Em busca de um paradigma diplomático
Paulo Roberto de Almeida
Resenha de:
Celso Lafer:
Comércio, Desarmamento, Direitos Humanos: reflexões sobre uma experiência diplomática
São Paulo: Paz e Terra, 1999.
Desde o final dos anos 60, quando publicou um artigo pioneiro nesta mesma revista (“Uma interpretação do sistema das relações internacionais do Brasil”, RBPI, Rio de Janeiro: ano 10, n. 39/40, 1967, pp. 81-100), o professor e empresário Celso Lafer tem sido uma das presenças mais constantes, se não a mais frequente, na bibliografia brasileira de relações internacionais. Gerações de estudantes das universidades e da academia diplomática (o Instituto Rio Branco do MRE) debruçaram-se sobre seus artigos e livros, dali retirando reflexões inovadoras sobre o papel do realismo e do idealismo na política internacional, lições enriquecedoras sobre as desigualdades intrínsecas entre as nações na ordem política e na economia internacional, sobre a situação do Brasil no comércio internacional, bem como contribuições de alto sentido filosófico e moral sobre a defesa dos direitos humanos e das causas humanitárias num mundo em mudança. Mas Celso Lafer não apenas desempenhou-se como intelectual de grande brilho nas lides acadêmicas; ele também exerceu seu talento na gestão prática das relações internacionais e na política exterior do Brasil, retomando com isso uma herança familiar, pois que é sobrinho do falecido político Horácio Lafer, que foi ministro da Fazenda do segundo governo Vargas e Chanceler de Juscelino Kubitschek.
O livro aqui resenhado combina um pouco de todas essas aquisições intelectuais ao longo de uma vida dedicada ao estudo e ao trabalho em suas diferentes vertentes práticas de defesa dos interesses nacionais do Brasil no plano externo, pois que reunindo o que o autor chamou de “reflexões sobre uma experiência diplomática”. Ele já tinha tido a oportunidade de demonstrar suas qualidades à frente da chancelaria brasileira, num curto, porém profícuo período do início dos anos 90. Os textos coletados neste livro remetem à sua estada em Genebra, como representante brasileiro junto à OMC (que recuperou e desenvolveu o legado institucional do antigo GATT) e os demais organismos internacionais ali sediados, com destaque para a Conferência do Desarmamento e a Comissão dos Direitos Humanos (conformando as três seções em que se divide o livro).
Em Genebra, Celso Lafer não foi, porém, um simples representante “burocrático” dos interesses brasileiros nesses órgãos cruciais para nosso desenvolvimento econômico e nossa imagem externa, mas atuou propriamente no sentido de elevar o status do País no diálogo que ali se trava sobre temas comerciais, estratégicos e humanitários. Seus “relatórios” de gestão sobre os mecanismos de revisão de políticas comerciais ou sobre o órgão de solução de controvérsias, por exemplo, ou suas considerações sobre o “prosaico” regime de origem são invariavelmente recheados de argumentos de ordem geral, retirando ensinamentos sobre as formas de melhor inserir o Brasil no plano econômico mundial. Um dos melhores textos do volume é, precisamente, o que apresenta suas reflexões sobre os 50 anos do sistema internacional de comércio, do qual o Brasil é um dos founding fathers, tendo estado presente na criação do GATT em 1947-48. Essa primeira parte do livro de certo modo retoma e completa sua contribuição anterior oferecida em A OMC e a regulamentação do comércio internacional: uma visão brasileira (Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998).
No plano estratégico, igualmente, as conhecidas lições do intelectual dos anos 70 e 80 – sobre a conhecida disjunção entre ordem e poder no plano mundial ‑ são retomadas em seus argumentos sobre o novo quadro estratégico surgido com o final da Guerra Fria e a perspectiva concreta de um processo realista de desarmamento nuclear. Suas reflexões sobre as nova dimensões do desarmamento incorporam aliás a primeira “racionalização” de amplo escopo sobre a política externa brasileira depois da decisão corajosamente assumida pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso em 1997 de fazer o Brasil aderir ao Tratado de Não-Proliferação Nuclear – durante anos denunciado pela diplomacia brasileira como discriminatório e ineficaz – e de inserir o País nos mais importantes esquemas de controle de armas de destruição em massa e seus vetores (Nuclear Suppliers Group, Regime de Controle de Tecnologias de Mísseis, CTBT, etc.). Esse mesmo texto, preparado originalmente para seminário organizado pela Fundação Alexandre de Gusmão e pelo IEA-USP, encontra-se aliás reproduzido em outro volume recentemente publicado, digno de registro: O Brasil e as novas dimensões da segurança internacional, organizado por Gilberto Dupas e Tullo Vigevani (São Paulo: Alfa-Ômega, 1999). Num outro artigo dessa mesma seção, sobre os chamados “dividendos da paz”, Celso Lafer lembra que já em 1960 o Chanceler Horácio Lafer propunha que se criasse um fundo internacional para o desenvolvimento, com recursos da corrida armamentista, que tinha de ser detida.
No plano da defesa dos direitos humanos, finalmente, não é preciso relembrar o papel de intelectual engajado e de promotor ativo desses direitos que Lafer exerceu durante toda a sua vida, aspecto já refletido, aliás, em muitos de seus trabalhos anteriores. Junto com Antônio Augusto Cançado Trindade, Lafer forma no batalhão de frente da proteção dos direitos humanos no plano interno brasileiro, tendo patrocinado a incorporação vários instrumentos que se encontravam numa espécie de “limbo” diplomático ou legal. A comemoração dos 50 anos da Carta da ONU e, logo em seguida, os da Declaração Universal de 1948 oferecem-lhe oportunidade para ressaltar o papel da organização na defesa desses direitos, no qual se destacam as atividades da CDH, criada já em 1946.
No conjunto, os textos coletados oferecem mais do que simples “reflexões sobre uma experiência diplomática”, de fato várias, pois que eles consolidam também os ensinamentos de sua gestão anterior como Chanceler à época da Conferência do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (1992). Eles conseguem realizar, na verdade, a virtude rara de combinar o insight diplomático com a sistematização teórica de quem, tendo começado sua carreira numa perspectiva quase que “kantiana” de observações e comentários gerais sobre a natureza do poder, teve em seguida a oportunidade de exercer seus talentos na vida prática de negociador internacional engajado na defesa dos interesses do País.
Paulo Roberto de Almeida
[Washington, 716: 02/11/1999]
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