Um ignorante irresponsável
Ricardo Bergamini
Se Jair Bolsonaro tiver ou não coriza assim que deixar a Presidência da República, isso é problema dele. Mas Bolsonaro não é dono de seu nariz enquanto ocupar o mais alto cargo do Poder Executivo do País. No domingo 15, contrariando ordens da OMS para que se evitem aglomerações, ele combinou ignorância e irresponsabilidade ao participar de manifestação em Brasília contra o Congresso Nacional e o STF, protesto que, ao juntar gente, inevitavelmente facilitou a disseminação do coronavírus (é inacreditável mas o presidente interino da Anvisa, Antonio Barra Torres, fez dupla com o capitão). Vinte e quatro horas depois, Bolsonaro demonstrou que a sua atitude pode ter origem em causas bem mais graves, a julgar pelas declarações ilógicas que ele fez circular, exibindo um comportamento alheio à realidade. O “mito” parece dar sinais de alienação e deixa transparecer que pode estar sofrendo, eventualmente, de incapacidade e perturbações psicológicas.
BRASÍLIA, DOMINGO 15/03:
O “mito”, ainda sem saber se estava contaminado ou não, foi à manifestação contra o Congresso e o STF: eventual crime contra a saúde pública
PANDEMIA 2020
Antonio Carlos Prado/
ISTOÉ, 20/03/2020
A ignorância é perdoável em muita gente que não tem condições de se esclarecer sobre determinado assunto, hipótese que está distante do mandatário. Quanto à irresponsabilidade, essa é dolosa, sobretudo porque colocou em risco a saúde pública. Bolsonaro infringiu os artigos 267 e 268 do Código Penal Brasileiro, que tratam da propagação de epidemias e doenças contagiosas, uma vez que, no domingo, ainda era dúvida se ele se infectara na viagem aos EUA. Na noite da terça-feira 17, o presidente anunciou que o segundo teste deu negativo. Não importa. Isso não o exime do absurdo de, quando permanecia sob suspeição, ter ido à manifestação. Quanto a eventuais transtornos psíquicos, talvez decorrentes do atordoamento diante de seu fracasso como governante e também fruto do narcisismo frustrado, eles têm de ser clinicamente avaliados. Então se saberá se o presidente pode seguir na função ou terá de ser dela afastado. Uma saudável sugestão veio do jurista Miguel Reale Júnior, ex-ministro da Justiça na gestão FHC e um dos autores do pedido de impeachment de Dilma Rousseff. Reale deseja que o Ministério Público submeta Bolsonaro a uma junta médica que dirá se ele tem ou não sanidade mental para o exercício da Presidência da República. Segundo Reale, o capitão deve ser “considerado inimputável” por ter participado da manifestação. Ou seja: estaria mesmo comprometido mentalmente, tornou-se incapacitado e já não sabe o que faz.
“A orientação sobre aglomerações é ‘não’ para todos”. Essa foi a crítica do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, ao fato de Bolsonaro ter ido à manifestação. O presidente cobra dele discurso político. Deveria ter lido o clássico de Max Weber “Ciência e Política: duas vocações”
Assim que retornou dos EUA e após um vaivém de informações desencontradas, foi anunciado que o presidente testara negativo para coronavírus, mas que uma contraprova seria necessária. Bolsonaro foi então colocado em isolamento, por ordem médica, para sua própria proteção e proteção da saúde pública, até que se completasse a chamada “janela imunológica” para a realização de novo exame. Mas ele classificou o isolamento, que hoje ocorre em todo o mundo como prevenção ou tratamento do coronavírus, como um “golpe” político, em total desconexão com a realidade. Pensando dessa forma, misturou-se aos manifestantes. O Ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, condenou: “a orientação sobre aglomeração é ‘não’ para todos”. Vale citar um número apurado pelo jornal “O Estado de S. Paulo”: Bolsonaro teve “contato físico com duzentas e setenta e duas pessoas (…)”.
“O Ministério Público pode requerer um exame de sanidade mental de Bolsonaro. Além disso, assumir o risco de expor os outros a contágio é crime” Miguel Reale Júnior, jurista
“O Ministério Público pode requerer um exame de sanidade mental para o exercício da profissão”, diz Reale júnior. Na Assembleia Legislativa de São Paulo, a deputada Janaina Paschoal, que também participou da elaboração do pedido de afastamento de Dilma, foi definitiva: “esse senhor tem de sair da Presidência da República, deixem assumir o vice-presidente, Hamilton Mourão, que entende de defesa. Nosso País está entrando em uma guerra contra um inimigo invisível”. A descompensação (termo técnico que significa incapacidade psíquica de gerar uma resposta adequada) chegou ao auge quando Bolsonaro declarou que “se o povo aparecer aqui, vou lá para frente de novo. Se me contaminei, a responsabilidade é minha”. Sem retirar os olhos do próprio umbigo, ele dizia “se me contaminei”, portanto é bom avisá-lo que é igual a “responsabilidade” caso tivesse contaminado outras pessoas. Junte-se a isso as informações que têm vazado de inadequação: o presidente teria chegado a comentar com “acepipes” que o coronavírus é um plano estratégico do governo chinês para recuperar economicamente o país. Nada a estranhar, se lembrarmos que ele já deixou claro que o vírus é uma “fantasia” da mídia brasileira. Na terça-feira, o descompasso aumentou: Bolsonaro anunciou que, nesse sábado 21, “darei uma festa tradicional para comemorar o meu aniversário de 65 anos de idade”. Ou seja, mais gente respirando, uma em direção a outra, a menos de dois metros de distância.
“Esse senhor tem de sair da Presidência da República, deixem assumir o vice-presidente, Hamilton Mourão. Ele entende de defesa e o Brasil está entrando em uma guerra contra um inimigo invisível” Janaina Paschoal, deputada estadual em São Paulo
O capitão, convenhanos, ainda é novo para tantas ideias fora do lugar, mas mesmo nelas descobre-se método (esse foi o mergulho na alma humana que William Shakespeare fez em “Hamlet”). E, convenhamos também, método é o que não falta na perseguição de Bolsonaro a Mandetta, o melhor quadro do governo. O problema é o ego: como pode Mandetta cobrir-se de glórias e ele, o “mito”, viver em vão a esmola-las? Como Mandetta atua em parceria com o governador de São Paulo, João Doria, na construção de um plano de contingência? Narcisista que é, Bolsonaro diz que sentiu-se “traído”. Claro que não dá para demitir Mandetta, então o presidente passou a roer-lhe por dentro, e uma dessas doidas doídas roídas foi desrespeitar as recomendações de isolamento. A hipótese de que algo sombrio pode estar obnubilando a mente do mandatário ficou pairando na coletiva que ele convocou: “nosso time está ganhando de goleada. Então vamos elogiar o seu técnico, e o técnico se chama Jair Bolsonaro”. Para o encontro virtual, que envolveu os presidentes da Argentina, Chile, Uruguai, Equador, Peru, Paraguai, Bolívia e Colômbia, ele foi convidado mas se fez representar pelo ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, e, inacreditável, por… Mandetta. Tudo contraditório. E ofencivo: ao reconhecer que há o vírus no Brasil, absurdamente o comparou com “gravidez”: “isso passa, um dia a criança nasce”. Pelo amor de Deus, presidente, gravidez não é doença. Na mente do paraquedista Bolsonaro, talvez sempre tenha existido um equilibrista imaginário andando em um arame, sem rede embaixo. Agora, o presidente descobriu que o arame arrebentou. Descobriu também que o equilibrista está em queda livre. E que o equilibrista é ele.
O presidente Bolsonaro reuniu ministros em coletiva sobre a pandemia: imobilismo mascarado.
Ricardo Bergamini
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