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domingo, 26 de setembro de 2021

Bibliomaníaco: uma vida através dos livros, 1950 - Paulo Roberto de Almeida

 Bibliomaníaco: uma vida através dos livros, 1950 

 

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, professor

(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com)

  

Nota prévia: 1949, neste link: Bibliomaníaco: uma vida através dos livros, 1949 - Paulo Roberto de Almeida


1950: 

Não faz muito sentido, estrito senso, falar de livros que foram publicados no primeiro ano de minha existência, quando eu os fui conhecer muitos anos depois, sendo que alguns, publicados em 1950, ainda estão carentes de leitura. Mas, como esta série é dedicada a seguir o relato cronológico dos livros publicados a cada ano, vale registrar esse movimento editorial, por um motivo simplório: segundo alguns, ideias governam o mundo, e como muitas dessas ideias estão condensadas em obras de autores que se tornaram clássicas, por assim dizer, elas merecem, portanto, ao menos um comentário de minha parte, na medida em que muitos desses livros, e suas ideias, interagiram com a minha formação intelectual e com meu próprio pensamento nos anos seguintes, por vezes muito tempo à frente do ano aqui relatado.

Não tenho lembrança, nem fotos, ou relatos familiares, do que possam ter sido meus primeiros três anos de vida, mas tenho vagas lembranças do cenário familiar e do ambiente doméstico no qual vivíamos meu irmão Luiz Flávio (um ano e meio mais velho do que eu), eu mesmo e nossos país, “Seu João”, um modesto operário, depois motorista, depois algumas outras coisas na existência de muito trabalho, e minha mãe, “Dona Laura”, que segundo recordo, se dedicava a lavar roupa “para fora”, para complementar a pouquíssima renda familiar. As imagens que guardo de nossa primeira residência, aliás a única que conheci antes de partir para a Europa muitos anos depois, em 1970, era a de uma casinha modesta, em construção ainda, num terreno que havia sido adquirido quase dois anos antes numa pequena travessa sem saída da então chamada Avenida Imperial – muito depois rebatizada de Avenida Horácio Lafer –, toda ela de terra, no bairro que respondia pelo nome de Chácara Itaim Bibi, quase às margens do rio Pinheiros, um afluente meridional do rio Tietê, o “rio dos bandeirantes”.

Que a “casa” ainda estivesse em construção disso tenho perfeita lembrança, ainda que apenas dois ou três anos depois, pois que havia tijolos aparentes, várias partes carecendo de reboco, um único quarto, o que poderia ser uma sala e a cozinha ao lado, tudo isso ao fundo de um terreno de 30 metros, dando as costas para uma fábrica de peças de baquelite. Na frente da cozinha, depois de um tanque coberto, havia um único banheiro, que suspeito não dispunha, num primeiro momento, de chuveiro elétrico, pois tenho lembranças de nossa mãe dando banho, a mim e ao meu irmão, numa grande bacia de metal colocada no centro da cozinha, despejando sobre nós canecas de água morna. Não tínhamos geladeira, mas apenas uma espécie de armário bem fechado, no qual se podia colocar uma espécie de paralelepípedo de gelo – que era entregue envolto em serragem no portão de casa, por uma carrocinha puxada a cavalo – sobre a qual se podia colocar a carne, a manteiga e alguns outros produtos necessitados de algum tipo de “refrigeração”. Uso da eletricidade estritamente regulamentado, obviamente. 

Nos anos seguintes, o grande terreno à frente dessa casinha foi sendo aos poucos completado: primeiro, um horta, que se estendia ao logo da cerva viva com a casa do lado direito – à esquerda era um terreno de esquina ainda inabitado, no qual jogávamos bola, os garotos com mais idade –; depois uma espécie de marcenaria a céu aberto (depois tapada com folha de zinco, mas sem qualquer parede), na qual meu pai tinha feito uma bancada com uma pequena morsa, para trabalhar suas peças utilitárias de madeira: foi ali que aprendi meu “primeiro ofício”, o de marceneiro, que quase se converte em profissão de verdade, na decisão sobre o que fazer depois de terminar o primeiro ciclo, chamado então de primário. Pouco depois, ao lado da marcenaria, foi colocado um tanque, em pleno sol, para que minha mãe pudesse lavar as roupas que lhe eram entregues pelos vizinhos sem máquina de lavar (e deviam ser muitos, pois todas as casas da pequena travessa eram muito modestas). Assim foram meus primeiros anos, de brincadeiras no grande terreno vazio, depois ocupado por um pequeno cão que me seguiu fielmente durante muitos anos, Lulu, ou então na própria rua, que, ao não ter saída, oferecia garantia de que não seríamos atropelados por algum carro afoito. O final da travessa era bloqueado por uma pinguela sobre um riacho, onde eram descarregados todos os esgotos da redondeza, que cruzávamos regularmente para evitar uma volta no quarteirão, nas idas à “Padaria Mondego”, no ângulo oposto, buscando a bengala, o pão francês e algumas outras coisas. A isto se resumiu meus primeiros anos de vida.

Quanto aos livros, vários que eu li depois foram publicados em 1950, vários retirados na Biblioteca Infantil Municipal Anne Frank, um quarteirão mais à frente, logo acima do Parque Infantil, que foi minha primeira experiência de socialização com crianças de minha idade. Um desses livros, que devo ter lido no final dos anos 1950, foi a aventura de Thor Heyerdahl no Pacífico, Kon-Tiki, em busca de provar sua tese de que os habitantes da ilha da Páscoa vieram da costa da América do Sul, na altura do Peru, numa jangada rudimentar que ele próprio construiu, de acordo com o que supunha fossem os meios técnicos disponíveis milhares de anos atrás: sem qualquer peça de ferro ou material que não fosse extraído da própria natureza. A história me fascinou e durante muito tempo procurei saber mais sobre o mistério das gigantescas estátuas da ilha e sobre a transmigrações de povos pré-históricos. 

Outro livro publicado em sua edição original em 1950 foi um dos volumes da História da Civilização, de Will Durant, mas numa edição brasileira, provavelmente publicada em meados da década. Não me recordo, agora, se li a versão unificada dessa obra, cujo original havia sido publicado em 1931, ou se foi algum dos volumes que ele publicou sobre as diferentes eras da história, da antiguidade à época contemporânea. Qualquer que seja o caso, Will Durant acentuou meu enorme gosto pela história, que já tinha sido despertado desde meus oito anos aproximadamente pela versão feita por Monteiro Lobato da História do Mundo para as Crianças, uma releitura de Dona Benta de uma obra publicada muitos anos antes nos Estados Unidos. 


 Ao falar dos livros que li, ainda que anos depois de 1950, não me eximo de falar de dois outros livros publicados no mesmo ano, que nunca “enfrentei”, mas sobre os quais li muitas resenhas e referências, todas elogiosas. O mais interessante, que ainda está na minha lista de “livros para ler”, é o de Octavio Paz, El Labirinto de la Soledad, que é uma visão antropológica-histórica-filosófica sobre a identidade nacional mexicana, ou mais exatamente sobre as insuficiências e frustrações do que se poderia chamar de não desenvolvimento mexicano, algo aliás comum a muitos outros países latino-americanos, mesmo sem possuir a herança étnica e social do grande país asteca. O outro, talvez ainda mais famoso, é o de Isaac Asimov, I Robot, o escritor russo que inventou o termo e definiu toda uma literatura de ficção dentro do gênero futurismo cibernético. Interessante é saber que Asimov concebeu seus romances antes mesmo do desenvolvimento dos computadores, justamente a partir dos anos 1950 (mas apenas como mainframes, não miniaturizados para serem integrados a robôs). Esse romance tem as famosas leis que todo robô deveria, teoricamente seguir: 1) nunca fazer mal a um ser humano; 2) sempre seguir as ordens de um ser humano, a não ser que uma ordem seja contrária à primeira regra; 3) um robô precisa proteger sua própria existência, desde que isso não conflite com a primeira e a segunda lei. 

O ano de 1950, no Brasil, foi o da fragorosa derrota do Brasil na final da Copa do Mundo, contra o Uruguai, país no qual vivi 40 anos depois, e onde ainda se falava, nos jornais e na TV, dos “heroes del 50”, vários ainda sobreviventes em 1991-1992, quando lá morei. Dessa primeira grande tragédia nacional eu não guardo nenhuma recordação obviamente, assim como tampouco do retorno de Getúlio Vargas ao poder, no ano seguinte. Mas tenho vagas lembranças do tremor que sucedeu ao seu suicídio, em 1954, pois foi o que mais abalou não apenas o meu pai, como outras pessoas que marcaram a minha infância. Do governo de JK, eu me lembro, especialmente, da fabulosa vitória na Copa do Mundo de 1958, e da efusão de alegria que se seguiu, com os gols do garoto Pelé. Também me lembro de ter acompanhado meu pai na cabine de votação quando das eleições de 1960, fervoroso apoiador que ele era do homem que “varreria” a corrupção: tínhamos um broche com a vassourinha, depois relegada ao esquecimento quando da tremenda decepção em agosto de 1961. Mas, esses são episódios que voltarão ao registro quando eu abordar os livros desses anos. Por enquanto fico nisto.

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 26 de setembro de 2021.

 

 

sexta-feira, 31 de agosto de 2018

Carlos Lacerda: confrontando Getulio Vargas em 1950

Agradeço enfaticamente ao Carlos Mauricio Pires Albuquerque Ardissone por ter não apenas corrigido meu erro monumental, ao atribuir o alerta abaixo de Carlos Lacerda à circunstância da eleição de JK, em 1955, e não, como é o correto, à eleição de Getúlio Vargas, em 1950. Feita a correção, transcrevo o texto gentilmente cedido pelo Carlos Ardissone, a quem manifesto uma vez mais minha gratidão pela retificação.
Paulo Roberto de Almeida

ADVERTÊNCIA OPORTUNA
Carlos Lacerda
Tribuna da Imprensa, 1º de junho de 1950

A esta hora terá o sr. Getúlio Vargas recebido uma advertência oportuna. Não se trata de retirar-lhe os direitos políticos, pois o que não foi feito a 29 de outubro não teria cabimento agora. Menos ainda se trata de proibir-lhe o acesso a assembleias legislativas, para uma das quais, a mais alta de todas, foi eleito e à qual não se dignou de comparecer.

Trata-se, isto sim, de advertir o antigo ditador sobre os perigos que ele faz correr a nação, e os que ele próprio terá de arrostar, se insistir em se prevalecer das armas democráticas que negou aos seus concidadãos para voltar ao poder de que se havia apropriado pela força.

Essa advertência feita agora com ponderação e equilíbrio pelo Ministro da Guerra, sem arreganhos de força, mas sem o açodamento ignóbil com que alguns políticos e outros tantos militares desmandados procuram fazer reverdecer a árvore seca da ditadura, deve calar fundo no espírito do sr. Getúlio Vargas.

Ele bem sabe que não tem o direito de protestar contra qualquer aparente cassação de seus direitos de ser candidato à presidência da República. Candidato ele pode ser, o que não pode é ser presidente. Absurdo? De nenhum modo. O sr. Getúlio Vargas bem sabe que não é absurdo, uma vez que não fez outra coisa senão beneficiar-se dele.

Em 1930, derrotado na eleição - ainda que esta não fosse das mais lisas - prevaleceu-se de uma revolução para assumir a presidência. O candidato legalmente eleito era o sr. Júlio Prestes. Quem subiu ao poder foi o sr. Getúlio Vargas.

Em 1934, quando a eleição deveria ser feita pela consulta direta ao sufrágio direto e universal, o sr. Getúlio Vargas manobrou de modo a que se escamoteasse a decisão das urnas - e se fez eleger pelo voto indireto da Constituinte. Com isso, evitou o debate, a campanha e a concorrência nas urnas livres. E não houve candidato - pois quem estava lá ficou.

Em 1937, quando se devia efetuar uma eleição livre e honrada, o grande benefício da Revolução de 30 ao Brasil, a qual deveria ser, apesar dos pesares, a consagração do seu governo, ele traiu a Constituição e, mentindo, fez-se ditador - cancelando a eleição e, portanto, suprimindo os candidatos.

Em 1945, preparava-se para fazer o mesmo quando foi apeado do poder. Com um governo provisório, ele se rebelou? Mostrou-se, acaso, inconformado? Nada disso. Concorreu muito bem comportado às eleições. E à última hora fez valer todo o peso de sua propaganda e da confiança que de boa-fé depositava nele uma grande parte do povo para eleger o seu candidato, o candidato de Getúlio Vargas, chamado Eurico Gaspar Dutra. Aceitou, portanto, o novo estado de coisas, submeteu-se às regras e princípios que informaram a nova situação, surgida do 29 de outubro. E fez das franquias que lhe foram concedidas o uso que se sabe: elegeu o general Dutra.

Agora, premido pelos famintos do poder e da volta à comilança, por todos os coronéis Teles, por todos os Artures Pires deste país, ele conta utilizar o honrado apoio de muitos brasileiros dignos que nele creem como tantos bons italianos acreditaram em Mussolini, ele se dispõe a ser candidato - e ainda pretende tomar posse.

Não. Mil vezes não. Ainda que para isso seja preciso fazer uma revolução no Brasil, tenhamos a coragem de dizer claramente ao sr. Getúlio Vargas: desista, porque não voltará à presidência da República.

Isso desgostará muitos brasileiros? É pena. O que não é possível é ver o governo que tem governado tão mal, por culpa do próprio sr. Getúlio Vargas, que o elegeu, servir afinal à volta do seu antigo amo, do ditador fantasiado de democrata.

A campanha divide opiniões. A existência de mais um candidato divide salutarmente as correntes partidárias, provoca um choque útil - aquele que o Estado Novo procurou eliminar. Mas, uma vez terminada a campanha, cessa a luta e o que existe ou deve existir é apenas governo e oposição numa emulação, numa concorrência útil ao país.

A eleição do sr. Getúlio Vargas, porém, seria diferente. Ela não dividira opiniões dos brasileiros, ela dividiria os brasileiros. Verdadeiramente não seria uma luta política, seria uma luta de vida ou morte, entre os que acreditam na democracia com democratas e os que acreditam na democracia com antidemocratas.

A divisão não seria de opiniões e sim de concepções de vida, do Estado, da sociedade, da nação. O sr. Getúlio Vargas deixaria de ser aquele velhote galhofeiro e churrascal do Itu para ser, então, na prática, o símbolo de uma empreitada monstruosa de destruição do regime em que pretendemos viver, e que ele já traiu mais de uma vez.

O sr. Getúlio Vargas, senador, não deve ser candidato à presidência. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de governar. Ele já fez várias, isso para ele não é novidade.

Sentimo-nos no dever de lealmente lhe dizer que a advertência do ministro da Guerra não é apenas a do oficialismo, a do governo, a das Forças Armadas. É a de uma parte considerável e também responsável da nação, que está pronta a se unir com o governo ou com quem quer que seja para evitar que ele, o traidor de 10 de novembro de 1937, volte a governar o Brasil com a sua camorra.

O sr. Getúlio Vargas já teve tudo o que podia esperar do Brasil - e muito mais. Deixe-o agora em paz, se quiser ter paz. Pois, se quiser guerra, ele a terá também, e não poderá se queixar dos resultados.