Não sei quem o redigiu, mas a impressão que dá é de um imenso amadorismo, ignorância mesmo, de seus autores, pois a inépcia é impressionante, o que só pode revelar que foi feito por amadores e por fundamentalistas políticos, sem qualquer conhecimento do que sejam relações internacionais ou diplomacia.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 11 de março de 2019
Paulo Roberto de Almeida
[Objetivo:
comentários a um programa de política externa; finalidade: esclarecimento]
Introdução
Insuficiente, segundo o dicionário do Google (convertido
em “pai dos burros”, nos tempos que correm), é a condição ou qualidade de alguma
coisa, qualquer coisa, “que não é suficiente” – o que é, obviamente, uma
redundância – ou então que é “pouco, escasso”, ou então “que não alcança a
qualidade necessária; fraco, medíocre, insatisfatório”. Pois bem, por que digo
isto?
Acabo
de tomar conhecimento do programa do candidato Bolsonaro ao governo do Brasil,
um documento sintético de 81 páginas, com muitos adjetivos e grandes
exclamações, das quais, confesso, não ter lido mais do que meia página, a 79,
relativa à política externa que o candidato pretenderia exercer. Na verdade,
essa seção, ínfima, portanto correspondendo inteiramente às definições acima,
não se dedica exatamente ao tema, como se pode verificar que transcrição que
efetuo aqui abaixo:
O
“programa” de política externa
O NOVO ITAMARATY (p. 79 do documento)
•
A estrutura do Ministério das Relações Exteriores
precisa estar a serviço de valores que sempre foram associados ao povo
brasileiro. A outra frente será fomentar o comércio exterior com países que
possam agregar valor econômico e tecnológico ao Brasil.
•
Deixaremos de louvar ditaduras assassinas e
desprezar ou mesmo atacar democracias importantes como EUA, Israel e Itália.
Não mais faremos acordos comerciais espúrios ou entregaremos o patrimônio do
Povo brasileiro para ditadores internacionais.
•
Além de aprofundar nossa integração com todos os
irmãos latino-americanos que estejam livres de ditaduras, precisamos
redirecionar nosso eixo de parcerias.
•
Países, que buscaram se aproximar mas foram
preteridos por razões ideológicas, têm muito a oferecer ao Brasil, em termos de
comércio, ciência, tecnologia, inovação, educação e cultura.
•
Ênfase nas relações e acordos bilaterais.
Feita
a transcrição, vejamos o que eu poderia dizer sobre esse “programa” que não é
um programa, e sim um ajuntamento de frases, manifestamente a cargo de um
neófito – definição deste substantivo masculino, tudo relativo à religião: “pagão recém-convertido ao cristianismo; pessoa que vai
receber o batismo ou recentemente batizada; cristão-novo” –, pouco afeito aos
temas de política externa, a quem encarregaram de dizer algumas coisas sobre o
que se imagina ser o trabalho do Itamaraty. Vou apenas analisar topicamente o
que me parecem ser a insuficiências desse “programa”, e depois elaborar um
pouco a respeito do seria um conjunto de propostas na área externa.
Comentários
pessoais
A
política externa de um governo não pode limitar-se ao Itamaraty, ainda que ele seja
chamado de “novo”. O “velho” Itamaraty, do seu lado, sempre se ocupou de política
externa, mas a instituição, por mais venerável que fosse, ou seja, é apenas um
instrumento, uma espécie de “ferramenta”, a serviço da política externa, que é
definida, vale lembrar, pelo presidente da República. Sua estrutura, seja
alguma nova ou mantida a “velha”, não tem muito a ver com a substância mesma
dessa política externa, pois trata-se de uma ferramenta operacional que pode
ser mudado segundo os requerimentos da política externa, que tampouco pode ser
resumida unicamente aos “valores do povo brasileiro”, ou às atividade de
“comércio exterior”. Ela abrange uma vasta gama de temas – bilaterais,
regionais e multilaterais – nos terrenos político, econômico, ou de cooperação
científica e tecnológica e de assistência ao desenvolvimento, assim como de
apoio à capacitação do Brasil numa série de terrenos, como por exemplo, de atração
de investimentos e até de engajamento em operações de paz, eventualmente
determinadas pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas.
O
segundo item do “programa” não é exatamente uma proposta, mas uma simples
invectiva contra as deformações daquilo que pode ser chamado de “diplomacia lulopetista”.
É certo que o lulopetismo diplomático cultivou boas relações diplomáticas – e
até em outras esferas – com as ditaduras mais execráveis da região e do mundo,
mas uma mudança nessa área significa apenas retornar ao padrão normal do
Itamaraty, que sempre foi o de manter relações corretas com quaisquer países,
sem expressar opiniões ou manter “relações paralelas” – clandestinas ou
secretas, como infelizmente foi o caso naquele regime – com alguns deles, em
função de simpatias ideológicas, ou até de interesses não exatamente
republicanos, possivelmente na linha daquilo que o lulopetismo fazia no próprio
plano interno, sobretudo em matéria de iniciativas econômicas ou acordos
“espúrios” com essas ditaduras. Não cabe, no entanto, num programa de governo,
efetuar distinções desse tipo, apontando para certos países e não outros; se
for para seguir o padrão “normal” do Itamaraty, que é o de uma diplomacia
universalista, e portanto, não discriminatória, o correto está em manter
relações com todos os demais membros da comunidade internacional, segundo
nossos interesses.
O
mesmo tipo de discriminação ocorre, em certa medida, no item seguinte, que diz
expressamente isto: “Além
de aprofundar nossa integração com todos os irmãos latino-americanos que
estejam livres de ditaduras, precisamos redirecionar nosso eixo de parcerias.”
O conceito de integração é muito vago, pois depende de qual conteúdo se lhe pretende
imprimir, se zona de livre comércio, ou uma simples área de preferências
tarifárias, ou mesmo a continuidade desse projeto de mercado comum, que é o
objetivo do Tratado de Assunção, que criou o Mercosul. Um programa de governo
não deveria expressar essa restrição qualitativa no caso de “ditaduras”, pois
introduziria certo grau de subjetivismo nas políticas de governo, uma vez que
existem outras ditaduras com as quais o Brasil mantém relações normais, sem todavia
pretender aprofundar qualquer tipo de integração ou cooperação mais estreita.
O
Brasil, na verdade, necessita de maior inserção internacional, o que pode ser
feito por abertura econômica e liberalização comercial, até de forma unilateral
se for o caso. Processos de integração requerem negociações bilaterais ou
plurilaterais que são necessariamente lentas e difíceis, mas mesmo isso exige uma
definição prévia de qual seria a sua política comercial, de modo estrito, e, de
modo amplo, a sua política econômica externa. Por outro lado, “redirecionar o
eixo de parcerias” não prejulga minimamente quanto à natureza ou a orientação
dessa “reorientação”.
Não
parece haver, por outro lado, uma estratégia muito clara quanto a esses “países
que foram preteridos por razões ideológicas”, pois a frase soa mais como uma
reclamação contra o lulopetismo diplomático (que de resto já, mudou desde os
dois anos decorridos desde o final do regime companheiro) do que como um
programa de governo. O Itamaraty sabe exatamente quais são os países que podem
oferecer as melhores oportunidades em todos esses campos mencionados, ainda que
algumas escolhas anteriores – como as de grupos regionais como Ibas, Unasul e
Brics – permaneçam na agenda diplomática da atualidade, o que caberia, talvez,
revisar.
Por
fim, pretender atribuir “ênfase
nas relações e acordos bilaterais” é uma, entre várias outras modalidades de
relações exteriores, que passam ainda pelo regionalismo, multilateralismo,
interregionalismo, plurilateralismo, ou simplesmente universalismo, com base numa
definição ad hoc, ou seja, uma estratégia adaptada às diferentes circunstâncias
dessas relações externas, de acordo com a natureza do assunto a ser tratado com
parceiros estrangeiros. O bilateralismo estrito é necessariamente redutor das
oportunidades oferecidas pela economia global, quando se assistem a negociações
de mega-acordos comerciais, ou de investimentos, mobilizando um número muito variado
de países (a exemplo do TPP ou de outros na área da Ásia Pacífico).
Um programa de política externa
Um programa consistente de política externa deve
partir de diretrizes gerais, que são definidas basicamente a partir das grandes
orientações diplomáticas e econômicas de um governo determinado, para depois se
debruçar sobre áreas temáticas: relações políticas nos planos bilateral,
regional e multilateral, justamente, ou sobre os objetivos econômicos que se
pretende alcançar, = situados nas área de comércio, investimentos, laços de
cooperação em ciência e tecnologia, etc. Cabe dar devida atenção à “geografia”
da política externa, ou seja, as prioridades no imediato entorno geográfico e a
amplitude que se pretende dar às grandes parcerias externas: a Ásia, com
destaque para a China, se afirma claramente como a área de maior dinamismo
relativo na economia global, mas a África também parece oferecer boas
perspectivas de crescimento econômico nos próximos anos.
Existem, por outro lado, temas que já estão colocados
na agenda internacional, e sobre os quais o Brasil precisa ter posições claras,
e definir alianças pragmáticas, não aquelas ditadas por simpatias ideológicas
como parecia ser o caso anteriormente. Outros temas podem resultar da própria
iniciativa do Brasil, como o aprofundamento da integração regional, por exemplo.
Muitos dos temas que devem necessariamente integrar uma agenda de política
externa passam, antes, por reformas internas, pois parece meridianamente claro
que é o Brasil que se encontra defasado em relação à agenda da globalização,
introvertido e protecionista como ele sempre foi, e ainda é.
Diretrizes setoriais precisam ser definidas com
clareza em função dessas mesmas necessidades (ou carências) internas, e elas
passam, por exemplo, por uma agenda de produtividade, que por sua vez remete a
um programa – talvez a uma verdadeira revolução – no plano educacional,
provavelmente o maior desafio que a sociedade brasileira tem para consigo mesma.
A política externa pode ser orientada para essas áreas, mas as diretrizes a
serem dadas ao Itamaraty – bem como às outras agências do governo – precisam
partir do presidente, ou de seu gabinete, com uma visão clara, integrada, de
como a agenda de reformas internas vai se coordenar com a ação externa do
Itamaraty. Relações regionais e com grandes parceiros também precisam
adequar-se a essa lista de prioridades gerais do governo, e não serem definidas
de modo abstrato, ou principista, para serem conduzidas de modo mecânico pelo
Itamaraty.
De forma geral, o Brasil precisa passar por reformas
radicais no plano interno, e a política externa tem de ser coadjuvante desse
processo. O ingresso do Brasil na OCDE, por exemplo, não pode ser visto como um
objetivo em si, mas meramente como um meio para acelerar, aprofundar,
qualificar esse processo de reformas internas, preferencialmente visando à
intensificação de nossa inserção na economia global, o único caminho para uma
modernização exitosa das estruturas internas.
Havendo uma definição clara de quais objetivos o
Brasil pretende atingir nos planos interno e externo, o Itamaraty, novo ou
“velho”, será perfeitamente capaz de adaptar suas estruturas e ferramentas para
coadjuvar esse processo de reformas modernizantes.
Paulo Roberto de
Almeida
Brasília, 15-16 de
agosto de 2018
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