Temas de relações internacionais, de política externa e de diplomacia brasileira, com ênfase em políticas econômicas, em viagens, livros e cultura em geral. Um quilombo de resistência intelectual em defesa da racionalidade, da inteligência e das liberdades democráticas.
sexta-feira, 9 de julho de 2010
Aprenda diplomacia por sua própria conta (e risco)...
Confesso que tenho começado a me preocupar com o curso futuro das profissões baseadas em regime de guildas ou corporações de ofício, como é caso da minha própria, a casta diplomática, fundada, assim como o estamento vizinho dos economistas, em um sistema de seleção altamente especializado e exclusivo, que abre as portas para uma reserva de mercado destinada apenas aos iniciados nos segredos da “arte”.
Digo isto por uma razão muito simples. Ao percorrer as estantes de economia das grandes livrarias de Washington, o que faço com bastante freqüência, deparo cada vez mais com livros – no mais das vezes “livrinhos”, mas em alguns casos “livrões – voltados para a educação do público em geral, dando todas as regras e instrumentos para um bom début na profissão que antes se julgava fechada e restrita a uma tribo bissexta de indivíduos fanatizados por equações matemáticas e curvas de utilidade marginal, à imagem desses nerds – o nosso popular “cdf” – que se vêem nos filmes americanos para adolescentes. Pois não é que depois da voga dos livros espirituais e de auto-ajuda – a interminável sucessão de How to Do…? –, começaram a surgir guias rápidos para a nobre profissão de economista? Vejamos alguns títulos que eu já encontrei nas estantes:
- The Complete Idiot’s Guide to Economics;
- The Complete MBA for Dummies;
- Economics in One Lesson;
- One Day MBA in Management;
- The Instant Economist;
- Economics: A Self-Teaching Guide.
Tudo isso me cheira a dumping social e a concorrência desleal contra os true economists. De minha parte, comprei um outro tipo de manual, The Armchair Economist: Economics and Everday Life (Steven E. Landsburg), uma elegante discussão sobre os fundamentos da análise econômica que não usa sequer uma única equação, mas entendo que ele não se aplica aos nossos propósitos. Comecei a imaginar, então, como se poderia ter guias equivalentes para a outrora refinada e aristocrática profissão de diplomata:
- An Idiot’s Guide to Diplomacy
- The Complete Kit for Being a Good Diplomat
- Diplomacy in One Lesson
- Teach Yourself Diplomacy in One Day
- Diplomacy for Dummies
- The Instant Diplomat
Estaremos condenados a enfrentar uma horda de amadores, fazendo pressão sobre os nossos (já parcos) salários e retirando o caráter mais ou menos elitista (no bom sentido da palavra) de nossa profissão? Não; não precisa se preocupar: ainda não surgiram esses livros, muito embora eu mesmo tenha pensado em escrever, com base em minha experiência pregressa de negociador e de “pensador” desses processos, um Mercosul for Dummies e até mesmo um Idiot’s Guide to the FTAA. Por certo já surgiram e proliferam, desde Versalhes, os guias diplomáticos, desde os clássicos (e aborrecidos) de Harold Nicolson e de Ernest Satow, até os mais modernos, como o bem completo Guide to International Relations and Diplomacy, editado por Michael Fry, Richard Langhorne e Erik Goldstein (nada menos que 175 dólares). Mas eu me refiro, mais exatamente, a outros tipos de guias, algo como Diplomacy for Beginners ou então International Relations: A Do It Yourself Guide.
Esperando que um dia possam surgir esses tão preclaros quanto necessários guias do self-made diplomatist, decidi propor algumas simples regras para quem deseja seguir a profissão sem se submeter a esses exigentes concursos de provas do Instituto Rio Branco ou sem sequer precisar pedir ao presidente para que ele lhe designe para um desses postos cobiçados do exterior. Sendo um home-made diplomat, você estabelece suas próprias regras de procedimento e passa a reorganizar o mundo à sua imagem e semelhança, quem sabe até candidatando-se, algum dia, ao Prêmio Nobel da Paz?
Ao contrário do que muitos pensam, ser diplomata não é tão difícil quanto levantamento de peso nos Jogos Olímpicos ou acertar na loteria três vezes seguidas – como aquele deputado da comissão do Orçamento – e não se exige sequer experiência prévia, bastando uma certa dose de imaginação e muitas outras doses de um bom Scotch. Adquirindo um bom curso, quiçá em um dia você poderá estar habilitado a tratar dos mais difíceis problemas deste mundo, como a paz no Oriente Médio, o conflito Índia-Paquistão, as imunidades diplomáticas ligadas a um concurso de misses na Nigéria ou até mesmo o levantamento do embargo contra Cuba. Qual seria o segredo?:
Comece por aprender retórica, a arte de vender qualquer coisa. Se não puder ter um kit apropriado, faça apelo a esses programas de auditório: passe um dia e uma noite assistindo Ratinho, Silvio Santos, Faustão e até mesmo Jô Soares (embora ele seja mais propenso a complicar as coisas). Depois aprenda a falar em diplomatês – com a ajuda das novelas do horário nobre, por exemplo –, complementando essas lições essenciais com um curso rápido de diplomatês escrito, que pode ser feito por correspondência ou então obtido nos links de discursos do site www.mre.gov.br. Algumas lições de boas maneiras e de etiqueta também ajudam, mas hoje em dia, com a truculência exibida por certos serviços diplomáticos, todo esse protocolo pode ser facilmente substituído por aulas de kung-fu e de capoeira (mas não vale armas de destruição em massa).
Técnicas de relações públicas são essenciais para o sucesso na profissão, e também para uma boa progressão na carreira: houve mesmo um sujeito que galgou rápido os degraus da diplomacia, tendo sido alcunhado de “o guarda-chuva mais rápido da República”. Um outro foi apelidado de “João do Pulo”, tal a sofreguidão com que se alçou ao sommet embaixatorial, com a ajuda de uma boa caderneta de endereços, incontáveis idas aos aeroportos e muitos salamaleques por semana. Relações públicas são tão importantes quanto o trabalho, sem qualquer demérito para este último método, também eficiente, mas mais apropriado para os que não moram em lugares chic e não têm dinheiro de família para ostentar.
Por fim, um alfaiate competente pode fazer muito pela sua imagem, assim como brilhantina e uma vistosa coleção de gravatas. Roupas interiores podem ser compradas em lojas de departamentos, mas as camisas têm de ostentar uma certa griffe, do contrário você passará por um diplomata dos comuns, desses que são obrigados a ganhar a vida escrevendo memorandos e telegramas. Ofereça flores e tenha sempre pronto um mot-d’esprit para as damas e consortes que encontrar, mas não exagere nas aproximações: o próximo pode não gostar, a despeito mesmo de um certo grau de osmose nesses meios.
Você está preocupado com as matérias clássicas da diplomacia, tipo história, geografia, direito internacional, economia, línguas? Não há motivo para angústia: decore todo o Almanaque Abril e passe a ler os editoriais da Economist, pois ali está tudo o que você precisa saber para um desempenho satisfatório em 90% dos casos que for chamado a enfrentar. Os 10% restantes aprenda nos livros ou com gente mais esperta que você, o que estou certo existe em qualquer corporação.
Seja um otimista e desminta a Lei de Murphy: você pode se tornar um diplomata de sucesso estando nos lugares certos nos momentos certos. Mas para isso você vai precisar de uma boa astróloga, uma das profissões mais em voga no Brasil – ela acaba de superar os sociólogos – e quase tão cheia de certezas definitivas quanto a própria diplomacia. E, ao contrário do que dizem, não minta: não é preciso e não é eficaz. Não pratique, tampouco, a hipocrisia: apenas saiba calar quando for preciso.
Acomode-se, em contrapartida, na diplomacia virtual e passe a trabalhar em casa, com base na internet e em softwares de simulação (tipo War e até mesmo Diplomacy). Quando estiver cansado de um conflito, passe para outro, pois o bom mesmo da profissão é o nomadismo obrigatório, poder ser um flâneur rêveur nos Champs Elysées e no Hide Park. Com um pouco de sorte (e a ajuda daquela astróloga) você vai estar no lugar certo e no momento certo, quando por exemplo for assinado algum armistício ou um acordo comercial (lembre-se que isso costuma se dar em Genebra, Paris ou Nova York).
E quando quiserem lhe mandar para alguma savana ou altiplano, seja radical: ameace que vai ter de agregar e trabalhar para o cerimonial de Santo Antonio do Salto da Onça ou de Cabrobó da Serra, que isso costuma ter efeito dissuasório. Nem sempre funciona, mas tenha certeza de que você será muito bem recebido nesses lugares, onde aliás passarão imediatamente a lhe chamar de Senhor Embaixador e de Vossência. Não era isso mesmo o que você pretendia?
Paulo Roberto de Almeida
(um diplomata autodidata e nômade por natureza),
Washington, 2 de agosto de 2003 (1088)
Um comentário:
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Prezado Dr. P.R.A.,
ResponderExcluirAo vosso sucinto e prático "Breviário" político/diplomático, verdadeiro "manual de sobrevivência", permita-nos acrescentar a "dissimulação honesta"(Accetto) como antídoto contra a "simulação hipócrita" da guilda:
"XI.Del dissimulare con li simulatori
Quelli che si applicano al piacer della parte ch'è in noi soggett'alla morte, sprezzando l'uso della ragione, si mutano in abito di fere; perché tali son da riputarsi, come fu espresso da Epicteto stoico, dicendo:'Certe misellus homuncio, et caro infoelix, et revera misera. At melius quiddam habes carne; quare, misso illo et neglecto, carni duntaxat es deditus? Ob huius societatem declinantes a meliore natura quidam, lupis similes efficimur, dum sumus perfidi et insidiosi et ad nocemdum parati: alii leonibus, quia feri, immanes ac truculenti: maxima vero pars vulpeculae sumus".
Da che si può considerar un de' duri impedimenti nel dissimulare; poiché il guadarsi da lupi e da leoni è cosa piú pronta per la notizia che si ha della lor violenza, e perché poche volte si riscontrano; ma le volpi son tra noi molte e non sempre conosciute, e quando si conoscono, è pur malagevole usar l'arte contra l'arte, ed in tal caso riuscirà piú accorto chi piú saprà tener apparenza di sciocco, perché, mostrando di creder a chi vuol ingannarci, può esser cagion ch'egli creda a nostro modo; ed è parte di grand'intelligenza che si
dia
a veder di non vedere,
quando piú si vede, già
che cosí 'l giuco è
con occhi che pa-
ion chiusi e stan-
no in se stessi
aperti."
(Torquato Accetto, in:"Della dissimulazione onesta").
Vale!