando conflitos de Israel com inimigos externos, que a maior ameaça à democracia judaica hoje é um inimigo interno - um golpe no Judiciário liderado por Netanyahu que está fragmentando a sociedade e as Forças Armadas de Israel.

O ex-diretor-geral do ministério israelense da Defesa Dan Harel afirmou, em um comício pró-democracia em Tel-Aviv, na semana passada: "Eu nunca vi nossa segurança nacional num estado tão ruim" e houve "dano às unidades da reserva de formações essenciais das Forças Armadas, o que reduziu prontidão e capacidade operacional".

E este problema não é pequeno para os EUA. Ao longo dos últimos 50 anos, o Estado de Israel tem sido tanto um aliado crucial quanto, de fato, uma base avançada na região em que Washington projetou poder sem usar tropas americanas.

Israel destruiu tentativas incipientes de Iraque e Síria se tornarem potências nucleares e é o maior contrapeso atualmente à expansão do poder do Irã sobre toda a região. Mas, se tivermos mais três anos desse governo extremista de Netanyahu, com sua pretensão de anexar a Cisjordânia e governar os palestinos que habitam o território com um sistema à la apartheid, o Estado judaico poderá se tornar uma grande fonte de instabilidade, não de estabilidade.

E por quê? Em um recente perfil de Bibi no Times, Ruth Margalit citou Ze'ev Elkin, um ex-ministro do gabinete de Netanyahu, do Likud, descrevendo o primeiro-ministro da seguinte forma: "Ele começou com uma visão de mundo que dizia: 'Eu sou o melhor líder para Israel neste momento', que gradualmente se transformou numa visão de mundo que diz: 'A pior coisa que pode acontecer para Israel é eu parar de liderar o país, e portanto minha sobrevivência justifica qualquer coisa'."

PILAR. Nem é preciso dizer, depois de testemunhar o esforço de Trump para reverter a eleição de 2020 inspirando uma turba a invadir o Capitólio e ver esse mesmo homem se tomar o principal pré-candidato republicano à presidência em 2024, que a nossa próxima eleição será uma das mais importantes de todos os tempos - para que não seja a última. Isso não estava nos planos.

O denominador comum que une esses quatro líderes é que todos eles quebraram as regras do jogo em seus países por uma razão bastante familiar: permanecer no poder. Putin também iniciou uma guerra no exterior com o mesmo objetivo. E seus sistemas locais - a elite russa, o Partido Comunista Chinês, o eleitorado israelense e o Partido Republicano - não foram capazes de refreá-los.

Mas também existem diferenças importantes entre eles. Netanyahu e Trump enfrentam resistência em suas democracias, onde os eleitores ainda podem expulsar ou impedir ambos - e nenhum deles começou uma guerra.

Xi é um autocrata, mas tem uma agenda para melhorar a vida de seu povo e planeja dominar grandes indústrias do século 21, da biotecnologia à inteligência artificial. Mas seu governo, cada vez mais linha-dura, poderá ser exatamente o que impedirá a China de chegar lá, principalmente porque esse punho de ferro ocasiona fuga de cérebros.

Putin não passa de um chefão mafioso disfarçado de presidente. Ele será lembrado por transformar a Rússia da potência científica, que colocou o primeiro satélite em órbita, em 1957, em um país incapaz de fabricar um carro, um relógio ou uma torradeira que qualquer pessoa fora do país compraria. Putin teve de recorrer à Coréia do Norte para mendigar ajuda para seu Exército arrasado na Ucrânia.

Trump, em última instância, é o mais perigoso - e por uma simples razão: quando o mundo fica tão caótico assim e países tão importantes contrariam os planos, o restante depende dos EUA para assumir a liderança, conter os problemas e opor-se aos causadores de problemas. Mas Trump prefere ignorar problemas e louvar os criadores de problemas. É isso que torna a perspectiva de outra presidência sua tão assustadora, insensata e inconcebível.

Porque os EUA ainda são o pilar do mundo. Nem sempre fazem isso sabiamente, mas se parar completamente de fazê-lo, cuidado. Dado o que já está acontecendo nesses três outros importantes países, se os EUA vacilarem, nascerá um mundo no qual ninguém será capaz de fazer nenhum plano. Haverá um nome fácil para esse período: "Era da Desordem".

TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

Se os EUA vacilarem, nascerá um mundo incapaz de fazer planos. Será a 'Era da desordem'

A tragédia dos refugiados afegãos no Paquistão (FSP)

 Paquistão anuncia expulsão de 1,7 milhão de afegãos, e migrantes buscam o Brasil Redefinição da política de acolhida brasileira trava solicitações de vistos humanitários na capital Islamabad 


 SÃO PAULO 
Segundo país que mais recebe afegãos que fogem do regime do Talibã e do colapso econômico, o Paquistão anunciou uma nova política migratória, descrita como uma "repatriação gradual", que pode expulsar cerca de 1,7 milhão de afegãos de seu território. 

 A medida aumentou a preocupação de migrantes no país, muitos dos quais já relatavam ser alvos de abusos e coação por policiais. E reflete também no Brasil. ONGs relatam que estão recebendo ainda mais pedidos de ajuda de afegãos que, vivendo no Paquistão, tentam emigrar para o Brasil com o visto de acolhida humanitária. Aqueles que desejam solicitar o visto brasileiro, no entanto, estão impossibilitados. A embaixada de Islamabad —uma das duas únicas, além da de Teerã, que acolhe pedidos— não está recebendo solicitações.

 A representação consular aguarda o governo brasileiro publicar edital com as novas regras para concessão de vistos humanitários para voltar a operar. Nesse meio-tempo, afegãos que estão no Paquistão relatam se sentir ainda mais inseguros. A política foi alterada pelo governo Lula no final do mês passado, e sua falta de detalhamento levou a uma ampla desinformação. O principal ponto de dúvida está no trecho que diz que a concessão de vistos estará sujeita à existência de vagas para abrigo por organizações. 

A informação deu margem para a interpretação de que, para vir, o migrante deve ser "convidado" por alguma ONG ou receber algum tipo de "carta de patrocínio", o que não é o caso, segundo o Itamaraty. A pasta disse à Folha que todos os pedidos realizados na embaixada de Islamabad até 1º de outubro passado seguem sendo processados normalmente. O posto concedeu 4.041 vistos a afegãos desde a implementação de sua política de acolhimento para migrantes da nacionalidade, em setembro de 2021. Hamid Liyaqat, 35, é um dos que tentam deixar os arredores de Islamabad e emigrar para o Brasil. No país com a esposa, os três filhos —de 7, 4 e 2 anos—, a mãe e três irmãs, ele diz que não se sente seguro e não vê oportunidades. 

Os filhos e suas irmãs mais novas, de 13 e 16 anos, não conseguem frequentar o ensino público de educação. O afegão deixou a província de Bamyan, onde vivia, logo após o Talibã retomar o poder, em outubro de 2021, rumo ao Paquistão. O restante da família se juntou a ele pouco depois, mas não sem antes sentir o impacto da repressão do regime fundamentalista —ele relata que oficiais invadiram sua casa e agrediram sua mãe. Hamid trabalhava como vice-diretor da polícia civil de Bamyan junto a um projeto do Pnud, o programa da ONU para o desenvolvimento. Mas a rixa do Talibã com sua família vem de antes. Seu pai, relata, era membro da polícia nacional e foi assassinado por talibãs em 2013. 

 O próprio Hamid chegou a ser sequestrado pelo grupo em 2020, quando fazia o percurso com destino à capital Cabul junto com a mulher, então grávida de seis meses, segundo documentos oficiais do governo da época que o afegão compartilhou com a reportagem. Hamid diz que já solicitou o visto mais de uma vez e aguarda resposta. A imigração é não só uma tentativa de buscar mais oportunidades, como de proteger a família dos abusos policiais que ela enfrenta. "Temos muito medo. Ficamos quase 24 horas por dia em casa. Se saímos, policiais nos param e exigem dinheiro. Se não damos, nos ameaçam até com a expulsão. Estão nos humilhando." Ahmad (nome fictício) relata situação semelhante. O afegão cruzou a fronteira com o Paquistão em novembro de 2021 e diz que corria riscos por ser cristão —o Talibã lidera um regime fundamentalista islâmico. 

Ele afirma que há dois anos solicitou o visto brasileiro, mas que ainda não teve resposta. O desespero bateu à porta de fato nesta semana, após o governo local anunciar as deportações. Ele, que mora na cidade de Rawalpindi e prefere não revelar a identidade por questões de segurança, diz que, se for pego pela polícia, será entregue ao Talibã e morto. Procurada, a embaixada do Paquistão no Brasil disse que as acusações sobre a ação de seus policiais são "totalmente sem fundamento e fora de contexto". Nesta terça-feira (3), o Paquistão anunciou que todos os migrantes em situação ilegal no país devem sair de forma voluntária até o final de outubro se quiserem evitar prisão e deportação forçada. Autoridades afirmaram que uma linha telefônica seria criada para que pessoas possam denunciar esses migrantes em troca de recompensa. A política foi anunciada após uma série de ataques no Paquistão a poucos meses das eleições de janeiro. 

Os atentados são orquestrados por militantes islâmicos e se tornaram mais frequentes desde 2022, quando foi rompido um cessar-fogo entre o governo e o Tehreek-e-Taliban Pakistan (TTP), o talibã paquistanês. Os extremistas tentam pressionar as autoridades a implementarem um regime com base na sharia, a lei islâmica, espécie de marco moral com base no Alcorão. Na semana passada, dois atentados suicidas mataram mais de 60 pessoas durante uma celebração religiosa do aniversário do profeta Maomé. Na ação mais letal, em janeiro, mais de cem foram mortos em um atentado a uma mesquita em Peshawar —o local sagrado ficava em um complexo que abriga prédios oficiais. 

 O governo afirma que hoje 4,4 milhões de afegãos vivem no Paquistão, sendo 1,7 milhão sem documentação. Dados do Acnur, a agência de refugiados da ONU, por sua vez, indicam que há 3,7 milhões de afegãos. O regime talibã chamou de "inaceitável" a ação paquistanesa. À Folha a embaixada do Paquistão no Brasil disse que a política de repatriação vale para todos os migrantes em situação irregular, não apenas os afegãos, e que essa ação é válida perante "as leis soberanas do país". Grande parte dos afegãos que buscam o Brasil sai do Paquistão, país que compartilha uma fronteira de mais de 2.600 quilômetros com o Afeganistão. Segundo dados públicos da OIM, braço da ONU para migrações que apoiou a vinda de ao menos 439 afegãos para o Brasil, 80% deles saíram do Paquistão antes de desembarcar no país —outros 17% saíram do Irã, país com maior diáspora afegã (4,5 milhões). 


O Haiti, uma vez mais: crises recorrentes devem servir de alerta - Ricardo Seitenfus (Brasil de Fato)

O Haiti é um Estado falido, em todos os planos. Acontece...

O Haiti, uma vez mais: crises recorrentes devem servir de alerta

O espoucar de foguetes à notícia da adoção da Resolução deve ser temperado pois o mais difícil está por vir

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
  

Após meses de tergiversações o Conselho de Segurança das Nações Unidas aprovou, por treze votos favoráveis e duas abstenções (China e Rússia), no início desta semana, uma Resolução autorizando o envio de uma missão multinacional de apoio à segurança no Haiti.

Apesar do ruído da grande imprensa internacional, dos políticos e dos diplomatas, a decisão não constitui novidade alguma pois o Haiti se tornou, para sua infelicidade, desde o início dos anos 1990, um dos principais clientes do Conselho de Segurança. Desde então nada menos de dez « Missões » da ONU foram enviadas ao país. Com distintos propósitos e instrumentos de ação.

A existência de um « rosário missioneiro » como no caso haitiano, indica e tende a comprovar que o aporte destas missões foi nulo. Mal pensadas e conduzidas, seus reiterados fracassos levam à necessidade de retornar periodicamente ao Caribe. Exatamente o que estáo correndo atualmente.

O teor da Resolução indica que a missão reunirá componentes policial e militar de países voluntários. Seu financiamento idem. Se trata de uma original e pouco comum missão « não-onusiana ». Embora autorizada pelo Conselho de Segurança, a responsabilidade será de um grupo de países, ainda indefinidos, capitaneados pelo Quênia.

Paralelamente há indicação sobre a necessidade de um acerto político entre os haitianos. Para tanto o Conselho de Segurança confia nos esforços diplomáticos e de mediação da Comunidade do Caribe  (Caricom), da qual o Haiti é membro.

Sempre é aconselhável observar e analisar o conteúdo, o contexto e a semântica das Resoluções do Conselho de Segurança. Todavia um texto é o que ele diz e também o que ele cala. Neste sentido há silêncios que falam por si. O mais importante deles é a subjacente crítica à ação da Missão das Nações Unidas para Estabilização no Haiti (Minustah) (2004-2017) cujo braço armado foi permanentemente comandado por generais brasileiros.os sucessivos governos brasileiros, o fato é que sob nosso comando, militares à serviço da Minustah e sob a bandeira das Nações Unidas, levaram ao Haiti, pela primeira vez em outubro de 2010, o vírus da cólera que infectou 800 mil pessoas e vitimou 30 mil, sobretudo camponeses da região rizícola de Artibonite, na região central do Haiti. Ainda hoje, a epidemia provoca mortes.

A máquina política, diplomática, burocrática, militar e jurídica das Nações Unidas tentou acobertar o escândalo. A presente Resolução do Conselho de Segurança ao aprovar uma missão « nao-onusiana » condena a todos, inclusive o poderoso Departamento de Operações de Paz.

Um segundo silêncio diz respeito à Organização dos Estados Americanos. Sequer mencionada, a OEA paga tributo à atuação pífia de seu Secretário Geral e aos equívocos decorrentes de seu alinhamento automático à posições equivocadas e frontalmente contrárias ao seu protagonismo em crises anteriores.

O espoucar de foguetes à notícia da adoção da Resolução deve ser temperado pois o mais difícil está por vir : fazer transitar seus propósitos para o terreno dos fatos. As recorrentes crises haitianas devem servir de alerta. Não é por acaso que o país recebeu a alcunha de « cemitério de projetos ». Considero que a antiga « Pérola das Antilhas » como o país das ilusões e inocências perdidas. Aconselho à todos cautela, prudência e caldo de galinha.

Ricardo Seitenfus foi Representante da OEA no Haiti (2009-2011) e autor de Haiti: dilemas e fracassos
internacionais
 e A ONU e epidemia de cólera no Haiti.

A arte de se ocupar das pequenas coisas - Paulo Roberto de Almeida

 L’être et le néant 

(mas não tem nada a ver com Jean-Paul Sartre, e sim com Raymond Aron):

O tal de Sul Global aparece como o objeto mais diáfano de estudos e discussões acadêmicas desde a famosa controvérsia sobre o sexo dos anjos em plena Idade Média. 

Se construiu uma suposta identidade de interesses num ajuntamento heteróclito de estados e nações como se fossem personagens reais, a partir de suposições jamais empiricamente confirmadas!

Os anjos de antigamente também juntavam cérebros respeitáveis em torno de absolutamente nada, sobre seres aparentemente similares. Só faltava definir o sexo: se fossem do sexo feminino talvez não tivessem almas. 

Mas tem gente que fala pomposamente desse Sul Global como se fosse uma manada a ser graciosamente tangida em direção de uma fabulosa “nova ordem global”, um generoso cenário de relações “não assimétricas”. 

Não é o Ser e o Nada?

Paulo Roberto de Almeida

Brasília , 6/10/2023

O estágio sombrio da diplomacia brasileira na guerra da Ucrânia - Paulo Roberto de Almeida

 Meu protesto solitário em face da atual situação de indignidade demonstrada pela diplomacia abjeta a que foi conduzido o Itamaraty:

Putin confirma seus piores instintos criminosos, dedicando-se simplesmente a matar tantos ucranianos civis quanto possível, já que falhou completamente em seus objetivos de conquistar o país:

“No [novo] ataque russo de hoje [6/10] contra a cidade ucraniana de Kharkiv, uma criança de 10 anos morreu e mais de 20 civis ficaram feridos, alguns com gravidade. O míssil russo visou um bairro residencial próximo do centro da cidade, um ataque realizado apenas 1 dia após a Rússia ter lançado um míssil contra uma aldeia, matando 51 pessoas e ferindo outras 150.”

Hoje no Mundo Militar, 6/10/2023

(PRA): E a diplomacia brasileira chega a um dos pontos mais baixos de sua história ao se mostrar totalmente indiferente, por completa submissão a ordens superiores, em relação aos atos mais bárbaros cometidos por um parceiro de um bloco indigno de fazer parte de nossas relações de aliança política. 

Não me lembro, na história do sistema internacional onusiano e da diplomacia brasileira nesse contexto, de termos descido tão baixo na escala da covardia humana, ao não reagir sequer por meio de uma simples demonstração de horror em face da crueldade em estado bruto, por razões da mais baixa política externa que se concebeu na diplomacia partidária do lulopetismo abjeto.

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 6/10/2023 

quinta-feira, 5 de outubro de 2023

Itamaraty afirma que declaração de guerra é ato diplomático legítimo - Curso CACD

 Não deixa de ser surpreendente: a formulação da questão deve ter sido feita em meados deste ano, quando Lula defendia, como Amorim, as "legítimas preocupações de segurança da Rússia", de certa forma coonestando os argumentos de russos e aliados quanto à guerra de agressão à Ucrânia.

Deveremos ainda dois surpreender mais ainda com o Itamaraty aliado de China e Rússia na construção de uma "nova ordem global"?  É possível... (PRA)

Itamaraty afirma que declaração de guerra é ato diplomático legítimo 


Em meio à guerra da Ucrânia, concurso de admissão à carreira diplomática exige que candidatos afirmem que a guerra é meio diplomático tão legítimo quanto a resolução pacífica de controvérsias. Afirmação viola Constituição Federal, Carta da ONU e tradição diplomática brasileira. 

Divulgação do padrão de respostas da segunda fase do concorrido concurso de admissão à carreira diplomática (CACD) causou polêmica entre candidatos e repercutiu mal no próprio Itamaraty. Segundo o documento publicado na noite dessa segunda-feira, 4 de outubro, no site da banca organizadora do concurso, os candidatos deveriam afirmar na redação da prova de inglês que “a declaração de guerra é um ato diplomático tão “legítimo” quanto a mediação nas negociações de conflitos de forma pacífica” (confira íntegra do documento nesse link e ao final da matéria). 

“Estamos chocados. É contra tudo que aprendemos, contra tudo que o Brasil defende”, disse candidato que não quis se identificar por medo de retaliação. 

O padrão de respostas é o gabarito que os examinadores usam para a correção das provas. Isso significa que candidatos que defenderam a ilegitimidade do recurso a meios não pacíficos, como a guerra, foram penalizados. “É como se o Itamaraty quisesse soldados e não diplomatas ”, comentou outra candidata indignada, que também preferiu o anonimato. Ela ainda afirmou que a guerra do Iraque foi usada como exemplo da legitimidade da guerra. “O Brasil sempre criticou a invasão do Iraque. O Lula visitou o papa João Paulo II para pressionar diplomaticamente os EUA contra a invasão, e, agora, temos que dizer o contrário? Rasgaram os livros, queimaram a constituição”, disse esperançosa. 

 

Gabarito contra a Constituição e contra o Direito Internacional  

A Constituição brasileira, em seu artigo 4º, afirma que a defesa da paz e a solução pacífica de controvérsias são princípios que regem as relações internacionais do Brasil. A solução pacífica das controvérsias é uma das linhas-mestras da política externa brasileira. Exemplos históricos e presentes são inúmeros. Em termos históricos, pode-se recordar a resolução das controvérsias de limites com seus vizinhos em princípios do século XX, privilegiando a arbitragem internacional.

O gabarito não é apenas contra a Constituição, mas contra a Carta da ONU, que traz, em seu artigo 2:

3. Todos os Membros deverão resolver suas controvérsias internacionais por meios pacíficos, de modo que não sejam ameaçadas a paz, a segurança e a justiça internacionais. 

4. Todos os Membros deverão evitar em suas relações internacionais a ameaça ou o uso da força contra a integridade territorial ou a dependência política de qualquer Estado, ou qualquer outra ação incompatível com os Propósitos das Nações Unidas.

“O parágrafo 4 do artigo 2 da Carta das Nações Unidas anula completamente o gabarito. O examinador foi incauto, foi contra a tradição do Itamaraty e contra o direito internacional. Nenhum diplomata brasileiro diria que a declaração de guerra é um meio legítimo. Como eles vão pedir que o candidato diga isso, ainda mais em meio à guerra na Ucrânia? ’’, comentou um professor que dá aula aos candidatos e também optou pelo anonimato. 

 

Candidatos temem terceira fase ainda mais arbitrária

Outra professora de inglês destacou que o próprio padrão de respostas da prova de inglês não responde ao comando da redação. Segundo ela, “a prova pedia que o candidato escrevesse uma redação que compatibilizasse duas citações. Uma definia a diplomacia como busca da solução pacífica de controvérsias, enquanto a outra dizia que não havia garantias que os estados não usariam a força, mas o gabarito de 7 linhas não disse como compatibilizar, só disse que eram iguais. Ora, dizer que são iguais não é explicar como“. 

O padrão de resposta da redação de inglês pode ser um sinal do crescente nível de subjetividade da prova. Candidatos relatam que, apesar da implementação de padrões de resposta, as correções ainda dependem do corretor. “Em 2022, cada matéria tinha 8, às vezes até 10 corretores, então a nota dependia de quem corrigia a sua prova. Nas provas de francês, eles não penalizaram quem deixava parte da prova em branco”, relatou outra candidata. “Não sabemos o que nos aguarda na terceira fase, mas um padrão desses dá medo”, concluiu.

 Chamou a atenção dessa reportagem o pequeno número de linhas do padrão de reposta de um concurso tão concorrido, apenas 7, e, ainda mais, que todos os candidatos preferiram manter o anonimato por medo de retaliação ao longo da carreira. Alguns comentaram que existe uma entrevista para candidatos negros e pardos aprovados e que a divulgação do nome na matéria poderia influenciar nessa avaliação. 

 

Confira a íntegra do padrão de respostas (https://www.iades.com.br/inscricao/ProcessoSeletivo.aspx?id=4a392209)

PADRÃO DE RESPOSTA DA PROVA DISCURSIVA (Divulgado em 04/10/2023) 

LÍNGUA INGLESA 

COMPOSITION

O candidato deve discorrer a respeito da capacidade que a diplomacia tem de se utilizar de meios pacíficos para atingir objetivos pacíficos, mas também de recorrer, a depender das circunstâncias, ao uso da força.

A declaração de guerra é um ato diplomático tão “legítimo” quanto a mediação nas negociações de conflitos de forma pacífica.

 Na história de grandes conflitos mundiais, há inúmeros exemplos de declaração de guerra feita pelas diplomacias europeia e americana. O exemplo mais recente foi a invasão do Iraque por potências ocidentais lideradas pelos Estados Unidos da América.

Morte de Vamireh Chacon - Crônica de Marcos Vasconcelos Filho (Tribuna Independente, Alagoas)

Morte de Vamireh Chacon 

Crônica de Marcos Vasconcelos Filho 

Tribuna Independente, 5/10/2023

Crônica-ensaio estampada hoje na »Tribuna independente« (Maceió, ano [17], n. 4.475, quinta-feira, 5 out. 2023, Opinião, p. 6) sob o fim de assinalar o desaparecimento material do meu amigo e colega de Academia Pernambucana de Letras (APE) e de Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGP) Vamireh Chacon [1934-2023].


Eis alguns recortes do texto:

»Morto Vamireh Chacon [...], perde o Brasil um cientista. E dos incomuns. Perco eu um raro amigo, pois companheiro do intelecto.

Na tarde chuvosa de inverno, passo a recordá-lo. [...] Para muitos, a carranca não permitia de logo entrever-lhe o coração. [...] Preservo com carinho a nossa correspondência: roteiro confessional ao jeito do “Contributo alla critica di me stesso” (1918), de Benedetto Croce. Num futuro próximo auxiliarão tais cartas o campo da epistolografia? [...]

Torno aos seus livros: um arco teórico que muito justamente mereceu, perto dum decênio atrás, o Prêmio Machado de Assis, cume dos lauréis da Academia Brasileira de Letras. “História das idéias sociológicas no Brasil” (1977), “História das idéias socialistas no Brasil” (1981), “Abreu e Lima: general de Bolívar” (1983), “Gilberto Freyre: uma biografia intelectual” (1993) e “Formação das ciências sociais no Brasil: da Escola do Recife ao Código Civil” (2008) são-me a pentalogia dos títulos chaconianos de predileção, nos quais alia o autor ao treino da síntese (tão germanófila) a veia crítica do ensaísmo (remontante à tradição historicista e herdeira de Kant, Hegel, das escolas de Baden e Freiburg, bem assim dos frankfurtianos).

“Prezado Marcos: [...] não sou nem nunca fui marxista e sim culturalista na linha não só de Max Weber, também de Werner Sombart e de Theodor W. Adorno, mais do que de Max Horkheimer e Jürgen Habermas, os quais também traduzi ao português no Brasil”, autodefiniu-se a mim, via e-mail, em julho de 2020«.

#mvf #marcosvasconcelosfilho #ensaismo #vamirehchacon

Perdeu Mané? As esquerdas e sua derrota nas comunicações - Uirá Machado (FSP)

 LULINHA , LULINHA   REQUISITA AS RUAS 

Direita domina redes sociais e deixa esquerda para trás na batalha digital

Uirá Machado

Folha de S. Paulo, 4/10/2023

Com um celular na mão e uma notícia (por vezes falsa) na cabeça, a direita dominou o universo digital nas últimas eleições e tem tudo para repetir a dose nas próximas.

Há diversas razões para explicar esse fenômeno. Entre elas estão o pioneirismo da direita nesse ambiente, a arquitetura das redes sociais, o acesso a financiamento, o tipo de conteúdo disseminado e o incentivo à monetização.

Segundo especialistas, se a esquerda –não só no Brasil— quiser virar esse jogo, precisará fugir das armadilhas lançadas pela direita e mudar sua forma de se relacionar com a tecnologia.

"A esquerda brasileira sempre teve dificuldades para lidar e compreender a comunicação. Isso continuou no cenário digital", diz o sociólogo Sérgio Amadeu da Silveira, professor da Universidade Federal do ABC (UFABC).

Como reflexo disso, existem, de acordo com o sociólogo, menos canais de esquerda na internet (veículos, youtubers, podcasters etc), com alcance menor que os de vários grupos da extrema direita.

"Boa parte da esquerda ainda pensa com a cabeça do mundo da comunicação de massas, mas vivemos o cenário da comunicação distribuída. Não existe bala mágica. É preciso pensar diversas estratégias para diversos segmentos da sociedade", afirma Silveira.

E, embora o custo tenha caído para a disseminação de conteúdos pela internet, dinheiro ainda faz diferença, seja para criar estruturas profissionais de disparos em massa no WhatsApp, seja para impulsionar postagens e vídeos nas diversas plataformas.

A direita gasta muito para dominar as redes sociais e cultuar seus valores, espalhar sua visão de mundo, afirma Silveira. "A esquerda rebaixou sua pauta e se limita a divulgar sua pauta política. Não há um grande empenho na disputa ideológica."

Não se trata só de um gasto centralizado. Para a cientista política Camila Rocha, um dos aspectos que complicam a equação é a capacidade da direita de monetizar suas próprias atividades.

"A direita ganhou produtores de conteúdos que se portam como ativistas, mas eles estão nessa para ganhar dinheiro", diz Rocha, que é pesquisadora do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) e colunista da Folha.

Ou seja, além dos robôs e das centrais de difusão de fake news, o ecossistema da direita ainda conta com influencers que se passam por agentes espontâneos e ideológicos, mas que na verdade descobriram uma forma de explorar economicamente a inclinação política de parte da população.

Esse tipo de iniciativa tem muito mais dificuldade de prosperar na esquerda, tanto por uma questão de perfil social –falta de afinidade com o capitalismo, com o empreendedorismo— quanto por aspectos técnicos ou culturais, por assim dizer.

É que o campo da direita, segundo Rocha, foi vanguardista na ocupação das redes sociais e outros fóruns do mundo digital. Com isso, dominou várias técnicas muito antes da esquerda.

A linguagem dos memes, os cursos voltados ao aprimoramento pessoal e as explicações didáticas sobre temas da política são alguns dos formatos que a direita usa melhor que a esquerda, diz a pesquisadora.

Mas não se diga que o problema está apenas na forma. Para Rocha, é preciso olhar também para o conteúdo: enquanto a direita se aproxima de quem já alimenta um sentimento de revolta contra o sistema, a esquerda não consegue apresentar um tom acolhedor.

"A esquerda, nos últimos anos, passou a ter um discurso muito abstrato, muito acadêmico, por vezes muito arrogante. Isso também acaba distanciando as pessoas, que às vezes não conseguem entender metade dos termos que estão sendo mencionados", afirma Rocha.

Se servir de consolação para a esquerda, trata-se de dificuldade que ultrapassa fronteiras. Para a socióloga Carla Montuori Fernandes, existe uma crise da democracia liberal em escala global, que se associa à falta de confiança de parte da população nas instituições políticas.

Diversos países assistiram à ascensão de líderes populistas que baseiam suas campanhas nas redes sociais, onde disseminam desinformação, negacionismo e discurso de ódio.

Ela cita como exemplos os Estados Unidos (Donald Trump), El Salvador (Nayib Bukele), Argentina (onde o candidato Javier Milei surpreendeu nas primárias) e Itália (Matteo Salvini, Giorgia Meloni), entre outros.

"No Brasil, especificamente, a emergência da extrema direita ocorre em um contexto de crise democrática, marcada pelo desgaste da imagem dos partidos tradicionais e lideranças políticas", diz Fernandes, que é professora da Unip (Universidade Paulista).

Ela afirma que, sobretudo em 2018, a campanha de Jair Bolsonaro (PL) soube explorar uma suposta ameaça relacionada ao imaginário comunista e ao bolivarianismo venezuelano, bem como os escândalos de corrupção investigados pela Operação Lava Jato.

Em 2022, diz Fernandes, a campanha de Lula (PT) buscou uma reação com uma estratégia capitaneada pelo deputado federal André Janones (Avante-MG), conhecida como guerrilha digital ou janonismo cultural.

"Janones pregou o mesmo comportamento da direita na internet, com divulgação de montagens, vídeos descontextualizados, uso de fake news, enfim, tudo pra conquistar o engajamento na rede", afirma a socióloga.

Para ela, contudo, a esquerda não deveria cair na armadilha de repetir a extrema direita nas redes. Embora Fernandes considere difícil disputar com quem recorre a narrativas agressivas, despolitizadas e mentirosas, ela acredita ser possível para a esquerda avançar de outras formas.

"A esquerda brasileira parece ter ficado para trás do domínio da lógica comunicacional digital. Lula é um homem analógico. É preciso aproximar o presidente do público com uma comunicação mais direta, menos formal, mais humanizada e menos formatada."

A cientista política Sabrina Almeida, professora da FGV ECMI (Escola de Comunicação, Mídia e Informação da Fundação Getulio Vargas), também aponta uma mudança de atitude entre as eleições de 2018 e 2022.

"Nós identificamos uma assimilação dessas técnicas de otimizar a visibilidade, de em alguma medida manipular a lógica algorítmica. Isso passa a ser uma estratégia de campanha, uma ferramenta de disputar a atenção e engajar as bases de apoio", afirma.

"Mas o que a gente também identifica é que não necessariamente isso diz respeito a uma maior democratização ou melhores práticas para o debate público", diz Almeida.

Daí por que o pesquisador João Cezar de Castro Rocha sugere um caminho que ele chama de contraintuitivo: "O campo da esquerda democrática não deve procurar empatar esse jogo. Na verdade, do que se trata é de não jogá-lo".

Professor da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), ele diz que a extrema direita tem uma afinidade maior com a própria dinâmica das redes sociais, que tende a privilegiar conteúdos radicalizados ou que gerem reações como pânico ou medo.

"De um lado, uma visão binária e excludente do mundo. De outro, a utilização consciente de uma linguagem de grande violência simbólica como uma forma de obter visibilidade. Por fim, uma capacidade de monetização de todas as esferas do cotidiano, incluindo a política."

Além disso, diz o professor da Uerj, "a extrema direita consegue visibilidade no limite do cometimento de crimes, como calúnia, difamação, injúria".

Assim, para ele, é crucial usar instrumentos legais existentes para punir esses crimes e desmonetizar as redes de ódio.

"Jogar o jogo no modelo que a extrema direita criou será sempre uma derrota, mesmo em caso de vitórias ocasionais", afirma.

https://www1.folha.uol.com.br/poder/2023/10/direita-domina-redes-sociais-e-deixa-esquerda-para-tras-na-batalha-digital.shtml 

terça-feira, 3 de outubro de 2023

As primeiras relações diplomáticas entre a Rússia e o Brasil - Alexei Labetski, Embaixador da Rússia no Brasil (Folha de S. Paulo)

Pioneiros marcam relação Brasil-Rússia, que hoje faz 195 anos Esforços de Franz Borel e Georg Langsdorff continuam vivos para novos diplomatas  

Alexei Labetski, Embaixador da Rússia no Brasil 
Folha de S. Paulo, 3/10/2023

Neste 3 de outubro, celebramos o 195º aniversário do estabelecimento das relações diplomáticas russo-brasileiras. Ao longo desses anos, nossos povos e Estados percorreram um grande caminho: épocas e formas de governo mudaram, grandes turbulências foram seguidas por períodos de prosperidade econômica e cultural, mas a aproximação foi praticamente ininterrupta e, no fim, levou à criação de aliança estratégica russo-brasileira, em 2000.  

Enquanto no mar as mudanças de tempo dependem de causas naturais, nas relações entre as potências o quadro é claro, luminoso e calmo somente quando os esforços dos diplomatas, que visam a estabelecer o diálogo e buscar pontos de contato mútuo, são coroados de êxito. Sabemos muito sobre diplomatas famosos e figuras políticas do presente e do passado recente, mas os nomes dos pioneiros que estiveram nas origens das relações russo-brasileiras não são ouvidos com frequência. Portanto, gostaria de lembrar o trabalho de Franz Borel, o primeiro enviado russo ao Brasil. 

 No início dos anos 2000, historiadores russos da Universidade Estatal de São Petersburgo realizaram um grande estudo sobre a vida dele. Como Franz Borel não deixou memórias, os historiadores se basearam em documentos de arquivo e em reminiscências escritas de seus contemporâneos. Franz Borel, de família francesa, nasceu em Turim em 1775. Sua juventude passou na Itália: Borel teve a oportunidade de viajar bastante pela Europa e receber uma educação decente no auge do Iluminismo, um período de rápido desenvolvimento do pensamento científico, filosófico e sociopolítico.

 Em 1799, em Nápoles, Franz Borel tornou-se assistente do representante comercial russo e, em 1804, visitou pela primeira vez São Petersburgo, onde conheceu um talentoso diplomata russo, o futuro ministro dos Negócios Estrangeiros do Império Russo, conde Nikolai Rumiantsev. A visão ampla e as qualidades de um negociador de Borel chamaram a atenção do conde Rumiantsev, que, em 1804, convidou o jovem para integrar o serviço diplomático russo. 

Borel prestou considerável assistência ao conde Rumiantsev na criação da expedição de assuntos consulares, escrevendo várias obras importantes sobre a organização e as peculiaridades do funcionamento das instituições consulares, nas quais apresentou propostas avançadas sobre a inseparabilidade dos lados político, diplomático e comercial de suas atividades. Em 1809 Franz Borel foi nomeado chefe do serviço consular russo. 

 Os sucessos de Napoleão na Península Ibérica forçaram a corte real portuguesa a deixar a metrópole rumo ao Brasil em novembro de 1807, estabelecendo assim um precedente único de governar o império a partir do Novo Mundo. Em janeiro de 1808, todos os portos brasileiros foram abertos para navios estrangeiros, e São Petersburgo viu isso como uma oportunidade única para intensificar e expandir o comércio bilateral. No limiar de novos confrontos com Napoleão (a paz de Tilsit de 1807 com a França era muito frágil, mesmo no momento de sua assinatura), o Tesouro russo precisava de reabastecimento regular e volumoso, assim a tarefa de estabelecer comércio com Portugal e explorar o Brasil, confiada a Franz Borel, tornou-se uma questão estratégica. 

 O diplomata visitou pessoalmente Portugal, a ilha da Madeira (onde trabalhou por três anos) e o Brasil, estudando cuidadosamente as peculiaridades do funcionamento das rotas comerciais e das cadeias logísticas. Como resultado de sua pesquisa, Franz Borel preparou várias notas sobre o país e um projeto de uma convenção adicional ao tratado comercial russo-português, que enfatizava o papel especial do Brasil e propunha o estabelecimento de casas comerciais russas no Rio de Janeiro e em Salvador. A preparação para a implementação das ideias propostas por Borel levou muito tempo, de modo que ele pôde chegar ao Brasil como enviado russo somente em 1828, após a vitória da Rússia sobre a França napoleônica (1814) e a proclamação da independência do Brasil em 7 de setembro de 1822. Borel expressou repetidamente a necessidade de reconhecer o novo Estado –o ato correspondente foi entregue de São Petersburgo à corte no Rio de Janeiro em dezembro de 1827. 

No mesmo mês, o diplomata recebeu uma nomeação oficial, tornando-se o primeiro enviado do Império Russo ao Brasil. De julho a outubro de 1828, Franz Borel elaborou a minuta do Tratado de Amizade, Comércio e Navegação entre a Rússia e o Brasil. Um procedimento burocrático complicado atrasou a análise do projeto em São Petersburgo, mas o diplomata, continuando sua missão no Brasil, não perdeu tempo. Trabalhando sozinho na missão, Borel não apenas lidou com tarefas políticas, representativas e administrativas, mas também, sem se poupar, trabalhou na criação de estudos exclusivos sobre administração pública, política externa e interna, geografia, comércio e agricultura. Durante o mesmo período, o diplomata ajudou a concluir a primeira expedição científica russa ao Brasil, realizada em 1821-1829 sob a liderança do famoso etnógrafo e naturalista russo Georg Langsdorff. 

As descrições geográficas e etnológicas exclusivas, juntamente com a coleção botânica reunida durante a expedição, foram transportadas para São Petersburgo graças ao trabalho meticuloso de Borel. Franz Borel tinha um amor genuíno pelo Brasil e levava a sério as reviravoltas políticas. Como monarquista convicto, criticava as recém-criadas repúblicas da América Latina e não queria que o Brasil sofresse o "destino" delas. A crise política de março-abril de 1831, em decorrência da qual o imperador Pedro 1º do Brasil, sob pressão de oposição, foi forçado a assinar uma abdicação em favor de seu filho e ir para Portugal, causou um golpe irreparável em Borel, piorando a saúde já fragilizada do diplomata. Em 23 de dezembro de 1831, o diplomata teve um derrame e, em 1º de janeiro de 1832, Franz Borel faleceu. 

 Muitos anos se passaram, e os esforços de Borel e Langsdorff –pioneiros dedicados à ideia da cooperação russo-brasileira– continuam vivos, apoiados pelo trabalho de novas gerações de diplomatas. A vida e o trabalho de Franz Borel são um exemplo importante para nós, pois ele provou, por meio de sua própria experiência, que nem a distância geográfica nem o fato de pertencer a tradições culturais diferentes podem se tornar obstáculos para a aproximação de duas grandes nações –o colosso do norte e o gigante tropical. 


O Brasil de Lula 3 no G20 da Índia - Paulo Roberto de Almeida (Crusoé)

 O Brasil de Lula 3 no G20 da Índia

 

Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.

Nota sobre a reunião de cúpula no G20 da Índia.

Brasília, 4465, 31 agosto 2023, 3 p.

revista Crusoé (1/09/2023; link: https://oantagonista.com.br/mundo/crusoe-o-brasil-de-lula-3-no-g20-da-india/).

 

 

A 18ª reunião de cúpula do G20, a ser realizada em New Delhi, capital da Índia, não será propriamente uma novidade para Lula, que já participou dos primeiros encontros desse grupo desde que ele foi originalmente convocado para tratar da crise financeira de 2008, pelo próprio presidente George Bush, em Washington. O grupo deriva diretamente, embora em nível hierárquico inferior, do Financial Stability Forum, que por sua vez tinha nascido na crise financeira anterior, na segunda metade dos anos 1990. A diferença entre a natureza de um e outro grupo das economias mais relevantes do planeta está em que o antigo Forum tinha no seu certificado de nascimento uma crise, mais uma, de países em desenvolvimento, ao passo que o G20 deu seu primeiro passo, em nível de chefes de Estado, após a implosão da bolha imobiliária no mercado americano, seguida de seu impacto no sistema bancário e de seguros, se espalhando logo depois para os demais países desenvolvidos, devido aos efeitos sistêmicos dos derivativos financeiros criados a partir das hipotecas avalizadas por agências financeiras oficiais do governo americano e alegremente adquiridos por investidores da Europa e do Japão, certos de que o Triplo A atribuído a esses derivativos eram para valer.

Independentemente, porém, das diferenças de hierarquia, de representação e de agenda dos dois grupos, similares na composição, mas não semelhantes em propósitos – o primeiro mais burocrático, o segundo mais político –, ambos grupos precisam tratar das crises recorrentes das economias de mercado, pois que praticamente todas o são atualmente, com a exceção de duas pequenas sobrevivências do stalinismo senil situadas nas antípodas do mundo. O contexto mundial no qual vivemos atualmente é sensivelmente diferente daquele que vigorava no final dos anos 2000, já que o prevalecente ao início desta terceira década do século e de uma perda relativa da preeminência econômica do G7, com respeito, por exemplo, à da crescente importância comercial, tecnológica e financeira do bloco do BRICS – recentemente ampliado, mas sempre contando com o peso desproporcional da China –, e acima disso, no tocante ao clima político e diplomático que se deteriorou significativamente na relação entre as potências econômicas das democracias avançadas de mercado e as duas grandes autocracias que no passado eram oficialmente comunistas.

O Brasil, como uma das dez maiores economias do mundo, esteve presente em todas essas ocasiões, assim como Lula esteve presente, desde o primeiro mandato, como convidado especial, em reuniões exclusivas do G7 (ou G8, enquanto este existiu, até 2014), ainda que apenas para um encontro informal entre os dirigentes do G7 e um pequeno número de dirigentes de países  selecionados esporadicamente entre pequenas e grandes nações, algumas desenvolvidas, outras em desenvolvimento, mas que eram “apenas reuniões de sobremesa”, não decisórias, como disse algumas vezes Lula, um pouco depreciativamente. Desde 2003, Lula esteve presente no G7 de Evian, a convite do presidente Jacques Chirac, de quem aliás ganhou de presente um relógio de pulso Piaget, avaliado em algumas dezenas de milhares de euros, mas não no quadro dos encontros do G7, e sim por ocasião do ano do Brasil na França, em 2005. Ao início de seu primeiro mandato, Lula tentou estender o seu programa “Fome Zero” – aliás, um fracasso no Brasil, descontinuado em favor da aglomeração de diversos programas sociais criados sob Sarney e FHC no Bolsa Família – numa espécie de “Fome Zero Universal”, tampouco bem-sucedido, mas depois transformado, com a ajuda do mesmo Chirac, num programa de ajuda a países africanos no combate à Aids. 

O G20 não trouxe exatamente uma “solução” para os problemas criados pela crise dos derivativos de 2008 – que arrastou diversos grandes bancos e até países desenvolvidos à inadimplência, socorridos pelos meios tradicionais do FMI e do Banco Central Europeu, notadamente no caso da Grécia –, mas permitiu um começo de intercâmbio de ideias e propostas entre os dirigentes das principais economias do planeta, que mais adiante se refletiu em alguns avanços em outras matérias que não exatamente crises financeiras, como na área ambiental ou no combate à lavagem de dinheiro e outros crimes transnacionais. A despeito da oposição do PT, essas reuniões do G20 abriram caminho para que mais adiante, nos governos de Dilma Rousseff e de Michel Temer, Joaquim Levy e Henrique Meirelles reforçassem a política de aproximação com a OCDE, e até ao pedido de adesão por este último.

O G20 de Nova Delhi ocorre em outras condições, bem mais difíceis do que os exercícios anteriores, sob o impacto do segundo ano da guerra de agressão da Rússia à Ucrânia, de certo modo uma extensão da mudança de humor já iniciada quando da invasão e anexação ilegal da península da Criméia em 2014, quando a Rússia foi expelida do então “puxadinho” do G8, uma das várias sanções econômicas introduzidas contra o agressor pelos países ocidentais. Naquela ocasião, rompendo com a tradição do Itamaraty de estrito respeito às normas do Direito Internacional e de absoluto respeito à Carta da ONU, a presidente Dilma Rousseff não tomou qualquer posição a respeito da grave violação da soberania ucraniana, a pretexto de que tal invasão era um “problema interno da Ucrânia”. Foi um primeiro exemplo do baixo acatamento, pela diplomacia presidencial, dos padrões habituais do Itamaraty de adesão a princípios consagrados da legalidade internacional, práticas mais adiante continuadas, sob diferentes pretextos, pela diplomacia de Bolsonaro e de Lula 3.

Putin não comparecerá ao G20 da Índia, assim como não compareceu ao Brics de Joanesburgo, provavelmente por causa do pedido de prisão por crimes de guerra na Ucrânia a pedido do TPI, a despeito do fato de a Índia não ser aderente ao Estatuto de Roma, o que era o caso da África do Sul, mas também sob a ameaça de ser acusado de ser o que é, pelos dirigentes dos países que apoiam a Ucrânia e o respeito devido à Carta da ONU. A Índia, aliás, teoricamente neutra nessa guerra de agressão, é uma das nações mais oportunistas, ao adquirir petróleo com desconto da Rússia, e possivelmente revendê-lo a preços mais elevados para outros países importadores de combustível. O Brasil, no mesmo sentido, expandiu num significativo percentual, suas importações de combustíveis da Rússia, contribuindo assim para o esforço de guerra de Putin, mesmo aderindo, teoricamente, a esse neutralismo mal disfarçado dos países do assim chamado “Sul Global”, que acaba beneficiando ao agressor.

Não se espera qualquer resultado relevante desse G20 “indiano”, para o mundo e para o próprio Brasil, a não ser o fato de que a presidência rotativa do grupo passa pelo prazo de um ano para o governo Lula, que terá assim a obrigação de organizar reuniões preliminares e outros grupos técnicos de sua preferência, como forma de preparar o encontro de cúpula do segundo semestre de 2024. Espera-se que o Brasil dê ênfase aos temas privilegiados pelo governo Lula na agenda internacional, como o combate às desigualdades e à fome, a cooperação nas iniciativas já tomadas em torno da sustentabilidade e outras questões habituais nesse tipo de encontro, com algum toque diferente que o Itamaraty ou o próprio governo possam sugerir. 

Num contexto no qual o encantamento inicial com a terceira presidência Lula já deu mostras de arrefecimento junto aos principais governantes dos países ocidentais – em princípio, exatamente por causa da violação ao Direito Internacional causada pela Rússia e pouco enfatizada pelo governo Lula –, essa presidência do G20 pode ajudar a corrigir um pouco essa má percepção de suas atuais “alianças” internacionais, ou continuar a empanar a sua imagem  junto ao Ocidente e até a liderança na própria região, onde outros líderes progressistas – como Boric do Chile, ou Petro da Colômbia – já deram mostras de maior comprometimento com uma diplomacia fundada no respeito à Carta da ONU. Esperava-se mais de um governo declaradamente a favor, assim como o próprio Itamaraty, da estrita solução pacífica das controvérsias entre Estados. 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4465, 31 agosto 2023, 3 p.

O Brasil aos olhos do mundo: como era antes, como ficou agora? - Paulo Roberto de Almeida (Crusoé)

O Brasil aos olhos do mundo: como era antes, como ficou agora? 

 

Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.

Artigo para a revista Crusoé.

Publicado em 4/08/2023 (link: https://crusoe.uol.com.br/edicoes/275/o-brasil-aos-olhos-do-mundo-como-era-antes-como-ficou-agora/).

  

Todo país, toda nação, exibe uma imagem aos olhos do mundo, por vezes com base em estereótipos simplistas, mas ainda assim identificados com alguma característica da nação em questão. Marco Polo deixou um testemunho direto da China sob a dominação mongol, com alguns exageros involuntários, o que alimentou a curiosidade dos europeus pelo fabuloso Celeste Império. A riqueza em ouro e prata dos impérios pré-colombianos no México e no Peru atuais atiçou a cobiça dos conquistadores ibéricos, prontamente seguidos por piratas e corsários de outros reinos europeus, saqueando galeões carregados dos preciosos metais. 

O Brasil da era do café e seus barões apreciadores dos cabarés de Paris suscitaram a criação de uma figura cenográfica, o “Brésilien d’operette”, o pródigo ricaço do interior, que acendia charutos com notas de 100 francos e bebia champagne nos sapatos das dançarinas de can-can. A prática era tão comum que deu origem ao termo, momentaneamente inscrito nos dicionários franceses, de paulistade, significando gastar à tripa forra nos cabarés. Mais tarde, na fase da aliança com os Estados Unidos da era Vargas, o típico carioca de Carnaval se transmutou no Zé Carioca do Walt Disney, junto com a cantora Carmen Miranda, acolhida por Hollywood, encantando a todos com seus balangandãs e a coroa de frutas na cabeça.

A imagem do Brasil esteve associada, durante muitas décadas, ao Carnaval e às selvas luxuriantes, mais adiante a Pelé, seguramente o brasileiro mais famoso do mundo, no tempo em que a Bossa Nova se juntou ao jazz para brindar ao mundo inteiro os encantos da praia de Ipanema ao ritmo das músicas de Tom Jobim e na voz suave de Astrud Gilberto. A ditadura militar ofuscou muito desse brilho, com a repressão truculenta na política e na cultura, mais as notícias pouco edificantes de extermínio dos indígenas, de destruição ambiental, de pobres dormindo nas ruas. A inflação astronômica, as crises financeiras e da dívida externa também grudaram na imagem do país durante as décadas seguintes, até praticamente o período recente, quando a corrupção política colocou o país, junto a várias ditaduras, nos primeiros lugares do ranking da Transparência Internacional. 

A despeito de tudo isso, nos governos Lula 1 e 2, o prestígio do Brasil aumentou enormemente, em função das viagens do presidente, de sua agenda social e pelo aparente dinamismo econômico, o que fez a Economist ilustrar uma capa de 2010 com a imagem do Cristo Redentor decolando como um foguete. Entretanto, pouco tempo depois, a revista inglesa ilustrou nosso novo declínio, com o mesmo Cristo despencando das alturas. A revista persistiu no ano seguinte, representando a corrupção do PT nos anos Dilma, com uma capa na qual uma passista fantasiada para o Carnaval afundava num pântano tropical. 

A imagem se deteriorou ainda mais a partir do governo Bolsonaro, primeiro pela destruição do meio ambiente e a devastação da Amazônia, pelas queimadas humanamente induzidas, assim como pela negação dos direitos humanos, das minorias em especial, depois pelo negacionismo durante a pandemia, e, de forma mais condenatória ainda, pelas seguidas tentativas golpistas. O capital de simpatia que poderia ter restado em duas ou três décadas de tribulações econômicas e de persistência da corrupção, veio abaixo com o afundamento da credibilidade diplomática do país, não só arranhada, mas praticamente demolida, por um presidente e um chanceler adepto de teorias conspiratórias antiglobalistas e que não se importavam ao ver o país transformado em “pária internacional”. 

Pode-se dizer que o mundo saudou a vitória de Lula, em outubro de 2022, como sendo a “volta do Brasil” ao cenário mundial, em especial na temática ambiental e nas questões sociais, ao mesmo tempo em que se faziam alertas contra as manobras continuístas do presidente derrotado. Raras vezes uma inauguração presidencial recebeu tanta atenção da mídia internacional e com a presença de dirigentes estrangeiros quanto a assunção ao poder de Lula 3 em janeiro de 2023, a despeito de declarações controversas já feitas sobre a guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia, equiparando ambos os contendores. Mesmo assim, o presidente foi objeto de considerações elogiosas nos meios de comunicação e em declarações de líderes dos principais parceiros do país, todos incluídos numa lista de viagens e visitas que “inflacionou” a agenda diplomática bilateral e a de grupos de países no início de 2023. 

As primeiras reações a um “neutralismo” mal disfarçado em favor do agressor foram cautelosamente moderadas, e Lula foi confirmado como um dos participantes convidados ao encontro deste ano do G7, em Hiroshima, no Japão. Antes dessa reunião, contudo, Lula recebeu em Brasília o ditador venezuelano Nicolas Maduro, com honras de visita de Estado, o que causou estranheza até entre os demais convidados da América do Sul, que ele acolheu no dia seguinte para discutir um improvável retorno da Unasul (que foi, como se sabe, dominada pelos chavistas, até se desacreditar por completo). O presidente brasileiro teve de ouvir de seus colegas chileno (de esquerda) e uruguaio (de direita) um desmentido aberto e cabal em face da “narrativa” que ele tentou apregoar, segundo a qual a Venezuela seria apenas uma democracia como as outras, rechaço que ele também teve de encaixar dos dirigentes de várias democracias ocidentais. Em Hiroshima, Lula fez de tudo para não se encontrar com o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky, ele sim recebido como um grande estadista de estatura mundial, o que certamente ofuscou o brilho que Lula esperava obter como um potencial líder de um fantasmagórico “Sul Global”. 

Um editorial do Globo, do dia 23 de maio de 2023, resumiu o revés que representou a reunião do G7 para os planos de Lula: “As potências ocidentais que saudaram sua chegada ao poder como um vento benfazejo depois do furacão Jair Bolsonaro já não parecem encará-lo com a mesma deferência. (...) Lula volta de Hiroshima menor do que chegou.” Esta parece ser a imagem que agora passa a marcar o Brasil de Lula no contexto mundial: uma promessa de inclusão no campo das democracias que ficou perdido no pequeno clube dos revisionistas da ordem global liberal. O Brasil já não é o que poderia ter sido...

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4415, 13 junho 2023, 3 p.