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quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Religião e liberdades truncadas: sobre o discurso do chanceler acidental na formatura do IRBr - José Augusto Lindgren Alves

Importante artigo do embaixador José Augusto Lindgren Alves comentando os muitos equívocos, as impropriedades políticas, os desvarios intelectuais e os absurdos diplomáticos do estarrecedor discurso do chanceler acidental na formatura da turma do Instituto Rio Branco que tinha como patrono o grande poeta João Cabral de Melo Neto.

Paulo Roberto de Almeida


RELIGIÃO E LIBERDADES TRUNCADAS: política externa e direitos humanos refletidos no curioso discurso do chanceler aos formandos do Instituto Rio-Branco

J. A. Lindgren-Alves*

Foi muito comentado o discurso do ministro das relações exteriores na cerimônia de formatura do Instituto Rio-Branco, em 22 de outubro, pela revolta que causou. As críticas, todas pertinentes diante dos absurdos enunciados, foram provocadas sobretudo pelo abuso do nome escolhido pelos formandos como patrono da turma, João Cabral de Melo Neto, assim como pela interpretação positiva do fato de o Brasil se ter tornado um pária na comunidade internacional. A par da falta de autocrítica de um profissional inexpressivo, autor de livro desconhecido, ao se declarar “diplomata e poeta” como João Cabral, o personagem que ocupa a cadeira do Barão de Rio-Branco sem qualquer ponto notável na carreira, declarou não ver problema, mas virtudes, no presente isolamento diplomático do Brasil. Insistindo numa ideia sui generis de liberdade, afirmou que “o Brasil de hoje fala de liberdade através do mundo”, para assinalar que os Presidentes Bolsonaro e Trump haviam sido, talvez, os únicos chefes de Estado a tocarem no assunto na abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas deste ano.

Não vou tratar aqui das referências descabidas a João Cabral de Melo Neto, nem analisar a situação de nosso país no exterior. Tanto o primeiro como o segundo aspectos do discurso foram examinados, com justa indignação, por órgãos de imprensa sérios e personalidades competentes de diversos setores. Atenho-me, pois, à acepção exposta de liberdade e aos efeitos que ela reflete na política externa, com foco na área dos direitos humanos.

O conceito de Liberdade

Para esse estranho titular de uma pasta política laica voltada para a ação no exterior, “liberdade” nada tem a ver com o direito de ser livre em condições normais, de pensar, de se informar, de agir, de viver dignamente, no sentido que todos conhecem. Tampouco são as liberdades fundamentais, definidas com os direitos essenciais de todos os seres humanos, que abarcam o trabalho remunerado, a educação, a saúde, a alimentação, a moradia e a segurança social, pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948. Qualificando esse documento multilateralista basilar de “verdadeiro hino à liberdade”, o orador anti-multilateralista o cita com indicação de artigos escolhidos, que, isolados e simplificados na enunciação, escondem mais que revelam o que ele deseja. Nem mesmo a “liberdade religiosa” expressamente mencionada corresponde à “liberdade de pensamento, consciência e religião”, prevista no Artigo 18 da Declaração Universal, cujo espírito abrange necessariamente o direito de não ter ou não seguir qualquer religião.

Nas palavras do ministro:

“A liberdade do ser humano reside na sua espiritualidade. Sem ela o homem é escravo do ciclo inútil do viver e do morrer. Sem ela o intelecto torna-se puramente calculador desprovido de poesia e criatividade. Sem a espiritualidade o homem perde o bom-senso e a capacidade de navegar num mundo de difíceis julgamentos morais, caindo em um dos extremos: ou a permissividade absoluta ou esse estranho hiper moralismo da atualidade, muito mais restritivo que o da era vitoriana.”[1] 

Por mais que eu próprio critique os paradoxos da cultura contemporânea, de um lado libertária e provocativa, de outro intolerante e castradora, denunciando exageros contraproducentes com o  objetivo de garantir o desenvolvimento dos direitos[2], não sei bem a que se refere o hermético pregador como “hiper moralismo muito mais restritivo do que o da era vitoriana”. Quanto a sua obsessão transcendental, ela se encontra mais explicada alhures, em artigo arcano de sua autoria intitulado “Liberdade Religiosa, Religião Libertadora”, publicado em 2019 em seu pretensioso blog Metapolítica 17:

“No meu caso, já fui ateu: mas quando comecei a ler e estudar sobre religião (inclusive, mas não apenas, a cristã), quando comecei a entender, quando comecei a compreender a profundidade do incompreensível, quando um dia li que os monges do Monte Atos eram capazes de enxergar o brilho da luz incriada, foi aí que voltei a crer.”[3]

Quase “contracultural” no irracionalismo místico, reminiscente dos cultos orientais em moda no Ocidente desde os tempos dos hippies, a teosofia do chanceler, que tem horror à teologia da libertação, enquadra-se na vertente neointegrista atual do catolicismo, diferenciada do integrismo tradicionalista de Bento XVI pela assimilação de posições protestantes em áreas específicas[4]. Carolas que não seguem o Santo Padre, opositores do profundamente humano Papa Francisco, os neointegristas, pelo menos no Brasil, se assemelham e se associam sem pruridos ao neopentecostalismo evangélico para impor “fundamentos” de ambas as fés ao Estado. Para eles, a questão preocupante da liberdade religiosa é menos o problema real das perseguições a cristãos em sociedades de religião diferente do que aquilo que denominam “cristofobia”: aversão patológica a Jesus Cristo como divino redentor. Perante a Assembleia Geral das Nações Unidas, esse “fenômeno psíquico”, mencionado pelo neologismo no discurso do ministro aos formandos, já havia sido abordado um mês antes pelo Presidente da República, que nunca sabe bem o que está falando. Em alocução formal redigida provavelmente pelo próprio chanceler, disse ele:

“Faço um apelo a toda a comunidade internacional pela liberdade religiosa e pelo combate à cristofobia. (…) O Brasil é um país cristão e conservador, e tem na família sua base.”[5]

De que o Brasil seja predominantemente cristão não há dúvida. Horror a Cristo não creio tenha tido em qualquer período da História. Que seja conservador é uma asserção recente, parcial, com generalização forçada. A inclinação pela sensualidade exuberante sempre foi cultivada como característica do povo brasileiro, alegre e desinibido. Os políticos de centro e de esquerda sempre foram eleitos com posições sociais relativamente progressistas. Quanto à família, reconhecida na Declaração Universal dos Direitos Humanos como “núcleo natural e fundamental da sociedade” com direito à proteção pelo Estado, no Brasil como em todo o Ocidente é, há anos, crescentemente unicelular, ou desfeita e recomposta por casamentos sucessivos. Tem sido valorizada também em formas heteróclitas, rejeitadas pelos evangélicos puristas, por católicos no estilo da Opus Dei espanhola e por falsos moralistas de formações variadas, em cuja rejeição agressiva a homossexuais em geral concentram seu excesso freudiano de frustações inseguras.

Embora Bolsonaro tenha lembrado mais tarde a expressão “cristofobia” ao condenar a recente queima de igrejas no Chile e os atentados terroristas na França, “cristófobos” para o chanceler são, em primeiro lugar, os compatriotas que não seguem posições da extrema direita. Considerados comunistas ateus, corruptos e impatrióticos, participantes de uma conspiração demoníaca do “marxismo cultural” para dominar o mundo por meio do “globalismo” sob controle da ONU, esses indivíduos “cristófobos”, responsabilizados pelo secularismo do Estado, seriam inimigos a ser exterminados. Isso se evidencia no discurso do chanceler aos formandos pela condenação insistente do marxismo como ameaça terrível. Curioso é que isso ocorra e seja assimilado com verdade num período histórico em que o projeto emancipatório comunista se apresenta, no máximo, como causa de nostalgia para os seguidores mais próximos de Marx.[6] Pensam e agem da mesma forma que o chanceler a ministra da mulher, família e direitos humanos e todos os atuais ocupantes de funções oficiais brasileiras na cultura, educação e políticas públicas. A eles se acrescem os “bolsominions” das redes sociais e os grupos violentos que se manifestam nas ruas e na internet contra o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal, esteios institucionais necessários da democracia em qualquer parte do mundo.

Paranoia de fazer inveja ao teatro do absurdo, de Ionesco a Becket com toques de Campos de Carvalho, nosso surrealista tropical, essa teoria de conspiração como estratégia propagandística para semear o pânico tem figuras destacadas em pensadores da nova direita euro-americana Alt Right. Entre eles se pretende inserir o brasileiro Olavo de Carvalho, professor de invencionices eruditas pela internet, autor de best sellers demolidores de tudo e de todos, menos dele próprio, com palavrões e um lustro de sapiência cabotina. Entre seus seguidores se filiam o chanceler trumpista e o filho do Presidente quase embaixador em Washington, os quais, juntamente com um assessor presidencial evangélico de política externa, formam o núcleo duro de nossa atual antidiplomacia.

Exercida a contragosto por um Itamaraty em frangalhos, remanejado até no organograma interno para acomodar a ideologia e as características pessoais do profissional titular – mais moço e menos experiente que os chefes de departamentos antes existentes, hierarquicamente superiores, postos à disposição, como nem o regime militar cogitou fazer -, a nova política externa, inteiramente inspirada pela chamada franja lunática da direita norte-americana, reforçada pela arrogância de Donald Trump, absorve postulações de pastores fundamentalistas e católicos integristas, determinados a transformar o Brasil numa nação monolítica orientada pela religião. Tal orientação é implementada sub-repticiamente em inciativas domésticas, como a diretriz de educação em decreto de 27 de outubro sobre Estratégias de Desenvolvimento, que manda ensinar o direito à vida desde a concepção e os “direitos do nascituro”, ou as portarias do ministério da saúde que exigem comunicação constrangedora à polícia para quem precisa recorrer à prática legal de aborto em gravidez por estupro. Na área externa, ademais da participação do Brasil, como ouvinte, em comissão norte-americana criada pelo Secretário de Estado Mike Pompeo sobre “direitos inalienáveis” oriundos da história do país, destaca-se nossa ridícula rejeição a qualquer referência a “gênero” em resoluções sobre saúde ou direitos da mulher. Inflexível a críticas porque convicto – não sem razão – de que a popularidade do presidente se deve em grande parte às posturas agressivas contra o “politicamente correto”, o chanceler faz questão de afirmar, com frequência, ter sido para isso, para o desmonte de nossas posições estabelecidas, que o Governo foi eleito. 

Liberdade religiosa como regressão

No esforço para tornar o país uma utópica “cidade de Deus”, fundada na literalidade das Escrituras mais do que na obra de Santo Agostinho, era esperado que as prioridades se dirigissem à “esfera de valores”. Foi com esse objetivo em mente que o Presidente desde quando candidato anunciava uma intenção “revolucionária”, quase “leninista”: primeiro destruir tudo, ou seja, tudo o que foi feito nessa esfera depois do regime militar, para depois construir à sua maneira. Tal esfera, a par da questão do meio ambiente, internacionalmente prioritária por motivos de sobrevivência terráquea, é precisamente a outra em que o Brasil redemocratizado teve papel decisivo na diplomacia multilateral do final do Século XX: a dos direitos humanos. Falo dela, sem ânimo exclusivo, porque a conheço bem, consciente de que colegas coevos da carreira diplomática podem fazer o mesmo sobre as áreas onde atuaram.

Na esfera dos direitos humanos, ao contrário do que antes dizia a esquerda e hoje é dito pela direita, por conta da soberania nacional, temendo ou não intervenções armadas da “ingerência humanitária” que o Brasil sempre combateu, o máximo que se deseja é dispor de referências civilizadoras para todos os países. A responsabilidade por tais direitos foi e continua a ser dos Estados. Estes, quando retrocedem em posições previamente aceitas, fazem-no em desapreço pela credibilidade que tinham. A coerção é moral, não policial, muito menos bélica. A impossibilidade de intervenções externas pela força não elimina, porém, o acompanhamento internacional legítimo, nem a força moral das recomendações acordadas. Tampouco descarta a eventualidade de boicotes unilaterais de potências, ou sanções coletivas, como o embargo de armas, aprovadas pelo Conselho de Segurança.  

Fato pouco conhecido numa sociedade auto-despiciente como a brasileira, que atribui tudo de bom ao exterior, sobretudo aos Estados Unidos, foi a ação de nossa diplomacia que salvou a Conferência de Viena sobre direitos humanos, de 1993; que garantiu os estatutos do Tribunal Penal Internacional na Conferência de Roma, de 1998; que propôs na ONU, em 1994, uma conferência contra a discriminação racial na África do Sul, realizada em Durban, em 2001; que conseguiu a aprovação dos documentos finais de Durban, cujo Programa de Ação forneceu as bases da luta antirracista seguida no mundo inteiro até hoje. Foi também a atuação do Brasil que propiciou pontos de entendimento no Cairo, em 1994, sobre direitos reprodutivos e saúde da mulher, na conferência sobre população, assim como em Pequim, em 1995, para o reconhecimento dos direitos da mulher na categoria dos direitos humanos[7]. Tínhamos, portanto, importante soft power. Se os avanços doutrinários desse conjunto de eventos foram desvirtuados depois, e creio ter sido eu dos primeiros a expressar preocupação com isso, os atores principais foram outros, todos contrários ao Iluminismo e ao marxismo, em nome de um progressismo pós-moderno de matriz norte-americana.

Depreciar o que o Brasil soberano fez de positivo e orientar a política externa para destruir aquilo que se conseguiu em favor dos direitos humanos como fator indispensável ao progresso social, somente se pode explicar por um fanatismo semelhante ao que ameaçava as próprias conferências, associado em muitos aspectos às crenças do terror islâmico. Não surpreende, assim, que os aliados atuais desse Brasil dito “conservador” sejam líderes ocidentais de arrogância chocante. Ou Estados de religião historicamente antagônica ao cristianismo, com leis que desprezam a igualdade cristã divulgada pelo apóstolo São Paulo, e práticas cristianofóbicas frequentemente mortíferas. Nesses Estados cuja nacionalidade é construída a partir da religião pré-colonial monoteísta, liberdade religiosa inexiste, nem tem chance de existir. Tanto porque a fé dominante é excludente das outras, como porque os opositores aos governos, vistos como corruptos e vendidos ao Ocidente, são correligionários radicalizados contra tudo que não seja sua facção extremista.

Na medida em que os extremismos opostos se assemelham, as teocracias islâmicas mais medievalistas podem até servir de modelo aos ocidentais da extrema direita. Para o chanceler brasileiro, inimigo do Iluminismo desde Voltaire e do multilateralismo da ONU, nada parece melhor que a Idade das Trevas. Em sua linguagem labiríntica, supostamente translúcida, com citações em grego de fácil entendimento para o “povo que escandaliza os intelectuais prudentes e sofisticados”, brasileiros “severinos” que ele diz homenagear com o termo adjetivado de João Cabral, os formandos do Instituto Rio-Branco este ano não estariam entrando numa carreira, que ele chama de “burocracia”. Estariam ingressando numa cruzada, “numa grande demanda, no sentido medieval (sic), numa aventura nacional e mundial de proporções históricas” pela essência do Homem, da Pátria e da Civilização. Os “djihadistas” islâmicos, que derrubaram o World Trade Center, escravizam e estupram mulheres yazidis e esfaqueiam fiéis em igrejas da França, pensam da mesma forma. Com a diferença de que os “djihadistas” se consideram combatentes numa guerra cósmica. Nosso ministro é modesto. Fala apenas numa “batalha de gigantes” (sic).

O preço que pagamos

Na política externa brasileira quase tudo retrocedeu. Da independência mantida patrioticamente por várias décadas à submissão completa e voluntária, não aos Estados Unidos como potência, mas ao Governo de Donald Trump, passou-se num piscar de olhos. Na área dos direitos humanos, somos agora contrários aos direitos reprodutivos, rejeitamos a igualdade de gênero, demonstramos tamanha ojeriza pela possibilidade de aborto que tratamos como suspeitos os casos previstos em lei. Fazemos até vista grossa à mutilação genital feminina, quando a oposição a ela se insere em propostas de políticas que insinuem a prática disseminada do aborto como questão de saúde pública. Usamos os direitos civis para condenar a Venezuela de Maduro, mas não apoiamos monitoramento das Filipinas de Duterte. Ignoramos direitos de povos indígenas. Desconsideramos recomendações da Organização Mundial da Saúde sobre a pandemia, que minimizamos como “gripezinha” enquanto os contágios prosseguem. Rejeitamos preocupações da Alta Comissária da ONU com os direitos humanos no Brasil, e defendemos o regime instalado pelo golpe de 64 como movimento patriota, de salvação do país. Resta saber o que mais faremos. Já copatrocinamos com os Estados Unidos de Trump uma “Declaração do Consenso de Genebra”, formalizada em 22 de outubro com assinaturas de trinta e um Estados, entre os quais Arábia Saudita e Sudão do Sul, repressores aos direitos da mulher, um compromisso de atuação conjunta contra o aborto. Continuaremos seguindo a comissão dos direitos inalienáveis inventada pelo Secretário Mike Pompeo? Será que descartaremos a Declaração Universal laica de 1948 para abraçarmos uma eventual declaração religiosa de extrema direita? Imitaremos os Estados Unidos com seus habituais dois pesos e duas medidas na área dos direitos humanos e liberdades fundamentais, protegendo aliados violadores e condenando adversários? Continuaremos a funcionar como seus procuradores em Genebra desde que Trump decidiu, em 2019, retirá-los do Conselho de Direitos Humanos?    

O preço dessas reviravoltas, sem falar nas mudanças em outras áreas cruciais, foi o abandono da imagem do Brasil como país confiável, cumpridor das obrigações assumidas. O custo complementar deve parecer pequeno: o sacrifício de uma das instituições nacionais antes mais respeitadas, inclusive pelas Forças Armadas, e um enorme desgosto, que a maioria dos diplomatas brasileiros na ativa têm dificuldade de engolir. Numa carreira de Estado necessariamente hierárquica, sem órgão classista e com um único chefe poderoso, pensar em resistência sem punição arrasadora é mera ilusão de fora. Embaixadores de volta ao Brasil mais antigos que o ministro de Estado, antes aproveitados em chefias de departamentos importantes, passaram a ficar sem funções, nos corredores ou em casa, sem sequer serem claramente contrários às políticas correntes. Para a maioria dos profissionais em serviço restam o desgosto pessoal e a vergonha perante colegas estrangeiros. Assim como se exaspera o desespero inerme de aposentados que veem seu trabalho destruído.

Para justificar a política externa atual, o discurso do ministro, no dia 28 de outubro, lembrou, com enlevo agradecido, que seu chefe, presidente do Brasil “cristão e conservador”, na noite da vitória, em 2018, havia proclamado: “Vamos libertar o Itamaraty!” Parte dessa libertação escravista, na novilíngua de George Orwell às avessas, ocorreu. Os diplomatas formandos, que tiveram o bom senso de escolher um grande patrono, que se cuidem. O desafio mental e moral nas condições que já enfrentam é imenso. Só há um conselho a dar: resistam no que for possível! Quando o pesadelo passar, o trabalho de reconstrução será deles.

    Brasília, 31 de outubro de 2020

Notas:

[1] http://www.itamaraty.gov.br/pt-BR/discursos-artigos-e-entrevistas

[2] v. meus livros “Os Direitos Humanos na Pós-Modernidade, Os Direitos Humanos na Pós-Modernidade, Cap.6, e É Preciso Salvar os Direitos Humanos, São Paulo, Perspectiva, 2005 e 2018 respectivamente.

[3]https://www.metapoliticabrasil.com/post/liberdade-religiosa-religiao-libertadora

[4] Para a definição do neointegrismo, baseio-me em Gabriela Arguedas Ramírez, “Ideologia de gênero, neointegrismo católico e fundamentalismo evangélico: a vocação antidemocrática”, Revista Rosa 2, série 1, São Paulo, 2020.

[5]https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/09/22/leia-a-integra-do-discurso-de-bolsonaro-na-assembleia-geral-da-onu.htm

[6] V. Enzo Traverso, Melancolia de Esquerda: Marxismo, História e Memória, Belo Horizonte, Editora Âiné Aut-aut. Nr. 2., 2018. V. também os encontros, seminários internacionais e esforços pessoais variados de Slavoj Zikek, Alain Badiou e outros para definir o que pode ser comunismo na situação presente.

[7] Para a descrição desses fatos v. J.A. Lindgren-Alves, A Década das Conferências, 2ª Ed. Brasília, FUNAG, 2018. Especificamente sobre Durban, v.Os Direitos Humanos na Pós-Modernidade, Cap.6.

Referência imagética:

Discurso do ministro Ernesto Araújo à turma João Cabral de Melo Neto. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=eeEawfB7X-g


terça-feira, 10 de novembro de 2020

Brasil longe da festa da eleição de Biden - Marcos Magalhães (Capital Político)

 Parece que quando o presidente Bolsonaro finalmente reconhecer a vitória (ugh!) de Biden e decidir apresentar seus cumprimentos, isso vai ser considerado totalmente inadequado e irrelevante.

Paulo Roberto de Almeida

 

Longe da festa

Marcos Magalhães

Capital Político, 10/11/2020


A primeira segunda-feira após o anúncio da vitória de Joe Biden amanheceu em festa. O fim da longa espera pelos resultados das eleições nos Estados Unidos e a notícia de que uma das vacinas em fase final de desenvolvimento demonstrou 90% de eficácia contra o coronavírus levaram o otimismo de volta aos mercados.

As bolsas subiram na Europa e na Ásia. No Brasil, o Ibovespa começou a semana em alta de 4%. O dólar, que andava arisco, caiu à menor cotação desde setembro. Tudo isso apesar do estado de negação do ainda presidente Donald Trump. E, no caso dos mercados brasileiros, do silêncio do presidente Jair Bolsonaro.

Durante o final de semana, líderes de várias partes do mundo enviaram mensagens de felicitação ao presidente eleito Joe Biden. A primeira-ministra Angela Merkel disse que os Estados Unidos e a Alemanha, como parte da União Europeia, devem enfrentar juntos “os grandes desafios do nosso tempo”.

De Tóquio, o primeiro-ministro Yoshihide Suga postou no Twitter que espera trabalhar com Biden para fortalecer as relações bilaterais e garantir “paz, liberdade e prosperidade” na região do Indo-Pacífico.

Os vizinhos argentinos também foram rápidos. “Saúdo Joe Biden, o próximo presidente dos Estados Unidos, e Kamala Harris, que será a primeira vice-presidente feminina daquele país”, escreveu o presidente Alberto Fernández em suas redes sociais. 

É bem verdade que o governo chinês optou inicialmente pelo silêncio. “Tomamos conhecimento de que Biden se declarou vencedor nas eleições”, disse o porta-voz Wang Wenbin. “Nosso entendimento é que o resultado da eleição será determinado de acordo com as leis e procedimentos dos Estados Unidos”.

Depois de experimentar um período de grande tensão no relacionamento com Trump, Pequim avalia o que esperar do novo momento político americano. “No curto prazo as relações serão menos tensas”, escreveu no Global Times o vice-diretor do Instituto de Estudos Americanos da Academia Chinesa de Ciências Sociais, Yuan Zheng.

“Mas no longo prazo”, ressalvou o especialista, “os laços bilaterais deverão enfrentar maiores desafios, à medida que Biden ressalta a liderança americana, e ele não poupará esforços para se alinhar aos países aliados para conter a China, o que parece ser mais ameaçador para a China em comparação à administração Trump”.

Silêncio

Se o governo chinês ao menos apresentou uma declaração diplomática a respeito da eleição de Biden, Brasília permaneceu em silêncio. Apenas o vice-presidente Hamilton Mourão previu que, “na hora certa”, Bolsonaro transmitiria os “cumprimentos do Brasil a quem for eleito”.

Segundo Mourão, o presidente estaria apenas aguardando notícias sobre a possibilidade de serem detectados votos falsos nas eleições americanas. Uma precaução que não parece haver sido compartilhada pelos líderes das maiores democracias do mundo, que não só reconheceram os resultados das eleições como já enviaram saudações ao presidente eleito.

Sob o argumento do cuidado com possíveis fraudes eleitorais, Bolsonaro mantém a fidelidade a Trump e se cala. Seu silêncio serve como poderosa mensagem à sua base política, decepcionada com os resultados das urnas. Mas deixa todo um país refém dos sentimentos dos integrantes de seu núcleo duro de seguidores.

Ninguém duvida que o Brasil e os Estados Unidos manterão as suas tradicionais relações. Mas a postura inicial de Brasília em relação ao futuro governo americano pesará na hora de redefinir as bases desse relacionamento, agora sob uma administração democrata.

Prioridades

Na verdade, o governo brasileiro anda muito seletivo ao definir as suas prioridades externas. Até hoje Alberto Fernández espera uma mensagem de congratulações de Bolsonaro por sua eleição para a presidência da Argentina, há um ano. E a Argentina é a principal parceira do Brasil no Mercosul.

Fernández, por sinal, estava na cerimônia de posse no final de semana do novo presidente da Bolívia, Luis Arce. O governo brasileiro não enviou sequer um ministro a La Paz. Foi representado pelo embaixador na Bolívia, Octavio Cortes. Até mesmo o presidente da Colômbia, Iván Duque, politicamente próximo de Bolsonaro, esteve na capital boliviana.

O presidente brasileiro parece mais preocupado com as cores do redesenhado mapa político regional. Ele tem dito que anda atento à expansão do vermelho pela vizinhança.

Entre os motivos de sua apreensão estão as eleições de Fernández e Arce, além da recente decisão dos eleitores chilenos, em plebiscito, de convocar uma assembleia para dar ao país uma nova Constituição, que substitua o texto herdado do ditador Augusto Pinochet – que já foi elogiado publicamente por Bolsonaro.

O ambiente político na Bolívia ainda está longe da estabilidade. Houve manifestações na região opositora de Santa Cruz de la Sierra em defesa de uma auditoria das eleições presidenciais. Três dias antes da posse ocorreu um atentado contra o presidente eleito. Uma bomba de dinamite foi lançada contra o seu escritório de campanha.

Mesmo assim, Arce optou por um discurso de conciliação. “Iniciamos uma nova etapa em nossa História e queremos fazê-lo com um governo que seja para todos e para todas, sem discriminação”, disse o novo presidente da Bolívia.

A 6230 quilômetros dali o presidente Joe Biden também apostou na conciliação em seu primeiro pronunciamento após a divulgação dos resultados que lhe garantiram a vitória. “Precisamos parar de tratar os oponentes como inimigos”, recomendou. “É hora de deixar de lado a retórica inflamada, acalmar os ânimos, ouvirmos uns aos outros”.

Párias

Suas palavras espalharam uma sensação de alívio, que podia ser percebida em artigos, editoriais de grandes jornais e declarações de líderes de várias partes do mundo. Não porque se trate de um presidente mais liberal ou mais conservador, mas porque o presidente eleito indica preferência pelo diálogo e, sempre que possível, pela cooperação internacional.

O meio ambiente é um bom exemplo. Biden promete recolocar os Estados Unidos no Tratado de Paris sobre mudanças climáticas, em sintonia com aquilo que a atual liderança do Itamaraty vê como “globalismo”. E indica que terá atenção especial ao desmatamento da Amazônia, o que colocou o governo brasileiro em estado de prontidão.

Em discurso a jovens diplomatas, duas semanas antes das eleições americanas, o ministro Ernesto Araújo mostrou que não liga muito para os que acusam a sua gestão de ter promovido o isolamento do Brasil – com exceção, é claro, da aproximação com Donald Trump.

“Nos discursos de abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas deste ano, os presidentes Bolsonaro e Trump foram praticamente os únicos a falar em liberdade”, disse Araújo. “Sim, o Brasil hoje fala em liberdade através do mundo. Se isso faz de nós um pária internacional, então que sejamos esse pária”.

Para Araújo, “é bom ser pária”. Ele é visto como um dos integrantes do chamado grupo ideológico do governo, esse mesmo que Bolsonaro procura agradar ao retardar o envio de saudações a Joe Biden por sua internacionalmente reconhecida eleição.

Os “ideológicos” vibravam quando Bolsonaro falava publicamente de seu apoio à reeleição de Trump, integrante da mesma direita radicalizada que aposta no confronto como método político. E aplaudiram o presidente quando ele criticou os eleitores argentinos por suas escolhas.

O Brasil não pode ficar refém dos “ideológicos”. O país levou décadas para moldar a reputação de um parceiro confiável na construção de consensos. Poderá ter de dedicar anos para reconstruir a sua imagem junto à comunidade internacional.

Marcos MagalhãesMarcos Magalhães

Jornalista especializado em temas globais, com mestrado em Relações Internacionais pela Universidade de Southampton (Inglaterra), apresentou na TV Senado o programa Cidadania Mundo. Iniciou a carreira em 1982, como repórter da revista Veja para a região amazônica. Em Brasília, a partir de 1985, trabalhou nas sucursais de Jornal do Brasil, IstoÉ, Gazeta Mercantil, Manchete e Estado de S. Paulo, antes de ingressar na Comunicação Social do Senado, onde permaneceu até o fim de 2018. ⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀ ⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀ ⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀ ⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀ ⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀ ⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀ ⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀ magmarcos@outlook.com

 

 

Mind the Gap": New Directions in History, Culture and Diplomacy in a Time of COVID - LSE Dept of International History

"Mind the Gap": New Directions in History, Culture and Diplomacy in a Time of COVID

Hosted by the Department of International History

ZOOM, UNITED KINGDOM

How to Attend: 

https://www.lse.ac.uk/International-History/Events/2020/mind-the-gap#ticket-info 

This event series is co-hosted by the Cold War Studies Project at LSE IDEAS

History, Culture and Diplomacy Series

Join the Department of International History for the first presentation of the programme in History, Culture and Diplomacy with Blanche Wiesen Cook, Margaret Peacock, Audra Wolfe, and Patryk Babiracki.

Blanche Wiesen Cook, the acclaimed biographer of Eleanor Roosevelt, will be discussing her new paper ‘Doctors Divided: The AMA’s war against National Health care for ALL, 1935-2020’. Margaret Peacock (Innocent Weapons: The Soviet and American Politics of Childhood in the Cold War)Audra Wolfe (Freedom's Laboratory: The Cold War Struggle for the Soul of Science), and Patryk Babiracki (Soviet Soft Power in Poland: Culture and the Making of Stalin's New Empire, 1943-1957) will discuss new directions and their future publications, and reflect on moving forward in a time of COVID.

The panel sets the stage for on-campus lectures by each scholar in the 2021-2022 academic year.

Piers Ludlow, Chair, Department of International History, will introduce the programme and Victoria Phillips, Visiting Fellow, London School of Economics, will moderate the discussion.

 

Margaret Peacock is Associate Professor of History at the University of Alabama.

Audra J. Wolfe (@ColdWarScience) is a Philadelphia-based writer, editor, and historian. She is the author of Competing with the Soviets: Science, Technology, and the State in Cold War America.

Patryk Babiracki is Associate Professor in Russian and East European history at the University of Texas-Arlington.

Blanche Wiesen Cook is Distinguished Professor of History and Women's Studies at the John Jay College and the Graduate Center of the City University of New York.

Victoria Phillips is LSE Visiting Fellow in the Department of International Histroy at LSE. She is the author of Martha Graham’s Cold War: The Dance of American Diplomacy. A Lecturer in History at the European Institute and Department of History at Columbia University in the City of New York, Dr. Phillips is also Associated Faculty at the Harriman Institute, director of the Cold War Archival Research project (CWAR), and Visiting Fellow in the Department of International History at the London School of Economics

Piers Ludlow is Head of Department in International History at LSE. His main research interests lie in the history of Western Europe since 1945, in particular the historical roots of the integration process and the development of the EU.

The Department of International History (@lsehistory) teaches and conducts research on the international history of Britain, Europe and the world from the early modern era up to the present day. Sponsored by the department's Contemporary International History and the Global Cold War research cluster.

Speakers

Dr Margaret Peacock

Dr Margaret Peacock

Dr Audra J. Wolfe

Dr Audra J. Wolfe

Dr Patryk Babiracki

Dr Patryk Babiracki

Professor Blanche Wiesen Cook

Professor Blanche Wiesen Cook

Chair

Professor Piers Ludlow

Professor Piers Ludlow

Moderator

Professor Piers Ludlow

Dr Victoria Phillips

Amazônia: plano de Mourão retrocede aos tempos do “espaço vital” - Claudio Angelo

 Pelo que se constata aqui, o planejamento estratégico do desgoverno Bolsonaro desceu ao nível da indigência mental.

Paulo Roberto de Almeida 

Plano de Mourão para Amazônia é mistura de Golbery, Göring e Borat

Tese nazista do ‘espaço vital’, delírios sobre cobiça estrangeira e mentira sobre ONGs adornam Powerpoint constrangedor do Conselho da Amazônia.

CLAUDIO ANGELO
Especial para Direto da Ciência*
Terça-feira, 10 de novembro de 2020, 12h25.

Borat Sagdiyev não faria melhor pela honra da gloriosa nação do Cazaquistão. A apresentação que o vice-presidente Hamilton Mourão enviou para o Ministério da Economia no último dia 3, contendo o plano dos militares do Conselho da Amazônia para “a proteção e o desenvolvimento sustentável” da floresta, tem passagens que lembram as maquinações patrióticas do repórter ficcional criado pelo humorista Sacha Baron Cohen. O powerpoint de 24 slides é uma mistura de desinformação, delírios soberanistas e gafes que o racista Borat bem poderia ter cometido, como classificar povos indígenas como parte da “biodiversidade” amazônica.

Há até mesmo um mapa do Cazaquistão no quinto slide da apresentação, para ilustrar um conceito aparentemente ainda em voga na caserna: o de “espaço vital”, criado na Alemanha no século 19 e popularizado no 20 por figuras como Adolf Hitler e Hermann Göring. Os nazistas alegavam que precisavam de “espaço vital” (Lebensraum) para a pátria alemã, daí a necessidade de expandir as fronteiras do Reich, ocupando a Áustria e a Polônia. Mourão e seus green caps apontam a Amazônia como “espaço vital” para o mundo, decretando que a “sobrevivência do poder hegemônico de países como Inglaterra, França, Alemanha e Estados Unidos depende de acesso à vasta fronteira internacional de recursos naturais estratégicos”. A China, prosseguem, teria entrado agora nesse jogo, direcionando sua política externa para “regiões ricas em recursos naturais estratégicos”.

O corolário dessa afirmação é que a Amazônia pode ser invadida a qualquer momento – e o Brasil precisa pagar a taxa de proteção aos militares para impedir que isso ocorra. Ou, em miliquês corrente, “assegurar sua soberania pela coordenação e integração de políticas públicas por meio do Cnal [Conselho Nacional da Amazônia Legal]”. Para reforçar esse ponto, o Ministério da Defesa é citado nove vezes na apresentação; o Ibama e o ICMBio, nenhuma. Niiiice!

 

Velhas teorias conspiratórias

É impossível ler o documento do Conselho da Amazônia e não lembrar as teorias conspiratórias publicadas nos anos 1950 pelo ex-governador do Amazonas Arthur Reis. Num livro que fez a cabeça dos militares da ditadura (e pelo visto continua popular hoje) chamado “A Amazônia e a Cobiça Internacional”, Reis argumenta que a vastidão de terras e de recursos naturais da Amazônia é um chamariz constante às investidas estrangeiras para expropriá-la do Brasil, alegando inclusive que a internacionalização da floresta brasileira seria uma saída para as nações que perderam na descolonização da África e da Ásia manterem seu “poder hegemônico”. Em nome dessa tese, que já era furada na época do golpe de 1964, a ditadura produziu um desastre ambiental em tempo recorde na Amazônia. O fato de essa argumentação aparecer decalcada num documento oficial quase 70 anos depois – e ainda acrescida de um tributo, quero crer involuntário, a Hitler – faz pensar para que nós estamos jogando dinheiro de impostos fora para pagar o salário desses “estrategistas”.

O mundo mudou um bocado desde a Segunda Guerra, amiguinhos. Essa coisa de invadir países para pilhar seus recursos naturais caiu de moda, não sei se vocês perceberam. Nem mesmo o petróleo, que sempre motivou intervenções dos EUA, ainda justifica operações militares depois que os americanos aprenderam a extraí-lo de rochas sedimentares comuns usando o grande recurso estratégico do século 21, aquele que o Brasil não tem: tecnologia. Sobre a China, o oposto se verifica. O governo chinês é o maior detentor do planeta dos minerais estratégicos conhecidos como terras raras, e tem limitado sua exportação, forçando multinacionais de alta tecnologia que queiram utilizá-las a se instalar em solo chinês.

E quais seriam os “recursos estratégicos” que motivariam a invasão da Amazônia? O principal deles, que merece dois slides inteiros de Mourão, é a água doce. Quem se lembra da obsessão de Borat com o potássio, o grande produto de exportação do Cazaquistão fictício dos filmes de Baron Cohen, pode dar uma risadinha aqui. Imagine a Quarta Frota dos EUA desembarcando em Belém do Pará com seus marines armados de fuzis e garrafas Pet para saquear o aquífero Alter do Chão! Evidentemente não é assim que se pilha esse recurso particular: a água é exportada na forma de commodities agrícolas como carne e soja, e o jeito moderno de subtraí-la é adquirir terras agrícolas num outro país. E adivinhem se a bancada ruralista, esteio do governo Bolsonaro, não tenta desde o ano passado emplacar um projeto de lei autorizando a venda de terras no Brasil a estrangeiros?

Os “estrategistas” militares evidentemente ignoram esse detalhe inconveniente de aliados do regime conspirando contra a soberania nacional. Preferem focar sua atenção ao Grande Satã do bolsonarismo, esse “câncer” que o presidente não consegue matar: as ONGs. O powerpoint de Mourão repagina e repete a tese fraudulenta da “máfia verde”, segundo a qual as entidades ambientalistas agiriam em conluio com governos europeus para prejudicar o agronegócio brasileiro. Tivesse ido perguntar em Paris ou em Berlim, o general teria descoberto que o principal garoto-propaganda do agro europeu contra o brasileiro é o desmatamento da Amazônia, incentivado por seu chefe.

 

‘Ações estratégicas prioritárias’

Aqui Mourão bate continência intelectual a um outro personagem, o general Golbery do Couto e Silva (1911-1987), um dos arquitetos do golpe militar. Como lembra em suas aulas o professor da UFMG Raoni Rajão, Golbery foi o grande tradutor da geopolítica norte-americana no Brasil na década de 1950, tendo implantado por aqui a doutrina de “segurança nacional”, sacramentada em lei em 1967, que recomenda a repressão a “antagonismos internos”.

Foi movido por esse conceito vintage que o regime brasileiro decretou na posse que acabaria “com todo tipo de ativismo”, que Bolsonaro tentou emplacar uma MP para monitorar ONGs através do hoje comunista general Santos Cruz, que Augusto Heleno mandou agentes da Abin à COP25 e que Mourão propôs como objetivo do Conselho da Amazônia “controlar 100% das ONGs” até 2022. Após a notícia ter sido publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, o vice correu para negar a própria obra. Mas a apresentação, enviada a Paulo Guedes num documento assinado de próprio punho por ele, traz a perseguição a ONGs explícita em dois momentos: no slide 12, no qual as acusa de apoiar “interesses menos republicanos”, e no slide 17, que lista entre as ações estratégicas prioritárias do Cnal “criar marco regulatório para a atuação das ONGs”.

O que não se descobre em lugar nenhum do powerpoint é qual é o plano de Hamilton Mourão para proteger e desenvolver de forma sustentável a Amazônia, afinal. O conselho faz tábula rasa de tudo o que se realizou na década passada para reduzir o desmatamento. Ignora o Plano de Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia, que combinou fiscalização inteligente com o garrote financeiro aos ilegais e conseguiu cortar em 80% a taxa de devastação entre 2004 e 2012. Não menciona uma vez sequer o monitoramento por satélite do Inpe, ferramenta fundamental para o êxito passado do país contra o crime ambiental – ao contrário, sugere seu fim ao atribuir todo o monitoramento ao Ministério da Defesa. Fala em reativar o Fundo Amazônia, mas não explica se aceitará o modelo de governança do fundo ou se insistirá na pirraça do ministro do Meio Ambiente de alterar a composição de seus comitês para excluir a sociedade civil (o que os países doadores não aceitam). As “ações estratégicas prioritárias” – sem prazos, metas ou meios de implementação – lembram mais um conjunto de palpites coletados num brainstorming do que um plano de governo.

O documento de oito páginas anexo à apresentação e intitulado “matriz de acompanhamento das ações imediatas do Cnal” não se sai muito melhor. Lista 16 ações, entre elas o estabelecimento de “metas realistas de desmatamento e queimadas legais” para o mês passado (ops!), mas mantém silêncio sepulcral sobre repressão a ilícitos, implementação de áreas protegidas e outras medidas de eficácia demonstrada contra o desmatamento. Ao contrário, acena aos criminosos ao prometer para dezembro deste ano a reestruturação, “doutrinária, se for o caso”, do Ibama e do ICMBio.

Hamilton Mourão não tem um plano de desenvolvimento sustentável para a Amazônia. Ele tem um plano de ocupação militar da região, aplicando à maior floresta tropical do mundo, em pleno século 21, o mesmo quadro conceitual que resultou em desastre ambiental, miséria e violência na região em meados do 20. Não é espanto algum que milicos queiram militarizar a região; é o que eles sabem fazer. Espantoso é que a sociedade brasileira assista a tudo isso impassível e que alguns incautos na comunidade internacional ainda achem que dá para manter um diálogo produtivo com essa tropa de cossacos. Como diria Borat, Wawaweewa!

CLAUDIO ANGELO é coordenador de Comunicação do Observatório do Clima e autor de A espiral da morte – como a humanidade alterou a máquina do clima(Companhia das Letras, 2016).

Leia também:

Na imagem acima, o vice-presidente da República e presidente do Conselho Nacional da Amazônia Legal, Hamilton Mourão, fala à imprensa, após a terceira reunião do colegiado, no Palácio Itamaraty em Brasília. Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil.


La Argentina no es Venezuela, pero lo intenta y va por buen camino - Loris Zanatta (La Nación)

 O Brasil, como eu já disse, cambaleia entre a Argentina e a Grécia, mas poderia ser pior. A Argentina tenta chegar na Venezuela. Vou postar o artigo no blog Diplomatizzando:

La Argentina no es Venezuela, pero lo intenta y va por buen camino
Loris Zanatta
La Nación, 10/11/20

Argentina no es Venezuela, pero lo intenta. Hay semejanzas que dejan pensando. A ver si esta historia les sugiere algunas.

Hacia 2004, una ola de ocupaciones sacudió el campo venezolano. ¿Espontánea? Como abetos en los trópicos, palmeras en los polos. Hugo Chávez dirigía la orquesta, sus secuaces golpeaban el bombo. El grito de batalla aún no era "tierra, techo, trabajo", el papa Francisco era monseñor Bergoglio, los "movimientos populares" no gozaban de fama mundial. Pero el fondo ya era eso: el "pueblo surgido de la oscuridad", tronó el caudillo por cadena nacional, volverá a los campos de donde los ha expulsado el "neoliberalismo", los campos exentos de la inmoralidad de las ciudades opulentas.

El chavismo banqueteaba con el petróleo, pero teorizaba una Arcadia rural. Prometió prosperidad, juró erradicar la pobreza: aguanta caballo.

Muy raro: tierra de inmigrantes, Venezuela es un país urbano. Pocos de esos improvisados ocupantes habían sido alguna vez campesinos, menos aún tenían la vocación de serlo: obtenida la tierra, muchos la abandonaban para regresar a la ciudad. No importa. Ante el "clamor popular", Chávez anunció una reforma agraria: repartir la tierra, combatir el latifundio, ocupar los terrenos improductivos; música para oídos revolucionarios, bálsamo para corazones cristianos, Viagra para tiernos intelectuales.

¿Las invasiones, expropiaciones, requisas violaban la ley? ¿Infringían la Constitución que protegía la propiedad privada? ¿"Su" Constitución? Olvídenlo: ¡es la Constitución del pueblo, no de los "escuálidos"!

Se vio de todo: teatro político, espejuelos, acuerdos por la trastienda. Un gobernador se ensañó contra una reserva natural, modelo de eficiencia y destino turístico: ¡era propiedad privada, intolerable! La arruinó. Las ocupaciones se extendieron a los predios urbanos, ante el aplauso de los funcionarios. ¿Cómo medir la productividad de la tierra? La lógica de la tribu se impuso: los "latifundios" baldíos para incautar eran las tierras de los enemigos, los "productivos" eran los de los clientes del régimen. Los invasores solían quemar las cosechas: la tierra quemada parecía sin cultivar y el Estado enviaba a los militares a requisarla. La propiedad, se sabe, corrompe el alma: ¡créanse cooperativas!, ordenó entonces Chávez.

Ábrete cielo: el gobierno les ordenó qué debían cultivar, pero no les brindó maquinaria ni asistencia técnica. Habilidades, productividad, legalidad: al macerador. Reinaban el caos, la corrupción, el clientelismo, la arbitrariedad. Especialmente la ineficiencia. Chávez se jactaba de repartir millones de hectáreas, pero era una patraña: no había demanda de tanta tierra y el Estado no sabría cómo hacerlo. "No le importa producir más", señaló un diplomático, sino "controlar la cadena del suministro de alimentos", capturar los votos rurales, hacerse el Cristo que redime a los pobres. ¿Soberanía? ¿O hambre?

La producción colapsó. Leche y maíz fueron los primeros en escasear; luego frijoles, trigo, huevos, pollo. El control de precios, arma letal, les dio el golpe de gracia. ¿De qué sorprenderse, si lo mismo le pasó incluso al sector petrolero, el ganso de oro venezolano ? ¿Si en pleno auge de los precios la petrolera estatal no lograba producir la cuota que le asignaba la OPEP?

La ineptitud estaba en todas partes, dorada por enfáticos llamamientos al pueblo, por vacuas peanas a los pobres: "Ninguna asociación con el capital privado -confió el presidente de Pdvsa-, solo expropiaciones". ¡Enhorabuena!

Hacía tiempo que Chávez había tomado la Justicia por asalto: sus legisladores habían aumentado el número de jueces de la Corte Suprema, para llenarla de fieles chavistas

Expuestos a la picota, señalados por pecadores culpables de producir y ganar, por codiciosos explotadores del pueblo, los propietarios estaban de espaldas a la pared: tanto los más grandes y poderosos como los más pequeños e indefensos. Ni lerdos ni perezosos, sumaron dos y dos: el chavismo usaba las instituciones estatales para apropiarse de sus tierras. Algunos levantaron barricadas, otros intentaron acicalarse con el régimen, todos dejaron de invertir. Lógico, dadas las circunstancias. Muchos confiaron en los tribunales: ilusos. Sí, porque la "Justicia" ya había pasado por las horcas caudinas, ya era la Justicia chavista. Hacía tiempo que Hugo Chávez la había tomado por asalto: sus legisladores habían aumentado el número de jueces de la Corte Suprema, para llenarla de fieles chavistas. De ahí el efecto en cascada, la depuración de fiscales y procuradores, la ocupación política de los tribunales locales. En 2006, en la inauguración del año judicial, los jueces de la Corte entonaron a coro "Chávez no se va". ¿Qué esperar de esa Justicia? Buscar protección allí era como meterse en la boca del lobo. Muchos empezaron a arrojar la esponja, a dejar el país.

La cruzada contra la propiedad privada, madre del egoísmo, cuna del individualismo, pecado original que corrompe al "pueblo" y contamina a los "pobres", recién comenzaba. El Estado lanzó al ataque sus fanáticos misioneros: ¡arrepiéntanse, conviértanse, expíen! Una ley lo autorizó a intervenir en la producción y venta de todos los bienes y servicios que "mejoran la calidad de vida". ¡Teléfonos celulares incluidos! En nombre de la "solidaridad", no hace falta decirlo. ¿Resultado? La calidad de vida empezó a empeorar, para los ricos y para los pobres.

El siguiente paso se daba por sentado: ¿podrían no surgir el "hombre nuevo", la armonía natural, la hermandad universal de las cenizas de Gomorra, de la expiación de la culpa "neoliberal"? El Ministerio de Educación tenía ideas claras: basta, decretó, con el respeto a todas las corrientes de pensamiento, el bolivarianismo iba a ser la única doctrina, el nuevo catecismo. Como decía Fidel Castro, "la escuela burguesa da mil explicaciones, la revolucionaria solo la verdadera". El chavismo se reveló inepto incluso para eso.

Cuál fue el resultado de tanta furia redentora está a la vista: a que infierno han llevado tantas bellas intenciones, tanta "justicia social". Para tener un poco de tierra, techo y trabajo, los venezolanos tuvieron que escaparse. ¡En su patria falta incluso la gasolina! La comida es importada y racionada, la agricultura desbandada: ¡felicidades por la reforma agraria! ¿Salarios y pensiones? Pocos dólares. La salud agoniza, la escuela se derrumba.

¿Moraleja? Pobrismo e ilegalidad, autoritarismo y paternalismo, estatismo y anticapitalismo, campaña contra ciudad, pueblo contra oligarquía, solidaridad contra propiedad: un déjà-vu, un disco rayado.

La Argentina no es Venezuela, es cierto. Pero lo intenta, y va por buen camino.

 

Loris Zanatta, Ensayista y profesor de Historia en la Universidad de Bolonia, Italia