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sexta-feira, 19 de março de 2021

O porão no poder - Gustavo Bezerra

 O PORÃO NO PODER

Gustavo Bezerra, 01/03/2021

Em 5 de outubro de 1988, o deputado Ulysses Guimarães, segurando um exemplar da recém-aprovada Constituição Federal, proclamou, em um famoso discurso perante seus pares na Câmara dos Deputados: "Temos ódio e nojo da ditadura. A sociedade é Rubens Paiva, não os facínoras que o mataram".
Ulysses estava se referindo ao ex-deputado Rubens Beirodt Paiva, torturado até a morte em 1971 pelos esbirros da repressão a serviço da ditadura militar. O corpo dele jamais foi encontrado. Os carrascos do DOI-CODI que o assassinaram trataram de destruir a prova do crime, transformando-o num "desaparecido politico".
A data do discurso de Ulysses marcou o fim, de direito, do regime militar iniciado em 1964. Desde então, oficialmente, o Brasil é uma democracia, com uma Constituição democrática.
Trinta anos depois, esse regime, a Democracia, que está longe de ser um fato da natureza, está enfrentando sua maior ameaça. E vinda de quem exerce os mais altos cargos do país. Os facínoras de que falou Ulysses chegaram ao governo. O porão está no poder.
Muito se discute sobre a relação do atual PR com os militares. Boçalnato, como se sabe, não esconde sua devoção ao regime de 64, à mesma ditadura odiosa e nojenta repudiada por Ulysses em seu discurso histórico. Isso já seria o suficiente para desqualifica-lo como o contrário de um democrata. Mas acontece que a ameaça bolsonarista ao regime democrático é ainda mais perniciosa, pois está baseada naquilo que o regime dos generais tinha de pior, de mais repulsivo e execrável: não é exatamente os supostos dotes de estadista dos generais-presidentes, mas o que acontecia nos porões da repressão política - no DOPS, na OBAN, no DOI-CODI, no esquadrão da morte -, o que ele louva e reivindica. É a tortura. É o.assassinato de presos políticos. É Ustra. É o delegado Fleury. É o Riocentro. 
São esses personagens - a escória moral da ditadura, aliás da humanidade .-, mais do que Médici ou Costa e Silva, os heróis e ídolos do atual PR. A "tigrada,", como os definiu o ex-ministro (de Costa e Silva, Médici e Figueiredo) Delfim Netto. O, digamos assim, baixo clero da ditadura. Os agentes da repressão. Aqueles que faziam o serviço sujo. Os que acionavam a máquina de choques elétricos. Que quebravam ossos. Que dependuravam no pau de arara. Que torturavam até a morte. E que, depois que matavam, sumiam com os corpos. Gente que atacava teatro, e que jogava bomba em banca de revista. Em nome do regime do AI-5, tão defendido por Boçalnato e seus filhos.
Não é somente Boçalnato e sua prole, claro. Os militares que o sustentam também pensam da mesma forma. Basta lembrar do episódio do deputado bolsonarista que tomou uma merecida cana do STF por ter pregado contra a Democracia. O deputado em si é irrelevante, ele não é ninguém (um parlamentar invocando a imunidade parlamentar e a liberdade de expressão para defender o AI-5, que acabou com a imunidade parlamentar e a liberdade de expressão, é roteiro de comédia besteirol); o fato é grave porque o que o motivou foi a reação de um ministro do STF a um tuite do ex-comandante das Forças Armadas, o general Villas-Boas, claramente ameaçando o STF caso o resultado de um julgamento não fosse o esperado por Villas-Boas. Um claro flerte com o autoritarismo. Outro general das hostes governistas, Augusto Heleno, chefe do GSI, já foi flagrado praguejando em público contra o Congresso. Augusto Heleno, aliás, que foi assessor do chefe da linha-dura militar, o então ministro do Exercito, general Sylvio Frota, quando de sua demissão por Ernesto Geisel em 1977, por se opor ao processo de abertura política iniciada por Geisel (mesmo Geisel que chamou Boçalnato, então deputado, de "mau militar"). E há o vice Mourão, que muitos consideram "moderado" (até Atila, o Huno, parece "moderado" perto de Boçalnato), o qual vira e mexe solta um elogio a Ustra, um "bom instrutor". Ustra, o torturador que o atual PR considera um herói. Liguem os pontos. 
É esse setor - militares saudosos da repressão -, o principal esteio do desgoverno Boçalnato. É o ódio à Democracia, juntamente com o lavajatismo (a corrupção da Lava-Jato), o liberalismo de fachada (encarnado pelo vendedor de redes Paulo Guedes), a truculência parapolicial e miliciana e o moralismo de galinheiro (a "guerra cultural" dos fanáticos religiosos, gurus de internet e evangélicos dinheiristas), o que move os que fizeram campanha para essa figura grotesca e caricatural, elevando-o desgraçadamente ao cargo máximo da nação. A internet, com sua vocação para a.boçalidade, fez o resto. Sem falar nos oportunistas de sempre. Houve quem acreditasse que seria um governo liberal, honesto, de perfil técnico, sem viés ideológico - e democrata (!). Pois é.
Villas-Boas, Heleno, Mourão e mesmo Boçalnato (este mais pela idade, e não por falta de vontade) não foram torturadores, mas se identificam com quem o foi. E, no caso do PR, têm neles um modelo e uma inspiração. Só isso já bastaria para considerá-lo um inimigo da Democracia e da Civilização. Mas tem mais. 
Boçalnato se elegeu com um discurso - infelizmente, popular, ou melhor dizendo: populista -, anti-política, contra o "sistema". Que sistema? O da Constituição de 1988. O sistema democrático. Seu objetivo não é outro senão destruir a Democracia, e isso não é (ou não deveria ser) segredo pra ninguém. 
Como JB faz isso? Ele já deu algumas pistas. Um dos caminhos é se aproximando de setores subalternos dos militares, participando de eventos como formação de cadetes (sua principal agenda nos últimos meses, além de provocar aglomerações em meio à pandemia) e apoiando projetos que visam a aumentar o poder das PMs, de modo a retirá-las da alçada estadual para a federal. Outro sinal é a obsessão com a liberação de armas - algo que não tem absolutamente nada a ver com segurança pública ou liberdade individual, como creem alguns incautos, mas com o armamento de milícias pró-governo, à moda chavista (fato confessado pelo próprio PR, naquela famosa reunião ministerial no ano passado).
Boçalnato e sua corja conspiram contra a Constituição no que ela tem de melhor- os direitos e garantias individuais -, mas não no que ela tem de pior- o corporativismo, a defesa de privilegios, o excesso de intervencionismo estatal (a intervenção desastrosa na Petrobras é o último exemplo; há outros). Nisso, aliás, eles se aproximam dos petistas (o PT, é bom lembrar, se recusou a assinar a CF-88).
Enfim, é um projeto claramente autoritário, urdido por um ex-milico de passado terrorista, que sempre odiou a Democracia, embora deva tudo a ela. Um projeto autoritário e golpista. "Ah, mas e o Centrão?". O Centrão está com qualquer governo. E a aproximação só se deu pelo medo do impeachment, assim como a aproximação com o STF só se deu por causa do medo da condenação do filhote Zero Um no caso das rachadinhas. Alguém vê algo de republicano nisso? 
Há alguns anos, foi inaugurado um busto de Rubens Paiva num dos anexos da Câmara dos Deputados, em Brasília. Presente ao local, a família dele. No meio da cerimônia, um deputado apareceu causando tumulto. Inclusive, cuspiu no busto do homenageado. O nome do então deputado? Ele mesmo, o atual PR.
O atual governo brasileiro é um governo de facínoras. De inimigos da Democracia. De adoradores da morte. Merece, portanto, todo o asco e repulsa, como discursou o Dr. Ulysses.