Julio Daio Borges
Em Por que Gostamos de História, você conta um pouco da venda de seus pais, em Sorocaba. Como foi nascer um historiador filho de comerciantes? Como você chegou na História?
Mesmo que eu não fosse historiador profissional precisaria recorrer muito à História. Nasci e cresci em um bairro operário de Sorocaba, ao lado de várias indústrias. Os fregueses do meu pai eram, quase todos, trabalhadores têxteis ou das oficinas da então Estrada de Ferro Sorocabana. Apitos das fábricas regulavam meus dias, dias de pagamento dos operários determinavam o fluxo de caixa da loja do meu pai, feriados cristãos e festas judaicas, mais do que o registro dos meses, marcavam o ano para mim.
Compreender o que acontecera com a grande família dos meus pais na Europa (mais de 100 parentes foram trucidados pelos nazistas), entender as greves e os movimentos operários dos amigos do meu pai em Sorocaba, situar-me como ser histórico no meio disso tudo era fundamental. Seria estranho eu não ter me tornado historiador.
Depois, mais para frente, você monta e dirige a editora da Unicamp. Agora, gostaria de saber como o historiador foi se encaminhando para o trabalho editorial?
Quando, muito jovem, e defendi meu doutorado na USP, a Faculdade de Filosofia de Assis, onde eu trabalhava, decidiu publicar, entre outras teses, a minha. Uma gráfica de São Paulo foi encarregada de editar a obra. Foi quando me aproximei do trabalho editorial pela primeira vez (estou falando de livros; já havia colaborado em jornais de Sorocaba, escrito no jornal escolar e fundado um outro chamado A luta estudantil).
Depois disso colaborei com várias editoras como coordenador de coleções, selecionador de obras, conselheiro etc. Quando o reitor da Unicamp decidiu criar a editora da universidade e nomeou um conselho, fui escolhido pelos colegas para ser o diretor-executivo, cargo que exerci por quase 5 anos.
Mais adiante, você funda a sua própria editora, a Contexto. Então, desta vez, pergunto: como o historiador passou a editor e, finalmente, empresário do mercado editorial?
Com a mudança de reitor na Unicamp coloquei o cargo à disposição, permaneci (a pedido dele) mais alguns meses, mas já inoculado pelo vírus da atividade editorial, com um projeto claro na cabeça (aproximar os produtores do saber, principalmente na Universidade, do leitor; promover a circulação do saber) decidi colocar minhas economias no projeto de uma editora própria.
A ideia inicial era formar uma sociedade com colegas da Unicamp e da USP, mas estes preferiram não investir dinheiro ― trabalhando apenas como coordenadores de áreas.
Desta forma instalei a Contexto em minha própria casa, colocando uma máquina de composição em plena sala (em cujos cantos ficavam pilhas de livros recém-chegados da gráfica). Em nenhum momento tive medo, tinha certeza de que o projeto daria certo.
Hoje, como você se divide? Qual Jaime Pinsky prevalece? Sei que equilibrar trabalho intelectual com administração de uma empresa não é para qualquer um. Logo, qual é o seu segredo?
O mundo de hoje permite uma multiplicidade de identidades, desde que elas não sejam contraditórias.
Livre de atividades administrativas na universidade, sem obrigações de aulas, aos poucos deixei de participar de bancas de doutorado e parei de dar pareceres em projetos apresentados aos órgãos financiadores de pesquisa (isso toma muito tempo de quem leva essas tarefas a sério).
Durante alguns anos administrei sozinho a Contexto, mas, com seu crescimento, comecei a procurar um sócio. Depois de cogitar de alguns nomes, decidi convidar, para fazer parte da empresa, meu filho Daniel, que tinha estudado administração de empresas. Ele cuida das áreas comercial e administrativa.
Com isso posso me dedicar mais à área editorial e de produção. Dividimos, é claro, as grandes decisões em todas as áreas.
Ora, a área editorial consiste, primordialmente, em selecionar textos, ler e escolher, sugerir alterações. A editora tem quase 1000 autores, grande parte da nata dos produtores de conhecimento (os que produzem, não os que ficam fazendo fofoca nos corredores das faculdades). É um privilégio trocar ideias com essa gente.
Ainda sou muito convidado para palestras (aceito poucas, sou um pouco preguiçoso), mas com a leitura que faço dos originais, de textos apresentados para tradução, com as conversas que tenho com os autores, acho que sou hoje melhor historiador do que quando estava na ativa dando aulas.
Uma coisa que eu, particularmente, admiro na Contexto é o espírito familiar. Como se fosse uma continuação daquele espírito dos seus pais, que te fizeram participar da loja deles. Gostaria de saber como os Pinsky hoje se distribuem na editora e como preservam a harmonia familiar?
Quando escolhi a carreira acadêmica sabia que se tratava de um trabalho pessoal, não o de um negócio de família. Não imaginava ter familiares ligados à minha atividade profissional. Circunstâncias fizeram com que familiares entrassem na editora.
Mirna, mãe dos meu filhos, participou do projeto inicial da editora, coordenando a área de literatura juvenil, que acabou sendo desativada por conta do nosso divórcio. Daniel, como já disse, me deixa tranquilo com sua capacidade de administrar e sua criatividade na área comercial. Luciana, minha caçula, depois de trabalhar em revistas e jornais relevantes, também optou por trabalhar comigo e agora faz parte da sociedade. Ela é a editora, coordena todo o trabalho operacional. Sua formação de jornalista e historiadora (pela USP) e sua preocupação com a língua, garantem a qualidade final dos textos publicados. E Carla, minha mulher há vinte anos, é uma editora muito eficiente, além de fazer parte do Conselho Editorial interno, que se reúne semanalmente.
A harmonia é resultado de uma postura de respeito mútuo. Sou pai, sou marido, sou avô, mas nas relações de trabalho respeito a opinião de todos, o que é fácil de dizer, mas difícil de fazer. É preciso ter a modéstia de não se achar o único dono da verdade. É muito frequente encontrar pais que se afastam de seus filhos quando estes ficam adultos por não conseguirem lidar com espíritos independentes. Eles perdem muito. Acho que uma das minhas qualidades femininas é ser agregador...
Muitos dos textos de Por que Gostamos de História enfocam atualidades, pois foram originalmente escritos para jornal. Assim, tenho a curiosidade de saber a opinião do historiador Jaime Pinsky sobre a recente onda de protestos que eclodiu no Brasil.
Após mais de quinhentos anos, dos quais apenas alguns em ambiente democrático, ainda presenciamos um divórcio total entre a Nação e o Estado, entre as "autoridades" e a sociedade. Esta deseja que Executivo, Legislativo e Judiciário de fato representem a Nação, o que não ocorre atualmente.
Convulsões como essa poderão ser mais frequentes e mais intensas se aqueles que ocupam o poder não se derem conta de que devem abrir mão de parte de suas vantagens materiais ou simbólicas.
Isto significa democratizar o poder. Isto significa também dialogar de verdade. Isto significa acabar com práticas inconcebíveis em uma democracia, desde o assalto explícito aos cofres públicos até a emissão de passaportes diplomáticos para familiares de políticos ― assim como administração mais transparente e fim de atribuição de cidadania de segunda e até terceira classe para os que não possuem amigos no poder.
A internet tem essa vocação de "biblioteca" ― apesar de, muitas vezes, se aproximar mais da "Biblioteca de Babel", de Borges. Enfim, lindando com a internet todos os dias, você acha que o interesse dos jovens pela História tende a aumentar?
O Ocidente não está mais considerando as religiões como explicadoras do mundo. Enquanto Adão e Eva resolviam o assunto, a História não era tão importante. Agora é necessário recorrer a ela para nos entendermos como seres reais: pessoas que falam determinada língua, têm certo padrão de comportamento, possuem um universo de valores e não outro, e por aí afora.
A internet para mim não significa nada em si. É como se me perguntassem: "E o papel?". Creio que, aos poucos (não sei quanto tempo isso vai levar), vai haver uma depuração e as pessoas não vão mais dizer, idiotamente, que acharam "na internet", mas qual a fonte. Pela rapidez ― e pela frequente leviandade ― com que as coisas são colocadas na internet, fica muito mais difícil selecionar notícias relevantes (e fidedignas) das irrelevantes (e não fidedignas). De resto, notícia não é fato histórico. Temos, portanto, um longo caminho pela frente.
Alguém uma vez disse que a política é a História no dia a dia. Continuando o assunto mais quente do momento, você tem esperança de que as novas ferramentas de comunicação e organização social possam renovar ou mesmo refundar nossa democracia participativa?
A agilidade das ferramentas de comunicação atuais facilita a comunicação, o encontro das pessoas, o questionamento das relações poder/sociedade, o desmascaramento de atitudes populistas de governantes, sem dúvida. Mas a reorganização da Nação tem que ser estruturada a partir de novas formas de diálogo organizado, além da democracia representativa que temos.
Não há como transformar o Brasil em uma imensa ágora, como se estivéssemos vivendo em Atenas, há 25 séculos, em uma sociedade com escravos, cujo trabalho permitia que os cidadãos (só os homens) ficassem vários dias deliberando em praça pública. Mas é possível reforçar e valorizar Conselhos Municipais, organizações de bairro, redefinir o papel do Judiciário e do Legislativo, transformar essa democracia formal que temos em uma democracia real.
Por fim, gostaria que você endereçasse algumas palavras àqueles que nos lêem e que, muito provavelmente, se sentiram inspirados pela sua trajetória. O que dizer ao jovem historiador brasileiro? E ao jovem editor? E ao jovem empresário?
Todos gostam de História, como diz o título do meu livro ― só não gostam os que não tiveram bons professores.
Lembro-me de uma senhora, esposa de um médico famoso, que foi me procurar no intervalo de um concerto no antigo Teatro Cultura Artística. Ela dizia que seu filho desejava fazer faculdade de História e, "ser um Jaime Pinsky". "Queria lhe pedir", disse ela, "que o dissuadisse dessa intenção, pois isso não dá dinheiro", ela acrescentou. Eu indiquei a ela a plateia, cheia de empresários, economistas, administradores, todos profissionais bem sucedidos e lhe disse: "Peça isso a qualquer um, qualquer pessoa da plateia, menos a mim. Eu nunca dissuadiria ninguém de querer ser historiador."
Há dois meses um jornalista de importante órgão de imprensa me entrevistou. No final da entrevista disse estar fazendo doutorado em História. Era, por incrível coincidência (ou não) o filho daquela senhora...
Vivemos o fim da era de Gutemberg. Novas mídias solicitam novos editores. Mas não adianta muito ser um técnico. Conhecer, de modo organizado e coerente, parte do patrimônio cultural da humanidade é fundamental para um editor, cuja função é estruturar e passar adiante esse patrimônio. Saber selecionar, fazer escolhas, adequar é quase um trabalho de professor, estabelecer conexão entre o que a humanidade já produziu e o que o aluno (ou o leitor) conhece.
Quem ficar apenas com a tecnologia poderá ganhar dinheiro, mas não terá nenhuma importância como editor. E editor desimportante é editor dispensável.
Para ir além
Por que Gostamos de História
Julio Daio Borges
São Paulo, 5/8/2013
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