De vez em quando, eu tropeço, literalmente, com algum texto antigo, do qual sequer me lembrava mais (essa mania de escrever demais, e de publicar em pasquins obscuros).
O texto abaixo, por exemplo, foi suscitado por um desses discursos chatos que todo ano o Brasil pronuncia na abertura do debate da AGNU (ainda que tenha sido feito em foro paralelo, não importa, o teor é o mesmo), que muita gente considera importante (deve ser), mas que eu não consigo levar a sério (que coisa!), pelo simples fato de que ele repete um ritual por demais conhecido, com o alinhamento, o realinhamento, a retomada, à la Lavoisier, dos mesmos argumentos dos tempos da pedra da diplomacia universal. Sinto muito, mas essa coisa toda já está ficando enfadonha, ou seja repetitiva, dormitiva, um sério concorrente ao Valium (copyright)...
Este aqui, por exemplo, trata do mais grave problema da humanidade. Acreditam? Não?
Incrédulos...
Destaco duas frases, apenas, do discurso da presidente, na reunião de alto nível da ONU sobre Segurança Nuclear, em 22/09/2011:
“O desarmamento nuclear é fundamental
para a segurança, pilar do Tratado de Não Proliferação cuja
observância as potências devem ao mundo”.
“É importante ter num horizonte previsível a eliminação completa e irreversível das armas nucleares“.
Confirmando minha vocação a ser um
contrarianista — posição que assumo voluntariamente, de conformidade com
meu espírito desconfiado, feito de ceticismo sadio em relação a
quaisquer argumentos que se me apresentem como verdades incontestáveis —
formulo aqui algumas dúvidas em relação a estas frases.
Por que o desarmamento nuclear seria fundamental para a segurança internacional?
Ele é, de fato, o “pilar do Tratado de Não Proliferação”?
Respondo de imediato a esta segunda questão por um sonoro NÃO.
Não, o desarmamento nuclear não éo, ou sequerumpilar,
do TNP, ainda que possa nele aparecer de forma preeminente. Nem de
longe, contudo, ele é o que diz que pretende ser, e basta conhecer um
pouco da história, das realidades geopolíticas, para chegar à conclusão
simplória de que a frase fatídica, sobre o desarmamento dos nuclearmente
armados, figura ali apenas como figuração, justamente, para contentar
os ingênuos, ou incautos, e impedir que eles protestassem em demasia
contra um “tratado iníquo e discriminatório”, como proclamava a
diplomacia brasileira nos “bons velhos tempos” (isto é, quando posávamos
de “machos”, de contrarianistas, se ouso dizer, contra a hipocrisia dos
poderosos, quando a gente acreditava que eles queriam “congelar o poder
mundial”, no que aliás continuamos acreditando ainda hoje, nessa
interminável repetição de slogans).
O pilar do TNP é a não-proliferação, ou
seja, barreiras contra o armamentismo nuclear dos ainda não nucleares,
ponto. Isso é tudo.
Os três grandes — na ausência de dois
outros nucleares à época, China e França — arranjaram entre si um
instrumento para bloquear o acesso às armas nucleares aos eventualmente
desejosos de fazê-lo, prometeram cooperação nuclear para fins pacíficos —
o que é feito a conta-gotas, e sob estritas condições — e ofereceram
como cenoura o tal de desarmamento nuclear deles próprios.
Alguém acredita nisso?
Pode ser que sim, talvez o Itamaraty, que vive cobrando essa parte do Tratado desde que a ele aderiu em meados dos anos 1990.
Alguém acredita que seria possível colocar o gênio dentro da garrafa outra vez? Que as potências nucleares vão de fato desarmar?
Isso é possível? Respondo novamente por um sonoro não.
Ninguém consegue “desinventar” uma
tecnologia. Ninguém se priva de uma segurança que foi conquistada a
duras penas, e que se busca justamente manter exclusiva, única,
assimétrica.
O TNP é apenas um tratado do desarmamento nuclear dos outros, ponto.
Venho agora à pergunta mais importante:
Seria verdade que o desarmamento nuclear é fundamental para a segurança internacional?
Não creio que a presidente tenha
formulado ela mesma esse argumento. Ela simplesmente o comprou do
Itamaraty, que colocou tal frase no discurso porque isso faz parte da
ideologia diplomática, ou das ilusões diplomáticas — não apenas
brasileiras, diga-se de passagem — nos últimos 50 anos, ou mesmo mais.
Alguém já parou para pensar — e nesse
processo desmantelou algumas ilusões diplomáticas — de que pode ser
exatamente o contrário: que as armas nucleares aumentaram a segurança
mundial, e evitaram muitas mortes que de outra forma seriam inevitáveis?
Pensem um pouco — enfim, apenas os que desejarem realmente pensar — e perguntem comigo:
Se não existissem armas nucleares, o que existiria?
Provavelmente as mesmas armas que
tínhamos ao final da Segunda Guerra Mundial, um pouco (ou bastante) mais
aperfeiçoadas: tanques, canhões, bombardeiros, granadas, minas,
mísseis, lança-chamas, fuzis, baionetas, estilingues, etc., etc., etc.
Ou seja, nada que pudesse deter um
dirigente maluco de deslanchar uma guerra contra um outro país, na
medida em que se tratavam de “armas normais”, de tecnologias dominadas
e, com exceção de um ou outro componente mais aperfeiçoada (fortalezas
voadoras, por exemplo, ou mísseis de longo alcance), tudo poderia ser
mobilizado por qualquer país que tivesse uma base industrial
medianamente desenvolvida.
Afinal de contas, Hitler deslanchou sua
guerra em duas frentes com base nesses mesmos meios, ainda que
desejasse, rapidamente, dispor de mísseis mais poderosos e que seus
cientistas apostassem, furiosamente, no domínio da tecnologia nuclear,
já teoricamente disponível em sua época.
Sorte nossa que ele não conseguiu, pois
imaginem vocês se Hitler tivesse submetido a Grã-Bretanha, neutralizado
os EUA, destruído a Rússia de Stálin, e se estabelecido como o grande
ditador de todos os tempos, um Gengis Khan moderno, com a colaboração
acintosa de tiranetes como Mussolini e os fascistas-militaristas
japoneses, no trabalho de escravizar povos inteiros e colocá-los a
serviço da Alemanha nazista?
Que tal a perspectiva?
Alguém iria conseguir um tratado de desarmamento contra Hitler, depois?
Se eu disser, por exemplo, que as duas
bombas atômicas americanas sobre o Japão, em agosto de 1945, salvaram
vidas, em lugar de aumentar o número de mortos, serei provavelmente
“massacrado”, literal ou virtualmente, pelas consciências puras do
desarmamentismo nuclear. Não me importa: isto é um fato. As bombas
nucleares, por mais horríveis que possam ter sido, salvaram milhares de
vidas A MAIS do que as que pereceram no “holocausto” de Hiroshima e
Nagasaki. Salvaram centenas de milhares de soldados e civis japoneses,
nas frentes de combate e nos bombardeios aéreos devastadores sobre
Tóquio e outras cidades japoneses, e salvaram dezenas de milhares de
soldados americanos, que teriam de lutar na ponta da baioneta contra
soldados fanatizados, que tinham jurado dar a vida pelo Imperador. Elas
salvaram vidas, ponto!
Mas, retornemos à questão principal. Em que sentido o desarmamento nuclear tornaria o mundo mais inseguro, não mais seguro?
Ora, isso é evidente pelo próprio fato de
que o mundo não deixou de ter guerras depois que as armas nucleares
foram inventadas: morreram milhões de pessoas desde 1945, vítimas de
minas, de artilharia, de bombardeios aéreos, de napalm, de fuzis, de
machetes, de fome, ou de quaisquer outros vetores associados às guerras
(civis, étnicas, tribais, religiosas, entre Estados, atentados
terroristas, etc.).
O que o mundo deixou de ter, depois de
1945, foram guerras globais, ao estilo napoleônico, mobilizando
exércitos nacionais e populações inteiras contra outros exércitos
nacionais e outras populações. Ou se ocorreram, foram limitadas, como na
Coreia, no Vietnã, no Oriente Médio, sem a confrontação direta das
grandes potências, como tivemos na Europa e no mundo desde o
Renascimento até 1945, justamente.
Não pretendo elaborar muito a respeito,
mas minhas conclusões são tão evidentes, que não creio ser necessário
desenvolver meu raciocínio: as armas nucleares trouxeram mais segurança
ao mundo, e pouparam vidas, ponto.
Algum matemático historiador, ou algum
econometrista geopolítico poderia até fazer os cálculos e, com base em
estimativas feitas a partir dos grandes conflitos globais desde a era
napoleônica até 1945, avaliar quantos teriam sido os mortos — inocentes
ou não, que pereceriam, potencialmente, em mais uma ou duas guerras ao
estilo da Segunda Guerra Mundial, sem o recursos às armas nucleares,
portanto. Não creio, sinceramente, que teríamos ficado a menos de 50 ou
60 milhões de mortos (por baixo, claro).
Enfim, nem todo mundo precisa de armas
nucleares para exterminar pessoas. Mao Tsé-tung, por exemplo, não
utilizou arma nenhuma, apenas uma “economia política esquizofrênica”,
para eliminar 25 ou 30 milhões de chineses no “grande salto para a
frente”, entre 1959 e 1962. Enfim, ele também foi o responsável por mais
algumas dezenas, talvez centenas de milhares, durante a “grande
revolução cultural proletária”, entre 1965 e 1975, mas pode-se sempre
argumentar que muitos mais morreram nos “gulags” normais de Stalin e do
próprio Mao, ao longo de seus experimentos totalitários.
Mas imaginemos dirigentes menos
responsáveis na posse de armas nucleares em face de confrontos entre
grandes Estados? O próprio Mao Tsé-tung, por acaso, dizia não temer as
armas nucleares americanas hipoteticamente utilizáveis na guerra da
Coreia, demonstrando todo o seu espírito belicoso mais de dez anos antes
que a China conquistasse o seu próprio domínio sobre armas nucleares
(após o que ela se mostrou mais responsável, mesmo sem ter assinado o
TNP, até o início dos anos 1990). Os dirigentes cubanos, igualmente
irresponsáveis, estavam dispostos a ir até o fim, no confronto nuclear
entre EUA e URSS no caso dos mísseis nucleares soviéticos instalados em
Cuba em 1962: Fidel Castro e Ché Guevara estavam dispostos a
“testar” armas nucleares contra New York e Washington, mesmo se isso
representasse a aniquilação de metade, ou mais, da população cubana
(Guevara acreditava que isso representaria o “fim do capitalismo e do
imperialismo americano”).
Qualquer que seja a perspectiva que se
assuma sobre as armas nucleares, portanto, pode-se dizer que elas
refrearam, sim, os instintos guerreiros de muitos dirigentes políticos.
Pode até ser que alguns militares malucos acreditem que “armas nucleares
táticas” sejam armas de terreno, e possam, assim, ser integradas a
doutrinas e estratégias militares. Não creio, porém, que estadistas
responsáveis acreditem nesse tipo de “doutrina” e estejam dispostos a
“testá-la”.
Pode-se concluir, então, que as armas
nucleares aumentaram, não diminuíram, a segurança no mundo, e parece
impossível reverter esse cenário de equilíbrio instável (que aliás,
confirma o prognóstico aroniano de 1947: “paz impossível, guerra
improvável”).
E quanto ao TNP? Não há muito a dizer:
continuará a ser aquilo que a diplomacia brasileira diz sobre ele desde
1968: “um tratado iníquo e discriminatório”, ponto. Não há muito que se
possa fazer a respeito, no futuro previsível.
Resta, finalmente, esta outra afirmação, com estes mesmos conceitos:
“É importante ter num horizonte previsível a eliminação completa e irreversível das armas nucleares.”
Será? Importante? Talvez. Necessário? Duvidoso. Completa e irreversível? Provavelmente não, nem completa, nem irreversível.
Frustrante? Talvez. Realista? Provavelmente.
Acho que as coisas ficam mais claras assim.
Paulo Roberto de Almeida é diplomata, professor universitário e autor de Globalizando. (www.pralmeida.org)
Um comentário:
"(...)acredito que a sabedoria da criatura humana em evitar a guerra é, muitas vezes, ultrapassada por sua loucura em promovê-la.(...)"
"(...)Visto a ciência haver criado novas e prodigiosas armas de destruição, devem os Estados Unidos manter seu arsenal nuclear ; não só devem mantê-lo como precisa ser ele de tal magnitude que possa impedir qualquer nação de forçar seu emprego.(...)"
*Robert Strange(!) Macnamara, ex-Secretário Americano de Defesa (1960-1968); in:"The Essence of Security:Reflections in Office", HAPER & ROW, PUBLISHER, INC., New York-N.Y., 1968.
Sugerimos o documentário de Errol Morris, vencedor do Oscar em 2003, "The Fog of War:Eleven Lessons from the Life of Robert S. Mcnamara":
http://www.youtube.com/watch?v=KkQk50qtTwo *(original inglês)
http://www.youtube.com/watch?v=PE9o48AGWb4 *(legendado)
Vale!
P.S.:Sugerimos ainda, como complemento, o documentário "NUCLEAR TIPPING POINT"; apresentado pelos outrora chamados "The Four Horsemen of the Nuclear Apocalypse"(George P. Shultz, William J. Perry, Henry A. Kissinger e Sam Nunn); hoje "defensores" de um mundo livre de armas nucleares junto ao "Nuclear Security Project-NSP" do "Hoover Institution":
http://www.nucleartippingpoint.org/film/film.html
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