Debate sobre o Brasil no
mundo: questões de política externa
Paulo Roberto de Almeida
Dez meses do novo governo: já se
pode fazer um balanço da política externa?
A despeito
das muitas dúvidas sobre o possível itinerário exposto durante a campanha e no
seu imediato seguimento, assim como ao início do governo Bolsonaro, bem como
sobre as muitas mudanças observadas em sua implementação prática, é possível,
sim, tentar um balanço da política externa do Governo Bolsonaro, ainda que
persistam enormes incertezas quanto à adequação desses títulos: “política
externa do governo Bolsonaro” ou “diplomacia do governo Bolsonaro”. Isso se
deve a que nunca tivemos, antes, ao início ou depois, uma exposição clara,
abrangente, sistemática sobre o que seria a política externa desse governo,
pois nem o presidente, nem o seu chanceler, ou os assessores envolvidos nessa área
jamais apresentaram um documento ou discurso organizado sobre quais seriam as
prioridades estratégicas, os objetivos táticos, os desdobramentos
multilaterais, regionais ou bilaterais daquilo que poderia se apresentar como
uma diplomacia própria, ou uma política externa clara e definida.
Sempre
tivemos invectivas, começando pelo fato de que tanto o presidente quanto o chanceler
proclamaram que, com eles, teríamos uma “política externa sem ideologia”, e um “comércio
exterior sem ideologia”. Ora o que mais tivemos, do começo até aqui, com
algumas poucas correções pragmáticas – devidas a outros agentes, não aos dois –
foi uma política externa ou uma diplomacia com ideologia, muita ideologia, em vários
aspectos revertida pela ação dos homens de negócios ou funcionários mais racionais
desse governo. Sob esse aspecto, portanto, o balanço a ser feito é o de uma
desconstrução quase completa da “diplomacia sem ideologia”, uma completa revisão
das invectivas lançadas ao início.
Num certo
sentido, nunca tivemos, até aqui, uma “política externa brasileira” ou uma “diplomacia
brasileira”, e sim uma “diplomacia do bolsonarismo”, que é um ajuntamento heteróclito,
confuso e muito pouco coerente de slogans, de grandes frases e de sonhos
bizarros, que combinam posturas absolutamente heterodoxas advindas, sugeridas
ou impostas por um guru estranho, expatriado do Brasil, que foi várias vezes
indicado como o inspirador de várias “ideias”, se de ideias se tratam, do
presidente e dos seus três filhos ativos na política. Acrescente-se que o
chanceler escolhido jamais foi conhecido por ser um discípulo ou aderente a essas
ideias estranhas, tendo construído artificialmente um perfil adaptado ao cargo,
fazendo publicar um bizarro arrigo no qual colocava Trump como um pretenso
salvador do Ocidente expressamente concebido e divulgado para conquistar o
posto.
Quais eram,
finalmente, os grandes objetivos do bolsonarismo diplomático? Em primeiro
lugar, havia a pressão da bancada evangélica – uma das bases do eleitorado
bolsonarista – para a mudança da embaixada brasileira junto ao governo de
Israel da capital reconhecida, Tel Aviv, para a capital política do Estado judeu,
Jerusalém. Como sabemos, esse objetivo, totalmente ideológico, se frustrou, uma
vez que surgiram reações da ampla comunidade de produtores e de negócios
vinculados à exportação de carne halal
aos países árabes, ou muçulmanos, da região e em outros continentes. Em seu
lugar, anunciou-se a abertura de um escritório de comércio e investimentos em
Jerusalém, uma localização totalmente desprovida de sentido, uma vez que as
principais áreas vinculadas à tecnologia e negócios se situa justamente em Tel
Aviv, Haiffa e outras localidades próximas da costa.
O outro
objetivo, nebuloso, consistiria em revisar as relações com a China, pois ela
estaria, supostamente, “comprando o Brasil”, nas palavras do presidente, e não
comprando do Brasil. A alegação, completamente sem fundamento, foi desmontada ainda
antes da posse do governo, por uma hábil reação da embaixada e do próprio governo
da China, a que se seguiu um posicionamento consistente do vice-presidente
Hamilton Mourão, responsável pela representação brasileira na COSBAN, a comissão
bilateral de alto nível, tendo ele chegado a defender a autonomia brasileira na
questão do sistema 5G da Huaiwei, sob pressão do governo Trump, ao qual o
governo Bolsonaro devota indisfarçável admiração e seguimento.
O aspecto
mais importante das mudanças anunciadas na política externa do Brasil seria,
justamente, uma aliança estreita, não com os Estados Unidos, mas com o governo
Trump, segundo antecipavam, desde antes do mandato, o próprio candidato e
sobretudo o seu filho com pretensões “diplomáticas” que por duas vezes passeou
pelos Estados Unidos com o boné da campanha Trump 2020. Proferiu outras
barbaridades também, mas nenhuma tão gigantesca quanto o oferecimento de uma
base militar americana no Brasil, feito pelo chanceler no próprio dia da posse,
ao Secretário de Estado americano, atitude tão submissa que foi prontamente
rejeitada pelo ministro da Defesa e pelos demais militares do governo. Mas a adesão
ao programa de Trump para a região – em outras esferas igualmente – teve continuidade
pela aderência aos planos aventureiros (e eleitorais) de Trump e de seu antigo
conselheiro de Segurança Nacional, John Bolton, para a Venezuela, no sentido de
provocar uma ruptura no seio do Exército chavista, forçando ajuda “humanitária”
nas fronteiras do país com a Colômbia e o próprio Brasil, em Roraima. Os
militares brasileiros foram prudentes o suficiente para descartar completamente
qualquer solução militar para a “resolução” do problema venezuelano e por uma
segunda vez paralisaram o chanceler em seus propósitos.
Registre-se,
por importante, que a postura do chanceler nessa questão contrariou não apenas
as tradições rigorosamente aderentes ao direito internacional da diplomacia
profissional do Brasil, como sobretudo princípios constitucionais do país, em
especial aquele que trata da não intervenção nos assuntos internos de outros
Estados. Pode parecer incrível, mas é um fato que tanto o presidente – com suas
invectivas contra ou a favor de dirigentes estrangeiros – quanto o chanceler,
que segue de forma canina o presidente, são capazes de afrontar valores e dispositivos
constitucionais, assim como princípios de direito internacional há muito tempo
consagrados em nossas cultura e prática diplomáticas. O mesmo cenário de confrontação
externa manifestou-se na questão das queimadas na Amazônia, suscitando legítimas
preocupações na opinião pública internacional, como tal repercutidas em
declarações de dirigentes estrangeiros, que receberam acerbas respostas do
presidente brasileiro. Manifestações de total descortesia e em contradição com
os novos requerimentos do politicamente correto permearam visitas externas do
presidente ao Chile e ao Paraguai, quando aproveitou para elogiar ditadores de
triste memória na repressão implacável contra opositores políticos nesses países.
A indignidade chegou ao clímax ao ter o presidente ofendido a ex-presidente do
Chile, Michelle Bachelet, atual Comissária de Direitos Humanos da ONU, cujo pai
morreu na prisão da ditadura Pinochet, da mesma forma como já tinha ofendido o
pai do atual presidente da OAB do Brasil, morto pela ditadura militar.
Todas
essas graves distorções das práticas diplomáticas do Brasil foram amplamente
superadas pela extrema grosseria com que o presidente recebeu a dupla vitória –
primeiro nas primárias, depois nas eleições – do novo presidente argentino
Alberto Fernández, o que representa praticamente um rompimento unilateral de
relações com nosso principal vizinho. Em suma, os desastres diplomáticos já
produzidos em dez meses pelo presidente e seus assessores nessa área causaram
imensos prejuízos concretos ao Brasil, e diminuíram sensivelmente o prestígio
da diplomacia brasileira em âmbito mundial, sobretudo nos temas ambientais, em
direitos humanos e também na sua adesão aos líderes da nova direita mundial.
Impactos das rupturas diplomáticas
em setores de interesse concreto do Brasil
Dois “triunfos”
diplomáticos foram pomposamente saudados pelo governo Bolsonaro nos primeiros
meses de sua gestão: o apoio do governo Trump ao ingresso do Brasil na OCDE, e
a conclusão do acordo de liberalização comercial entre o Mercosul e a União
Europeia, apresentados como realizações prometedoras de um novo papel para o
Brasil no cenário internacional. Ambos se revelaram de fugaz sustentação, e de fato
se encontram concretamente num impasse que promete se prolongar pelo futuro
indefinido, e a causa de ambos se encontram em gestos desastrados que se
originam no próprio Brasil. Vejamos.
A adesão à
OCDE pode estar ameaçada pela retirada do apoio americano – numa terrível
derrota da carta trumpista da diplomacia brasileira –, mas o fator principal de
obstrução pode estar localizado na paralisia imposta ao compartilhamento de
informações sobre operações fraudulentas e lavagem de dinheiro entre órgãos
brasileiros de investigação e controle, por força de liminar monocrática do
presidente do STF; esse gesto pode deixar o Brasil de fora da OCDE,
independentemente do apoio político de todos os atuais membros, uma vez que
rompe compromissos brasileiros assumidos no âmbito do combate nacional e
cooperação internacional contra crimes financeiros transnacionais, ademais da
adesão do Brasil à Convenção sobre Corrupção nos Negócios Internacionais (Anti-Bribery Convention).
A outra
grande frustração é ver enviado às calendas o acordo Mercosul-EU, dados os
gestos negativos já anunciados por diversos países europeus, essencialmente
pela política julgada excessivamente leniente do governo brasileiro em face de
desmatamento e queimadas amazônicas e o seu frouxo comprometimento com metas do
desenvolvimento sustentável. É um fato que o presidente mantém a mesma postura de
“desenvolvimentismo destrutivo” dos recursos naturais a que assistiu na era
militar do Brasil Grande Potência, quando o próprio conceito de
sustentabilidade não existia e as preocupações com isso eram precárias ou mesmo
inexistentes. Acoplada a esse fato, o desprezo pela causa indígena é evidente
em sua postura de aproveitamento das terras indígenas para fins produtivos (agrícolas
ou minerais), no mesmo sentido das práticas adotadas durante o regime militar.
Os equívocos
que apareceram ao início tanto nas relações com a China – nosso principal
parceiro comercial desde mais de dez anos e provedor da maior parte dos saldos
de comércio exterior – quanto em relação à comunidade árabe-muçulmana parecem
próximos de ser contornados, por visitas mais marcadas por pragmatismo do que
impulsos ideológicos ou religiosos. Mas, um desastre maior pode estar à
espreita, na relação bilateral com a Argentina e na questão do Mercosul, em
função da agressividade inusitada demonstrada pelo presidente em face do
retorno dos peronistas ao poder. A (falta de) diplomacia
bolsonarista insiste em queimar todas as pontes na importantíssima relação
Brasil-Argentina, alimentando uma birra unilateral que pode resultar em cizânia
bilateral, com efeitos e consequências imprevisíveis no futuro de curto prazo.
Por causa de um presidente totalmente inconsequente, despreparado e pouco
instruído pelo seu chanceler acidental, os dois países – ou seja, centenas de
milhares de empresas, milhões de trabalhadores e consumidores, investidores,
todos – podem sofrer perdas irrecuperáveis no terreno econômico, sem mencionar
os possíveis prejuízos políticos, na região e fora dela, advindos dessa quase
ruptura de relações cordiais. Junto com a adesão inconsequente ao presidente
americano, o afastamento igualmente inconsequente do novo presidente argentino
constitui um dos problemas de grande relevo no presente momento, e ambos seriam
impensáveis caso a diplomacia brasileira fosse administrada de maneira responsável,
não com as tonalidades ideológicas que lhe foram impostas por amadores
despreparados.
Muitas outras
questões poderiam ser levantadas a propósito dos equívocos conceituais da política
externa bolsonarista, bem como dos erros de gestão de uma diplomacia entregue a
decisores completamente ineptos no trato da agenda internacional e das relações
exteriores do Brasil. Esses equívocos de concepção e erros de implementação
decorrem, obviamente, de fatores ideológicos altamente bizarros para os padrões
tradicionais da diplomacia brasileira, geralmente conduzida de modo profissional,
em bases sumamente técnicas e dotadas de certo equilíbrio de posturas que
preservam o caráter não partidário na defesa dos grandes interesses nacionais,
exatamente o contrário do que se assiste atualmente na formulação e execução de
nossa política externa. Até quando isso pode durar? Pode-se estender por todo o
atual mandato presidencial ou ser oportunamente corrigido quando os desastres já
criados e outros a serem certamente criados causarem prejuízos sensíveis à
comunidade de negócios do país, que então forçarão uma mudança de postura no
atual ministério das alucinações exteriores.
Paulo Roberto de Almeida
São Paulo, 2/12/2019
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