O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

O episódio da nacionalização boliviana dos recursos de hidrocarbonetos em 2006 e minha posição na ocasião - Paulo Roberto de Almeida

 Em 2006, eu segui atentadamente os assuntos da nacionalização dos hidrocarbonetos na Bolívia. Reproduzo abaixo o que fiz naquele momento.

Da minha lista de trabalhos originais:

1594. “Anotações em torno de duas notas pouco notáveis”, Brasília, 2-4 maio 2006, 4 p. Comentários aos termos da Nota do Governo Brasileiro sobre a nacionalização dos recursos de hidrocarbonetos pelo governo da Bolívia (2/05/06) e da Declaração dos presidentes da Argentina, Bolívia, Brasil e Venezuela (Puerto Iguazú, 4/05/2006). 

O conteúdo do que postei na ocasião: 

Anotações em torno de duas notas pouco notáveis

 

 

Comentários colocados na lista Diplomatizando

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 2-4 maio 2006, 4 p.

 

 

Nota do Governo Brasileiro sobre a nacionalização dos recursos de hidrocarbonetos pelo governo da Bolívia

Nota do Palácio do Planalto: 2 de maio de 06

 

"1. O gasoduto Bolívia-Brasil está em funcionamento há sete anos, como resultado das negociações empreendidas por sucessivos governos há mais de cinquenta anos.

 

COMENT.: Que notável concessão à “pré-história” deste governo! Mas, para não dizer que todo o projeto da exploração dos recursos energéticos da Bolívia e do gasoduto foi obra do governo FHC, se faz remontar a história aos famosos “acordos de Roboré”, do final dos anos 1950, que não resultaram em nada naquela ocasião. Trata-se de uma tática do tipo stalinista: não podendo eliminar totalmente a história passada, se estende a origem de fatos contemporâneos a tempos imemoriais...

 

2. A decisão do governo boliviano de nacionalizar as riquezas de seu subsolo e controlar sua industrialização, transporte e comercialização, é reconhecida pelo Brasil como ato inerente à sua soberania. O Brasil, como manda a sua constituição, exerce pleno controle sobre as riquezas de seu subsolo.

 

COMENT.: Bela lição de soberania, mas em juridiquês pouco sofisticado, com o grande problema de que a soberania não pertence exatamente ao governo boliviano, e sim é inerente a qualquer Estado, enquanto entidade representativa de um país membro da comunidade internacional. 

 

3. O governo brasileiro agirá com firmeza e tranquilidade em todos os foros, no sentido de preservar os interesses da Petrobras e levará adiante as negociações necessárias para garantir o relacionamento equilibrado e mutuamente proveitoso para os dois países.

 

COMENT.: Os interesses não são apenas os da Petrobrás, pois a exploração do petróleo e do gás bolivianos foi objeto de acordos governamentais, isto é, internacionais, e sua implementação interessa ao Brasil, como cliente comercial, e não apenas à Petrobrás. Faltou definir quais são esses foros, sobre os quais parece persistir certas dúvidas. O fato de se ter de utilizar a palavra “tranquilidade” talvez seja um “lapso freudiano”, revelador de quão intranquilo está o governo brasileiro. 

 

4. O governo brasileiro esclarece, finalmente, que o abastecimento de gás natural para o seu mercado está assegurado pela vontade política de ambos os países, conforme reiterou o presidente Evo Morales em conversa telefônica com o presidente Lula e, igualmente, dispositivos contratuais amparados no Direito Constitucional. Na mesma ocasião, foi esclarecido que o tema preço do gás será resolvido por meio de negociações bilaterais.

 

COMENT.: “Vontade política” é a palavra mais usada, abusada e conspurcada num certo vocabulário do poder, de qualquer poder e deste em particular. A “vontade política” do presidente boliviano é a de continuar fornecendo todo o gás de que o Brasil necessitar desde que ele conceda pagar os preços impostos pelo “parceiro” boliviano. Faltou esclarecer de qual “direito constitucional” se está tratando: cada país tem o seu e o nosso, por exemplo, reconhece a “função social da propriedade” (o que é meio caminho andado para a expropriação pura e simples, pois um fazendeiro ecologista não tem o direito de comprar grandes extensões de terra para deixá-las entregue à natureza). Cada país tem o seu direito constitucional, e isso é inerente à soberania de cada um: o da Bolívia não parece ser muito estável, ou imune a mudanças repentinas...

 

5. Os presidentes deverão encontrar-se nos próximos dias para aprofundar questões de relacionamento Bolívia e Brasil e da segurança energética da América do Sul".

 

COMENT.: Por enquanto não precisaria ir tão longe e cuidar da segurança energética de todo o continente: bastaria cuidar só da nossa, hoje comprometido com a dependência do gás boliviano, já integrado à nossa matriz energética. Se ainda vamos integrar outras fontes a essa matriz, será preciso treinar um batalhão de doutores em direito constitucional sul-americano...

 

2 de maio de 2006

 

=============

 

Declaração dos Presidentes Kirchner, Morales, Lula e Chávez 

(Puerto Iguazú, 04/05/2006) 

Nota nº 276 - 04/06/2006

Distribuição 22 e 23

 

Declaração dos Presidentes da Argentina, Bolívia, Brasil e Venezuela

 

Os Presidentes da Argentina, Bolívia, Brasil e Venezuela, reunidos em Puerto Iguazú, destacaram que a integração energética é um elemento essencial da integração regional em benefício de seus povos.

 

            COMENT.: Não era preciso uma reunião de presidentes para dizer uma banalidade desse tipo.

 

Nesse contexto, os Presidentes coincidiram na necessidade de preservar e garantir o abastecimento de gás, favorecendo um desenvolvimento equilibrado nos países produtores e e consumidores.

 

            COMENT.: Não se diz quem abastece quem, nem o que precisa ser feito para que garantias sejam oferecidas, o que significa, implicitamente, que tais garantias não existem. Desenvolvimento equilibrado é uma expressão genérica que não reflete a condição naturalmente assimétrica das partes envolvidas nesse tipo de relação: uma é produtora-fornecedora de um insumo valioso, a outra é consumidora cativa até o limite do custo-oportunidade, quando deve medir o interesse de fornecimentos alternativos.

 

Da mesma forma, destacaram que a discussão sobre os preços do gás deve dar-se num marco racional e equitativo que viabilize os empreendimentos.

 

            COMENT.: Esses preços já tinham sido fixados em contrato, que incluem cláusulas de revisão de preços e permitem, portanto, uma discussão “racional”. O que se está prepondo aqui, implicitamente, é uma nova discussão, negando, portanto, as discussões anteriores. A unilateralidade do posicionamento não foi sequer mencionada.  

 

Nesse espírito, coincidiram no aprofundamento dos diálogos bilaterais para resolver questões pendentes.

 

            COMENT.: Bilateralidade foi tudo o que não ocorreu nesse encontro, como personagens estranhos ao problema sendo chamados para discutir questões estritamente bilaterais.

 

Por outra parte, expressaram sua vontade de trabalhar para o aprofundamento do MERCOSUL e para a consolidação da integração sul-americana. Nesse sentido, ratificaram sua decisão de avançar no projeto do gasoduto do sul.

 

            COMENT.: A referência ao Mercosul é totalmente desnecessária, pois ele não estava e não está em causa na relação estritamente bilateral de fornecimento de gás boliviano ao Brasil. Uma declaração comprometedora como essa, “avançar no projeto do gasoduto do sul”, sem que se disponha de estudos técnicos sobre a quantidade e disponibilidade de gás venezuelano para fornecimento aos países da região e sobre o preço final desse gás na porta do consumidor, é algo arriscado, do ponto de vista técnico, político, econômico e diplomático, uma vez que o gasoduto em questão só seria viável se atendesse uma série de requisitos preliminares que ainda permanecem obscuros. Avançar sobre decisões que precisam ainda ser ponderadas pode ser extremamente irresponsável.

 

Coincidiram na importância da unidade da região no diálogo com outros países e regiões e, nesse contexto, mencionaram a relevância do diálogo MERCOSUL-União Européia.

 

            COMENT.: Uma coisa não tem nada a ver com a outra e, de toda forma, quatro presidentes não podem falar por toda a região, sem que os demais tenham sido consultados. 

 

Por último, os Presidentes acordaram fomentar investimentos conjuntos a fim de favorecer o desenvolvimento integral da Bolívia.

 

            COMENT.: O desenvolvimento da Bolívia interessa prioritariamente ao seu povo e aos seus dirigentes, cabendo-lhes, ou não, solicitar cooperação externa na medida de suas necessidades. A menos que os investimentos referidos sejam estatais, os presidentes apenas podem afirmar que vão esforçar-se por gerar um ambiente de negócios favorável aos investimentos produtivos de uma forma geral. Investimentos, por definição, sempre são setoriais, e não podem contribuir ao “desenvolvimento integral” de nenhum país. Os presidentes extrapolaram quanto às suas possibilidades reais. 

 

Puerto Iguazú, 4 de maio de 2006.

 

     COMENT.: Nada a comentar…

 

Timothy Snyder reconstitui a história da Ucrânia e desmente as deformações atuais da sua história

 Kyiv's ancient normality (redux) 

A little history can help us see through the myths 

Timothy Snyder 

Feb 21, 2022


Note to subscribers: today has been an unusually busy day for me, chiefly thanks to Ukrainian matters. Rather than keep everyone in the breathless present, I wanted to share a longer reflection about the past. In my haste, though, I made some typos, which I hope to have corrected in this version. Thanks for your patience. Another article from today, about the history of provocations, is here. And now for the essay, “Kyiv’s ancient normality.”…

More than a thousand years ago, Viking slavers found a route they were seeking to the south.  It followed the Dnipro River through a trading post called Kyiv, then down through rapids even they could not master.  They had slaves carry the boats, and left runes on the riverbank to mark their dead.  These Vikings called themselves the Rus.

The ancient domain of Khazaria was breaking up.  The Khazars had stopped the advance of Islam in the Caucasus in the eighth century, at around the same time as the Battle of Tours.  Some or all of the Khazar elite converted to Judaism.  The Vikings supplanted the Khazars as the tribute collectors of Kyiv, merging customs and vocabulary.  They called their leaders "khagans."

As the Vikings came to understand, conversion to a monotheistic religion could mean control of territory.  The pagan Rus apparently considered Judaism and Islam before converting to Christianity.  The ruler believed to have converted, Valdemar (or Volodymyr, who Russians, much later, called Vladimir), had first ruled Kyiv as a pagan.  According to Arab sources, he had earlier ruled another city as a Muslim.

Colorful this is, but normal.  Vikings contributed to state formation throughout Europe, at the cusp of millennial conversions.  Kyivan Rus was normal in its marital politics, sending a princess to marry the king of France.  Its succession struggles were typical of the region, as was the inability to resist the Mongols in the early 1240s.

Thereafter most lands of Rus were gathered by the Grand Duchy of Lithuania.  This was in a certain sense also normal: Lithuania was the biggest country in Europe.  Kyiv then passed a civilizational package to Vilnius.  Christianity had brought Church Slavonic to Kyiv.  Created in Byzantium to convert Slavs in Moravia, Church Slavonic was then adopted in Bulgaria and in Kyivan Rus.  In Rus it provided the basis for a legal language, now borrowed by Lithuania.

Lithuania merged with Poland.  Ruled from Vilnius and then Warsaw in the fourteenth, fifteenth, sixteenth, seventeenth, and eighteenth centuries, Kyiv remained a center of European trends.  It was touched by the renaissance language question: ancient or modern?  In western Europe, vernaculars triumphed over Latin.  In Kyiv matters were as usual richer in complication: Latin came to rival Church Slavonic as an ancient option, and the Polish vernacular eclipsed the Ukrainian one among elites.  In the seventeenth and eighteenth centuries, the language question was answered by Polish.  It was replaced by Russian as the elite language in the nineteenth and twentieth centuries.  In the twenty-first, Russian has yielded pride of place in politics and literature to Ukrainian.  The language question found a typical answer.

Kyiv and surrounding lands were touched by the Reformation: Ukraine was in this sense typical, but colorfully so.  Elsewhere the Reformation pitted Protestantism against a revived Roman Catholicism.  In Ukraine, the dominant religion was eastern Christianity, or Orthodoxy.  But rich Ukrainian magnates invited Protestants to build churches, and incoming Polish nobles were Roman Catholics.  In 1596 an attempt was made to merge Orthodoxy and Catholicism, which led to yet another church, the Uniate, or Greek Catholic.

The religious wars that followed were typical, if intensified by an accumulation of factors.  The Ukrainian-speaking peasantry was oppressed in order to generate an agricultural surplus for Polish-speaking landlords.  The elite in the country spoke a different language and practiced a different religion from the bulk of the population.  The Cossacks, free men who had served as effective cavalry in the extraordinary Polish-Lithuanian army of the day, rebelled in 1648.  They took all of these Ukrainian causes as their own. 

Some northeasterly territories of old Rus followed a different pattern after the Mongol invasion.  From a new city, Moscow (which had not existed under Rus) princes gained authority by collecting tribute for the Mongols.  A new entity, Muscovy, asserted its independence as the western Mongol empire fragmented.  It first moved south, then east, in an extraordinary campaign of expansion.  In 1648, a Russian explorer reached the Pacific, as the Cossack rebellion began -- some seven thousand kilometers away.  The stalemate between Poland-Lithuania and the Cossacks allowed Muscovy to turn its power west and gain territory.

When Poland-Lithuania and Muscovy made peace, in the late seventeenth century, Kyiv lay on the Muscovite side.  Its academy was Russia's only institution of higher education, and its graduates were valued in Russia.  Kyivan churchmen told their new rulers that Ukraine and Russia shared a common history; that seemed to give them the right to tell it.  Muscovy was renamed the "Russian Empire" in 1721 by reference to ancient Rus, which had been defunct for half a millennium at that point.  Between 1772 and 1795, Poland-Lithuania was partitioned out of existence, and the Russian empress (herself a German), proclaimed that she had restored what had been taken away: again, the myth of a restored Rus.  In the late nineteenth century, Russian historians offered a similar story, one which downplayed the Asian side of Russian history, and the seven hundred years in which Kyiv had existed beyond Russia.  This is more or less the story that Putin tells today. 

In actual history, Ukraine never ceased to be a question.  A national revival began in the Russian Empire not long after the remnants of Cossack institutions were dissolved.  In the nineteenth century, its center was Kyiv. Bans on the use of the Ukrainian language in the Russian Empire pushed the revival to the Habsburg monarchy, where it was aided by a free press and free elections.  Ukrainian life continued in Poland after the dissolution of the Habsburg monarchy in 1918.

After the First World War, Ukrainians tried to establish a state on the ruins of both empires.  The attempt was typical for the time and place, but the difficulties were extreme.  Ukrainians found themselves amidst an unenviable crossfire of Russian Whites, the Red Army, and the Polish Army.  Much of the "Russian civil war" was fought in Ukraine; by its exhausting end, the Bolsheviks needed some answer to the Ukrainian question.  That is why the USSR took the form that it did in 1922, a nominal federation of national republics.  When Boris Yeltsin removed Russia from the USSR in 1991, he signed an agreement with Ukrainian and Belarusian Soviet leaders, representing the official founding entities of the USSR.

Ukraine was the deadliest place in the world during the time when Hitler and Stalin were in power, between 1933 and 1945. It was seen as a breadbasket from both Moscow and Berlin.  Collectivization of agriculture led to a political famine that killed about four million people in Soviet Ukraine in 1932-1933.  A similar desire to redirect Ukrainian food supplies animated Hitler's war planning.  The first major German mass shooting of Jews, at Kamianats' Podils'kyi, took place in Ukraine.  The largest instance of the Holocaust by bullets, at Babyn Iar, was the murder of Kyiv Jews. 

Stalin and Hitler began the Second World War as de facto allies against Poland.  In 1939, they agreed that Poland would be divided and its eastern half controlled by the USSR.  In the end, those same formerly Polish (west Ukrainian) territories were added to Soviet Ukraine in 1945, as were some lands from Czechoslovakia .  Crimea was transferred to Ukraine nine years later.  In this way, the Soviet Union formed the boundaries of Ukraine, just as it formed the boundaries of Russia, and of all of its component republics. 

The histories of Ukraine and Russia are of course related, via the Soviet Union and the Russian Empire, and via Orthodox religion, and much else. The modern Ukrainian and Russian nations are both still in formation, and entanglements between them are to be expected, now and into the future. But Russia is, in its early expansion and contemporary geography, a country deeply connected to Asia; this is not true of Ukraine. The history of Kyiv and surrounding lands embraces certain European trends that are less pronounced in Russia.  Poland and Lithuania and the Jews are indispensable referents for any account of the Ukrainian past.  Ukraine cannot be understood without the European factors of expansive Lithuania and Poland, of renaissance, of Reformation, of national revival, of attempts at national statehood.  The landmarks of the world wars are planted deeply in both countries, but especially so in Ukraine. 

The history of Kyiv is, so to speak, normal in the extreme.  It falls easily into a normal European periodization.  The additional complexity and intensity of these typical experiences can help us see the whole of European history more clearly.  Some of these references are different, or absent, in Russia.  This can make it difficult for Russians (even in good faith) to interpret Ukrainian history, or the history that is "shared": the “same” event, for example the Bolshevik revolution or Stalinism, can look different from different perspectives. 

The myth of eternal brotherhood, now offered in bad faith by the Russian president, must be understood in the categories of politics rather than history.  But a little bit of history can help us to see the bad faith, and to understand the politics.


Uma nota pessoal sobre mais uma postura vergonhosa de nossa diplomacia - Paulo Roberto de Almeida

 Uma nota pessoal sobre mais uma postura vergonhosa de nossa diplomacia 

Paulo Roberto de Almeida


O governo é grotescamente bolsonarista, e o Itamaraty precisa dar tratos à bola para se equilibrar numa patética isenção em face do conflito na Ucrânia, selvagemente atacada pelo autocrata Putin, que desrespeitou várias vezes os espírito e a letra da Carta das Nações Unidas.

Tanto a nota do Itamaraty quanto a declaração do representante junto às Nações Unidas, feita em sessão do CS, são também grotescas, ao deixar de registrar FATOS e ao deixar de condenar AÇÕES CONTRÁRIAS ao Direito Internacional.

O chefe de Estado de um país membro permanente do CSNU declara que resolveu reconhecer a “independência” de duas províncias que ele mesmo armou e sustentou e que na sequência envia tropas numa suposta “missão de paz” está cometendo violações ao Direito Internacional, como já tinha sido o caso da invasão da Crimeia, em 2014, sobre a qual o governo Dilma, em nome do Brasil, silenciou. 

O mesmo ocorre atualmente: a nota e a declaração são vergonhosas pelo que silenciam e escondem: a mentira, a agressão, o caráter inaceitável dos FATOS perpetrados contra um PRINCÍPIO fundamental da política externa e da diplomacia brasileiras, e que já tinha sido proclamado em 1907, por Rui Barbosa, na segunda conferência internacional da paz da Haia: a IGUALDADE SOBERANA DOS ESTADOS. 

A Rússia viola seguidamente esse princípio, mas o governo bolsonarista e o Itamaraty também o violam, ao não reconhecer a sua VIOLAÇÃO neste caso, por quem é o agressor. O contorcionismo verbal dessas peças vergonhosas é grotesco, como sempre foi grotesco o desgoverno atual, ao renegar nossas mais caras tradições diplomáticas e os valores e princípios de nossa anterior política externa, assim como da própria Constituição. 

Para que não se diga que não existem precedentes a essa ruptura inaceitável do Direito Internacional, vou citar apenas um, entre vários outros, por parte de um governo que também quebrou nossas mais sólidas tradições diplomáticas: em 2006, quando a Bolívia de Morales rasgou um tratado bilateral solenemente firmado entre o Brasil e a Bolívia e um acordo legal entre aquele governo e a Petrobras, e mandou TROPAS para ocupar instalações legitimas da empresa naquele país, o governo Lula — não o Itamaraty — emitiu uma nota vergonhosa respaldando aquelas ações ilegais do governo boliviano e se colocando numa posição de subserviência em face da ilegalidade (da qual ele já tinha conhecimento prévio, ou seja, tratou-se de um “traição à pátria”, como poderiam dizer os militares). 

Sinto vergonha, como diplomata brasileiro, por essas rupturas inaceitáveis por parte de dois governos do Brasil, em 2006 e em 2022, de nossas mais caras tradições diplomáticas, a do respeito ao Direito Internacional e ao princípio Pacta sunt servanda, a inviolabilidade dos tratados entre Estados soberanos, o que a Bolívia perpetrou lá atrás contra o Brasil e o que a Rússia de Putin perpetra agora contra a Ucrânia, contra a Carta da ONU e contra toda a comunidade internacional. 

Esse não é o Itamaraty ao qual servi durante toda a minha carreira. À época da primeira violação aqui mencionada, em 2006, eu também denunciei a atitude pusilânime (na verdade traidora) do governo Lula, e enfrentei um longo ostracismo na carreira por parte de todos os governos do PT, mas nunca me intimidei. Da mesma forma denuncio hoje a postura vergonhosa do desgoverno atual e, infelizmente, a da diplomacia brasileira.

Certos princípios e valores não são indiferentes à minha consciência de cidadão e diplomata, como sua violação não pode passar impunemente pela minha avaliação desses episódios.

Deixo registrada minha inconformidade com tal situação, assim como já o fiz no passado, aqui relembrado.

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 22/02/2022


“NOTA À IMPRENSA [MRE] Nº 28

Situação na Ucrânia

Publicado em 22/02/2022 10h31

Diante da situação criada em torno do status das autoproclamadas entidades estatais do Donetsk e do Luhansk, o Brasil reafirma a necessidade de buscar uma solução negociada, com base nos Acordos de Minsk, e que leve em consideração os legítimos interesses de segurança da Rússia e da Ucrânia e a necessidade de respeitar os princípios da Carta das Nações Unidas. Apela a todas as partes envolvidas para que evitem uma escalada de violência e que estabeleçam, no mais breve prazo, canais de diálogo capazes de encaminhar de forma pacífica a situação no terreno.

Declaração do Representante Permanente Embaixador Ronaldo Costa Filho no Debate do Conselho de Segurança da Nações Unidas sobre a Questão da Ucrânia- 21 de fevereiro de 2022:

“Senhor Presidente,

Quando esta Organização foi criada, em 1945, confiou ao Conselho de Segurança a responsabilidade primária pela manutenção da paz e segurança internacionais. A tensão dentro e ao redor da Ucrânia está-se agravando diariamente – na verdade, a cada hora –, tornando esta citação habitual da Carta de extraordinária importância e relevância.

Todos sabemos como a situação tornou-se crítica. O Brasil vem acompanhando os últimos acontecimentos com extrema preocupação. Nas atuais circunstâncias, nós, neste Conselho, em representação da comunidade internacional, devemos reiterar os apelos à imediata desescalada e nosso firme compromisso de apoiar os esforços políticos e diplomáticos para criar as condições para uma solução pacífica para esta crise.

O sistema de segurança coletiva das Nações Unidas baseia-se, em última análise, no pilar do direito internacional. Este, por sua vez, está assentado em princípios fundamentais consagrados na Carta: a igualdade soberana e a integridade territorial dos Estados-Membros; a restrição no uso ou na ameaça de uso da força; e a solução pacífica de controvérsias. No entanto, nosso pilar e nossos princípios não produzirão resultados a menos que as preocupações legítimas de todas as partes sejam levadas em consideração, e a menos que haja pleno respeito pela Carta e pelos compromissos existentes, como os Acordos de Minsk.

Nesse sentido, renovamos nosso apelo a todas as partes interessadas para que mantenham o diálogo com espírito de abertura, compreensão, flexibilidade e senso de urgência para encontrar caminhos para uma paz duradoura na Ucrânia e em toda a região. Um primeiro objetivo inescapável é obter um cessar-fogo imediato, com a retirada abrangente de tropas e equipamentos militares no terreno. Tal desengajamento militar será um passo importante para construir confiança entre as partes, fortalecer a diplomacia e buscar uma solução sustentável para a crise. Acreditamos firmemente que este Conselho deve cumprir sua responsabilidade central de ajudar as partes a se engajarem em um diálogo significativo e eficaz para alcançar uma solução que aborde efetivamente as preocupações de segurança na região. Não nos enganemos: no final das contas, estamos falando sobre a vida de homens, mulheres e crianças inocentes no terreno.

Muito obrigado.”


segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

Racismo, antissemitismo, liberdade de expressão - Celso Lafer (OESP)

Opinião

Racismo, antissemitismo, liberdade de expressão

O negacionismo do Holocausto judaico, do genocídio armênio, do racismo estrutural que permeia a sociedade brasileira não é opinião, é uma iniquidade.

Celso Lafer, O Estado de S.Paulo 

20 de fevereiro de 2022 | 03h00 


“Promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” é um dos objetivos do nosso país, contemplado na Constituição cidadã (artigo 3, IV).

É uma ideia a realizar que indica o caminho para dar plena efetividade ao Brasil como sociedade pluralista, diversificada e democrática, retificando múltiplas inadequações de nossa arquitetura imperfeita. 

A intolerância de práticas discriminatórias é um obstáculo a esta ideia a realizar. Ela veio à tona com estridência em eventos recentes, como o brutal assassinato de Moïse Kabagambe, o refugiado do Congo que encontrou abrigo em nosso país para morrer a pauladas ao lado do quiosque onde trabalhava na orla carioca; a prepotência da prisão sem provas de Yago Corrêa de Souza no Jacarezinho, depois de comprar pão perto de sua casa; e o empenho discriminatório da apologia do racismo nazista veiculado pelo podcaster Monark (Bruno Aiub). 

Os três eventos interligam-se. São constitutivos da abrangência de condutas impelidas pelas múltiplas práticas de racismo existentes na sociedade brasileira. 

Afrontam e contestam a dignidade da pessoa humana, princípio fundamental que inspira a Constituição. 

A preservação da dignidade humana permeia a tutela dos direitos humanos, cuja positivação é a expressão do aprimoramento da convivência coletiva num regime democrático. O ponto de partida dos direitos humanos é o princípio da igualdade, e o seu corolário lógico, a não discriminação, que se aprofundaram com a especificação da tutela dos seres humanos em situação de vulnerabilidade (crianças, idosos, mulheres, etc.). 

Nesta linha, a Constituição qualifica como crime a prática do racismo e a legislação infraconstitucional correspondente tipifica as modalidades com as quais se expressam. Estas modalidades são abrangentes e não circunscritas, como a interligação dos três eventos acima mencionados evidencia. 

A Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Recorrentes de Intolerância de 2013, recém-promulgada no Brasil, esclarece que, explícita ou implicitamente, “a discriminação racial pode basear-se em raça, cor, ascendência ou origem nacional ou étnica”. 

Foi por conta da abrangência que o Supremo Tribunal Federal (STF), em 2003, no caso Ellwanger, subsumiu o antissemitismo e a sua apologia discriminatória como uma das modalidades de crime da prática do racismo. 

A ilicitude da prática do racismo abarca a contenção da difusão e a propaganda de teorias e ideias que justificam ou incitam a discriminação, com destaque para as provenientes de explícitos discursos de ódio. Daí provêm parâmetros que esclarecem por que em nosso país e em muitos outros, com respaldo nas normas do Direito Internacional, a garantia constitucional da liberdade de expressão não se tem como absoluta. Não abriga na sua abrangência manifestações de ilicitude penal. É o caso da calúnia, da injúria e da difamação, e também do crime da prática do racismo e a sua incitação. 

Explica Stuart Mill, ao tratar do exercício da liberdade, que ela contempla a distinção entre condutas “self-regarding” e “other-regarding”. Em relação às primeiras, não cabem limitações, pois “o indivíduo não responde perante a sociedade pelas ações que não digam respeito aos interesses de ninguém a não ser ele”. Em relação às segundas, o indivíduo é responsável por qualquer ação prejudicial aos interesses alheios. Daí a possibilidade de limites, se a sociedade julgar que a sua defesa a requer. 

A punição legal do crime da prática do racismo e a sua apologia é o que prevê o direito brasileiro. O seu fundamento, como observa Mill, provém do fato de que “viver em sociedade torna indispensável que cada um seja obrigado a observar certa linha de conduta para com o resto”. 

Machado de Assis observou: “Haverá coisa pior que mesclar o ódio às opiniões?”. Inspirado por Machado, concluo pontuando os vínculos entre negacionismo, discurso de ódio e a prática de condutas racistas. O negacionismo nega fatos apurados motivados pelo ímpeto discriminatório e pelo ódio “que não respeita coisa nenhuma”, como dizia Monteiro Lobato pela voz do Visconde de Sabugosa. Contrapõe-se, assim, ao bem público consagrado no artigo 3, IV. Por isso, a denegação do Holocausto é prática de conduta racista. A Convenção Interamericana reitera que não cabe tolerar a defesa e a justificação do genocídio. Trata-se, assim, da contenção do dano moral para a sociedade que provém do desrespeito à tutela de consagrados direitos humanos. 

O negacionismo do Holocausto judaico, do genocídio armênio, do racismo estrutural que permeia a sociedade brasileira e que provém do passivo da escravidão tem um objetivo: impedir o reconhecimento do respeito que merecem ao direito à verdade e à memória das vítimas da prática do racismo que padecem uma pena sem culpa porque integram uma cor, uma religião, uma ascendência, uma origem nacional ou étnica. Por isso o negacionismo não é uma opinião. É uma iniquidade. 


PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, FOI MINISTRO DE RELAÇÕES EXTERIORES (1992 E 2001-2002)

 

 

Ruínas da ponte chinesa: 50 anos de Nixon na China (já deu até ópera) - Demetrio Magnoli (FSP)

 Opinião 

Demétrio Magnoli

Demétrio Magnoli

Sociólogo e doutor em geografia humana


Ruínas da ponte chinesa

Por Demétrio Magnoli

Folha de S. Paulo, 21/02/2022 • 00:00 


‘Esta foi a semana que mudou o mundo’, disse Richard Nixon em Xangai, em fevereiro de 1972, numa referência direta ao livro-reportagem “Dez dias que abalaram o mundo”, de John Reed, sobre a Revolução Russa de 1917. Nas declarações, logo após a assinatura do Comunicado conjunto, o presidente dos EUA anunciou a construção de uma ponte imaginária “através de 16 mil milhas e 22 anos de hostilidades”. A ponte ajudou a encerrar a Guerra Fria e abriu caminho à integração da China ao mundo, mas não ficou em pé para celebrar seu aniversário de 50 anos.

Sem o encontro histórico de Nixon com Mao Tsé-tung, não é fácil enxergar a transição chinesa do fracassado modelo estatista à “economia socialista de mercado” que começou em 1979, sob Deng Xiaoping. Sem o Comunicado de Xangai, base da aproximação geopolítica entre China e EUA, quem sabe quanto tempo ainda viveria a URSS?

A reviravolta de 1972, fruto da iminente derrota no Vietnã e do gênio intelectual de Henry Kissinger, realmente “mudou o mundo”. Ironicamente, as duas potências engajam-se, atualmente, numa espécie de Guerra Fria 2.0, e a China alardeia uma parceria estratégica, política e militar com a Rússia.

“Não importa a cor do gato, desde que ele cace os ratos”, explicou Deng, anunciando o advento da liberdade para as mercadorias e os capitais. A China pós-maoista, porém, nunca aceitou a extensão da liberdade a seus próprios cidadãos, como foi comprovado pelo esmagamento dos protestos na Praça da Paz Celestial, em 1989, e pelas reformas regressivas de Xi Jinping, um quarto de século depois.

A China da Olimpíada de 2008 não é a dos Jogos de Inverno de 2022. Na primeira, delineava-se a marcha rumo a um sistema autoritário moderado, capaz de tolerar espaços restritos de liberdades públicas e individuais. A segunda aboliu os direitos de Hong Kong, ameaça invadir a república democrática de Taiwan e arrasa a sociedade e a cultura dos uigures em Xinjiang. Contudo a implosão da ponte com os EUA não deve ser atribuída à brutal reafirmação do sistema totalitário.

O giro estratégico de Washington começou com Obama, acentuou-se com Trump e ossificou-se com Biden. Hoje, o paradigma de uma rivalidade estrutural com a China tornou-se consenso bipartidário. Mas a China de Xi Jinping não é pior, politicamente, que a miserável nação maoista de meio século atrás. A Guerra Fria 2.0 decorre, essencialmente, da percepção americana de uma ameaça fundamental à hegemonia alcançada no final da Guerra Fria original.

O elemento estratégico-militar da resposta de Washington à ascensão chinesa tem as cores da política de contenção aplicada contra a antiga URSS: a criação do Aukus, aliança trilateral com Reino Unido e Austrália, e a parceria privilegiada com a Índia. O elemento econômico deriva de uma concepção oposta: no lugar do estímulo ao internacionalismo (Plano Marshall, União Europeia), o recuo às trincheiras do nacionalismo.

De Trump a Biden, os EUA engajaram-se na formulação de políticas industriais protecionistas e numa guerra de atrito contra os avanços tecnológicos chineses (5G, inteligência artificial). É um caso típico da “armadilha de Tucídides”, descrita pelo historiador da Guerra do Peloponeso. A potência tradicional enxerga sua posição desafiada por uma potência emergente e tenta restringi-la. Como resultado, adota uma atitude defensiva, calcificando o sistema internacional em torno de seus interesses nacionais.

Na Guerra Fria original, a estratégia dos EUA baseava-se na noção de que a URSS era uma potência assentada em alicerces de barro. Na Guerra Fria 2.0, os EUA operam sob a ilusão da irresistível ascensão chinesa. O diagnóstico desfoca a paisagem, ocultando as fragilidades do competidor: uma crise demográfica de longo curso, as hemorragias internas no sistema financeiro, a desaceleração econômica, as tensões sociais que se acumulam, as fissuras crônicas no sistema de poder político.

Ninguém celebrará o aniversário da visita de Nixon. Da ponte que serviu aos interesses dos EUA, da China e do mundo, resta apenas um monte de ruínas.

Por Demétrio Magnoli

 

domingo, 20 de fevereiro de 2022

Francisco Rezek sobre as “folias” do Supremo (Setembro 2021)

 ENTREVISTA COM EX-MINISTRO REZEK

A meu ver esclarece em detalhes o que realmente aconteceu com a Lavajato.

O establishment político, associado ao poder econômico, reagiu com força e sede de vingança.

Francisco Resek foi também Presidente do TSE e Juiz na Corte Penal Internacional de Haia.


Entrevista:

O SUPREMO TAMBÉM TEM CULPA

Revista Crusoé, 17/09/2021

Na manhã do primeiro domingo de agosto, Francisco Rezek recebeu um chamado de Luís Roberto Barroso enquanto descansava em sua casa de campo no sul de Minas Gerais. Barroso queria que o ex- ministro do Supremo Tribunal Federal e ex-presidente do Tribunal Superior Eleitoral assinasse uma carta rebatendo as acusações de fraude nas urnas eletrônicas feitas por Jair Bolsonaro. A ideia era que todos aqueles que dirigiram o TSE, desde a Constituição de 1988 – Rezek presidiu o tribunal de 1989 a 1990 –, subscrevessem o documento para demonstrar o quão descabidos eram os questionamentos do presidente da República. O ex-ministro, que também foi juiz da Corte Penal Internacional de Haia, não hesitou em aderir.

Aos 77 anos, Rezek é um crítico ácido dos arroubos antidemocráticos de Bolsonaro. Mas, ao mesmo tempo, não deixa de enxergar nem de falar das decisões polêmicas e dos excessos cometidos pelo Supremo Tribunal Federal nos últimos tempos. Como exemplos, ele cita a abertura do inquérito do fim do mundo e a guinada da corte em relação à Operação Lava Jato, que ajudou a enterrar investigações importantes. “O Supremo não se tornou vulnerável por culpa exclusivamente alheia”, diz nesta entrevista a Crusoé.

Para o ex-ministro, nomeado duas vezes para o STF (primeiro em 1983, por João Figueiredo, e depois em 1992, por Fernando Collor, depois de ter deixado a corte para assumir o cargo de chanceler), a “patologia mais sórdida” que o Brasil enfrenta hoje é a reação do establishment político às ações anticorrupção levadas a cabo pela Lava Jato – um processo que tem contado com importantes contribuições da Suprema Corte. “A corrupção não quer apenas a impunidade, ela quer se vingar daqueles que tentaram puni-la”, afirma. Eis a entrevista.


O STF e o TSE têm respondido à altura aos ataques feitos pelo presidente Jair Bolsonaro?


As reações me pareceram imaculadas. O discurso do presidente do Supremo, Luiz Fux, na abertura daquela sessão imediatamente posterior aos desaforos proferidos do presidente da República, foi perfeito. Tão perfeito quanto e mais completo na sua didática foi o que disse o presidente do TSE, Luís Roberto Barroso, que também repudiou a fala do presidente da República. O problema é que é muito difícil convencer quem se obstina em não ser convencido pelo bom motivo de que realmente não acredita naquilo que está dizendo. Eu não creio que Jair Bolsonaro desconfie realmente da segurança do processo eleitoral. Esse é um discurso marcado pela má-fé, pela malícia. E esse parece ser um instituto de sobrevivência dele. Provavelmente, as premonições do presidente do que vai acontecer com ele nas urnas nas eleições de 2022 não são muito otimistas e, por conta disso, ele quer armar um palanque de desafio ao sistema eleitoral brasileiro, que é um dos mais seguros e aplaudidos do planeta. Ninguém que saiba das coisas ignora esse fato. Por isso que se desenha em mim essa interrogação: essas pessoas que bradavam pelo voto impresso e auditável nas ruas no Sete de Setembro e desconjuravam a urna eletrônica são realmente estúpidas ou elas compartilham a má-fé do presidente da República? É a única dúvida que eu tenho.


Muitas pessoas que foram aos atos em apoio ao presidente Bolsonaro falavam em defesa da “liberdade” e contra a “ditadura do Supremo”. De alguma forma, as decisões do Supremo alimentaram esse discurso e insuflaram essas manifestações bolsonaristas?


O Supremo não se tornou vulnerável por culpa exclusivamente alheia. Isso seguramente tem a ver com a falta de unanimidade na tomada de decisões. Quando me perguntaram há dois anos sobre a abertura daquele inquérito relativo às fake news, chamado por alguns de inquérito do fim do mundo, eu disse que foi uma ideia infeliz e que estava seguro de que seus autores, o presidente do Supremo à época (Dias Toffoli) e o ministro relator (Alexandre de Moraes), estavam convencidos disso. Mas é muito difícil voltar atrás em certos cenários e níveis de autoridade. E é difícil para o colegiado desautorizar seus dois integrantes, embora não tenha sido uma decisão unânime. O decano Marco Aurélio Mello se opôs firmemente à abertura desse inquérito nos termos que ele foi instaurado. E esse é o discurso de uma ala até moderada, sensata, dos partidários do presidente da República. O general Mourão se referiu a isso. Ele acha que esse inquérito, sem a iniciativa do Ministério Público, não poderia ter sido aberto. À luz do que se vê no regimento interno do Supremo, ele (o inquérito) é defensável, mas não é a melhor das ideias. Resumindo, não foi uma decisão feliz e ela tem sido a causa das maiores provocações, dos maiores desafios que se fazem hoje ao Supremo, dentro da racionalidade. Já a questão da urna eletrônica é totalmente irracional.


A seu ver, quais instrumentos podem ser utilizados para conter os arroubos autoritários do presidente Bolsonaro?


Acredito que nem a procuradora-geral da República da época (Raquel Dodge) nem o atual (Augusto Aras) jamais teriam se recusado a abrir o inquérito, jamais teriam sido insensíveis se o Supremo comunicasse o que estava acontecendo, se dissesse o sentimento da corte em relação à gravidade da propagação de fake news, para, assim, seguir do modo mais ortodoxo possível o figurino, e não ficasse como uma iniciativa de juízes que, como diz hoje o observador crítico, investigam, acusam e julgam. É uma confusão entre os três papéis, que naturalmente são da polícia, do Ministério Público e da judicatura. O mecanismo é um só, é curial, é aquele que a ordem jurídica prescreve, independentemente do que diz um dispositivo avulso do regimento interno do Supremo, de modo a autorizar isso como algo defensável. Aquilo que é defensável não é necessariamente o melhor. Há caminhos melhores do que aquele que é simplesmente defensável.


Depois dos ataques ao STF no Sete de Setembro, o presidente recuou com a divulgação de uma carta à nação. O sr. acredita em um cenário de pacificação?


Eu sou menos pessimista do que vários analistas que têm falado sobre a carta. Sempre me impressionou o fato de que o presidente da República, além de pessoas absolutamente desqualificadas que o cercam no cotidiano, tem também pessoas qualificadas para aconselhá-lo. Acredito que essas pessoas têm tentado aconselhá-lo desde que ele tomou posse, mas infelizmente ele não as ouve, prefere ouvir aquilo que há de mais desqualificado. A iniciativa dele de procurar o conselho do ex-presidente Michel Temer, que é um jurista respeitado, um político habilidoso, já me pareceu a mais louvável possível. A carta é bem concebida e quero acreditar que alguma coisa muda. Não é mudança radical. Não se transforma, da noite para o dia, Jair Bolsonaro em Franklin Roosevelt, que também teve um histórico de oposição à Suprema Corte americana, mas administrou isso com sabedoria exemplar. Até mesmo a réplica de Bolsonaro aos seus apoiadores mais fanáticos, que deram um grito de protesto à carta, me pareceu mais equilibrada do que as manifestações anteriores dele. Acredito que o instinto de sobrevivência fala alto. Imagino que, depois do Sete de Setembro, alguns dos conselheiros dele devem ter lhe falado com muita franqueza: “Não se articula um golpe de estado no Brasil de hoje. Se essa é a ideia, não vai dar certo. Se não é a ideia, trate de se compor porque, do contrário, o impeachment é inevitável”. Acho que a sombra do impeachment falou alto.


O sr. acredita que o recuo diminui a possibilidade de impeachment?


Acho que se ele provocar, pode ter que sair pelo impeachment. Mas se ele minimamente se compuser, vai até o final de seu mandato e acredito que tentará governar, que é o que não tem feito. Ele não foi eleito para animar multidões na Avenida Paulista ou na Praça dos Três Poderes. Tem faltado governo, administração da crise sanitária, da educação e da crise econômica que acompanha tudo isso.

Há um receio de que uma eventual derrota do presidente em 2022 provoque tumulto semelhante ou pior do que o que ocorreu com a invasão do Capitólio, nos Estados Unidos, após a derrota do ex-presidente Donald Trump.

Não vejo isso como uma possibilidade. Será uma eleição muito equilibrada. Se crescer a terceira via e, eventualmente, Jair Bolsonaro for derrotado já no primeiro turno, ou mesmo no segundo, creio que nada possa ser feito fora das linhas mestras da Constituição para a manutenção do poder. A ideia de golpe, que já hoje eu descarto por inteiro, seria mais esdrúxula e impraticável depois dos resultados das urnas.


No Congresso, fala-se em crime de responsabilidade e até em denunciar Jair Bolsonaro ao tribunal internacional do qual o sr. já foi juiz, por crime contra a Humanidade em razão dos erros na condução do combate à pandemia. Dos crimes imputados ao presidente, quais podem realmente levá-lo a algum tipo de punição?


É impressionante a fluidez do texto constitucional quando fala dos crimes de responsabilidade do presidente da República. Isso leva a

uma conclusão que parece meio cínica, mas é profundamente verdadeira e que é ilustrada na História do Brasil pelo impeachment do ex-presidente Fernando Collor e da ex-presidente Dilma Rousseff: crime de responsabilidade é aquilo que o Congresso Nacional decide ser crime de responsabilidade. Essa é a definição mais honesta, de modo que as pessoas falam que o impeachment se impõe porque ele já incorreu nesse ou naquele crime de responsabilidade. Isso é um discurso político de discutível consistência jurídica, porque a linguagem da Constituição que define os crimes de responsabilidade do presidente da República é de uma plasticidade tal que nos autoriza essa conclusão, tão estranha, mas tão verdadeira. Fora disso, toda busca de soluções técnicas à luz da linha literal do direito é uma busca inglória. Não é por aí que vamos encontrar a solução do problema.


E quais são as chances reais de ir adiante uma acusação contra Bolsonaro na Corte de Haia?


Nenhuma. A competência do Tribunal Penal Internacional é complementar. Pressupõe que a Justiça do país de origem do acusado não pode ou não quer exercer sua competência primária. Assim, a aceitação da denúncia, seja qual for sua origem, com a instauração do processo pelo tribunal internacional significaria, mais que qualquer outra coisa, uma declaração de falência da Justiça e, mais genericamente, das instituições do Brasil.


Como o sr. enxerga a crise institucional que o país passou a viver a partir dos sucessivos ataques do presidente Jair Bolsonaro contra integrantes do Supremo?


Já faz alguns anos que nós acompanhamos a fratura que atingiu o país, essa divisão radical entre os extremos, que são muito atuantes, muito loquazes. Tradicionalmente, a esquerda brasileira é particularmente ativa, enquanto a direita poucas vezes se fez ouvir de modo tão transparente, tão assumido, nas últimas décadas. As

nossas lembranças da direita remontam há mais de meio século, no surgimento do integralismo, à sombra das ditaduras fascistas da Europa na época. Hoje, a extrema-direita se assumiu como tal, ocupou seu espaço e revelou-se tão loquaz, tão agressiva e capaz de usar e abusar de métodos mais virulentos até do que aqueles que a extrema-esquerda vinha utilizando. Essa fratura do país é marcada pelo confronto entre as duas extremidades, cada uma com, no máximo, 20% de apoio da sociedade brasileira. O que se pergunta é: onde estão os 60% que parecem não estar dispostos a conviver com isso? 


Por que essa expressiva maioria do eleitorado brasileiro não foi às ruas no último dia 12 de setembro?


Por quê?

Porque os sentimentos nessa expressiva maioria são menos exacerbados do que nos extremos. Além disso, os representantes políticos desse grupo, possíveis presidenciáveis, estão em uma fase de concorrência, de forma respeitosa, como Ciro Gomes e o governador João Doria. É difícil vislumbrar por agora o desfecho da definição de um rosto representativo da terceira via. É curioso que os institutos de pesquisa não perguntam quem se situa em uma posição de rejeição simultânea a Lula e a Bolsonaro. Acredito que, se essa pergunta fosse feita, aqueles que rejeitam seriam maioria entre os entrevistados. O 12 de setembro era um dia sem bandeira e um dia sem bandeira dificilmente reúne multidões em qualquer praça ou avenida.

A bandeira levantada, segundo os organizadores, foi a da defesa da democracia.

Esse é o ponto. Todos se definem como defensores da democracia. Mesmo a esquerda radical hoje não pode ser identificada como adversária da democracia. Só a extrema-direita assumiu essa bandeira. A ojeriza pelos valores democráticos só foi revelada até agora pela extrema-direita. De qualquer maneira, a esquerda não

quis aderir. O lulopetismo tradicional, que para mim é mais fisiológico do que ideológico, e também a esquerda radical, não se sentiram à vontade para ir às ruas no último domingo, visto que, entre outros alvos da manifestação, estava o repúdio ao binômio Bolsonaro-Lula. E a ausência daqueles que realmente repudiam o binômio se explica pelo fato de que não é todo mundo que se anima a ir à rua em defesa dessa abstração que é a democracia.


Quem pode ser esse candidato?


É difícil imaginar o que seria essa terceira via. Eu penso, por exemplo, em Sergio Moro, uma das figuras mais notáveis do Brasil contemporâneo. O governo Bolsonaro, o Supremo Tribunal Federal e a própria força do destino impuseram o exílio político a que ele está hoje submetido. Se fosse ele a terceira via, como é da preferência de tantos brasileiros, a esquerda não aceitaria jamais, por causa do que foi a Lava Jato. A corrupção não quer apenas a impunidade, ela quer se vingar daqueles que tentaram puni-la. É esse o quadro, a patologia mais sórdida que enfrentamos neste momento. Dessa parte do eleitorado brasileiro que crucificou a Operação Lava Jato, que humilhou seus juízes e procuradores, nós nunca teríamos simpatia e muito menos apoio à candidatura de alguém como Sergio Moro. Dos outros representantes da terceira via, Ciro Gomes, por exemplo, embora não seja um súdito de Lula, é muito identificado com uma esquerda mais radical até do que o próprio lulopetismo. São inúmeras as forças de direita ou até mesmo de centro que não aceitariam Ciro Gomes como terceira via. Ouço, às vezes, pessoas dizendo que o governador de São Paulo, João Doria, outro possível candidato da terceira via, nunca pareceu ser um mau administrador e não tem outros defeitos que o inscrevam em nenhum capítulo do Código Penal, mas que não simpatizam com o estilo dele. O problema não está nas antinomias graves, mas na falta de sintonia. Tem quem não simpatize com o governador do Rio Grande do Sul

(Eduardo Leite) por sua opção pessoal (ele se declarou gay), que não deveria interferir numa República como a nossa. Além das rejeições fundadas em algo inabalável, como a rejeição da esquerda a Sergio Moro, ou da direita a Ciro Gomes, existem rejeições supérfluas, cosméticas.


O sr. acredita em uma unidade no centro, uma candidatura única da terceira via na eleição presidencial de 2022?


Acredito numa unidade suficiente para levar esse rosto da terceira via ao segundo turno. Se ela for para o segundo turno, seja contra Bolsonaro, seja contra Lula, ela vencerá, sem nenhuma dificuldade.


O sr. disse que os corruptos no Brasil não querem apenas a impunidade, mas a vingança daqueles que tentaram puni-los. Boa parte das decisões que beneficiaram denunciados e condenados por corrupção veio do Supremo. Qual o papel da corte nessa vingança?


Eu acho que aquela decisão da Segunda Turma que fez implodir a Operação Lava Jato foi uma das mais infelizes da história do tribunal.


O sr. se refere à decisão sobre a parcialidade do ex-juiz Sergio Moro nos processos do ex-presidente Lula?


Exato. O tribunal parece não ter avaliado as consequências daquilo que estava fazendo. Há quase dois anos, eu ponderei que, se em qualquer uma das grandes democracias do mundo, nós invadirmos criminosamente a correspondência privada entre juízes e procuradores, entre juízes e advogados, entre psicólogos e clientes, entre cônjuges, enfim, em qualquer status da sociedade, e levarmos isso ao público, não há limites para o tamanho do estrago que isso poderia causar. É exatamente por isso que em todas as grandes democracias o papel do hacker, do criminoso que invade a correspondência privada alheia, é reprovável e é punido por lei.

Parece que só aqui, entre nós, resolveu-se fazer do criminoso que é hacker um herói nacional, porque em determinado momento ele atendia às conveniências de certa parte da sociedade política brasileira, porque em determinado momento o produto do hacker servia para tentar destruir um processo penal que foi levado a termo com a mais absoluta correição e com a bênção dos tribunais regionais e tribunais superiores, entre eles o Supremo Tribunal Federal. Essa decisão da Segunda Turma acabou por desautorizar decisões de turmas e do plenário dentro do próprio contexto da Lava Jato.

Antes dessa, houve outras decisões contra a Lava Jato e os órgãos de investigação.

Sim. Esse não foi o único dos erros acontecidos dentro do Supremo nos últimos anos, mas foi o mais deplorável, porque ali Sergio Moro foi julgado e condenado sem defesa, por maioria apertadíssima. Aliás, todos os erros que o Supremo cometeu ao longo da sua história foram em decisões tomadas por 6 a 5 ou, dentro das turmas, por 3 a 2. Felizmente, o Supremo quando corrige mais tarde seus próprios erros o faz quase sempre por unanimidade. E depois dessa calamidade que foi a decisão da Segunda Turma, parece que a própria turma estava empenhada em que o plenário não pudesse rever aquilo. Como é que se pode tomar uma decisão tão grave como aquela, em que se condenou um magistrado à execração pública, não só à nulidade do que ele fez, sem direito de defesa, com a voz de apenas três pessoas na turma?


Quando e por que o Supremo deu essa guinada contra a Lava Jato?


Antes dessa decisão da Segunda Turma (refere-se à decisão que declarou Moro parcial), nada me pareceu caracterizar um ponto de inflexão. Aquele, sim, foi o ponto de inflexão. Antes não era nada pessoal. Passou a ser naquele momento. Foi com essa decisão dos habeas corpus de Lula da Silva que as águas se dividiram, que começou a destruição da Operação Lava Jato. Me pareceu de uma transparência solar naquela sessão um ressentimento profundo contra o juiz Moro, contra o procurador (Deltan) Dallagnol. Esses dois personagens foram execrados sem direito de defesa em sessão onde a Segunda Turma julgava um habeas corpus em favor de Lula. Ou seja, não estava em julgamento o juiz ou o procurador da República, mas quem foi julgado ali foram o juiz Sergio Moro e o procurador Dallagnol. Por isso que eu digo: antes não era nada pessoal, depois desse dia a coisa foi desenganadamente personalizada. E eles não esconderam isso.


Embora até hoje o Supremo não tenha decidido sobre a validade das mensagens hackeadas como prova, os ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski as utilizaram no julgamento da parcialidade de Moro como “reforço argumentativo”. Qual sua opinião sobre isso?


Independentemente daquilo que a lei abona e daquilo que ela proíbe na dinâmica das provas, acho que não é eticamente indefensável você admitir a prova hackeada em favor de um réu em processo penal. A prova é ilícita, mas demonstra que fulano de tal, acusado de determinado crime, é inocente. Não foi nada disso que aconteceu nesse caso. A prova hackeada não dizia nada sobre culpa ou inocência de Lula. A prova hackeada dizia que houve apenas uma comunicação entre juiz e procurador que, para a maioria dos membros da Segunda Turma, pareceu uma maneira incorreta de proceder. Ou seja, a prova hackeada não foi utilizada para defender nenhum réu, foi usada para fazer do juiz e do procurador réus, que ali se julgavam e condenavam sem defesa. Isso me parece impalatável dentro do Estado de Direito. Insisto: nada que o hacker jogou na mesa do Supremo demonstrava a inocência de nenhum réu, Lula ou qualquer outro, apenas demonstrava que houve comunicações entre juiz e procurador que a turma decidiu considerar obscenas. E por conta disso salvam a cara do réu e transformam em réus o juiz e o procurador, que são imediatamente condenados.


Essa concentração de decisões importantes nas turmas ou até mesmo em um único ministro, por meio de liminar, tem sido bastante criticada por juristas e até por quem integrava a corte até havia pouco, como o ex-ministro Marco Aurélio Mello. Esse fenômeno se agravou nos últimos anos?


O Supremo sempre foi um arquipélago, isso já dizíamos quando entrei no tribunal. As pessoas são diferentes na sua própria formação, na visão de mundo, na metodologia de trabalho. Alguns dizem em 600 páginas o que outros dizem em seis páginas. Mas o que hoje me impressiona é que seja um arquipélago de onze monocracias por causa das decisões monocráticas que são tomadas e que nós outrora chamávamos de decisões singulares, que os ministros tomavam em coisas de menor importância. Hoje, decisões da maior gravidade são tomadas monocraticamente. E não é fácil o colegiado desautorizar a decisão monocrática de um dos seus membros. Esse é um problema sério. O Supremo seria muito menos vulnerável às críticas que hoje sofre se ele atuasse mais como um colegiado minimamente uniforme. Na corte internacional de Haia, que eu integrei por nove anos, nós éramos 15 criaturas de origens tão diferentes, de cultura jurídica tão diferentes, e todos os casos mais dramáticos, como o do muro da Palestina, o da pena de morte nos Estados Unidos, os conflitos de fronteira, foram decididos por unanimidade ou quase unanimidade. Isso dava às decisões da corte de Haia uma fortaleza. Era difícil ao estado soberano que ficava vencido repudiar essa decisão.


Por que o sr. não acredita na possibilidade de cassação da chapa Bolsonaro-Mourão no TSE?


Isso também foi cogitado no caso da ex-presidente Dilma Rousseff. A Justiça Eleitoral empanaria sua própria segurança jurídica dando guarida a um processo como esse, porque ela estaria dizendo que, se essa eleição deve ser anulada com a destituição da chapa eleita, é porque ela própria, Justiça Eleitoral, não funcionou. Isso não existe. Esse caminho não será tomado agora de maneira nenhuma.


(Revista Crusoé, 17/09/2021)

Conheça um dos pais do liberalismo no Brasil: Eugênio Gudin - Ricardo Bergamini

 Conheça um dos pais do liberalismo no Brasil: Eugênio Gudin

 

 O engenheiro e economista

 

Eugênio Gudin foi um economista e engenheiro brasileiro, pioneiro na divulgação de ideias liberais no País. Depois de uma carreira bem sucedida no setor privado como engenheiro entre os anos de 1900 e 1920, Gudin começou a se interessar por economia e publicar artigos na área.

 

Carreira de técnico no setor público

 

Nas próximas décadas, Gudin passaria a integrar órgãos consultivos criados pelo governo para ajudar na gestão econômica brasileira.

 

Ele também foi pioneiro na construção do ensino superior de Economia no Brasil, participando da fundação da Faculdade de Ciências Econômicas e Administrativas em 1938, mais tarde incorporada à UFRJ.

 

Institucionalização do curso de economia no Brasil

 

Pelo seu protagonismo acadêmico em Economia, Gudin foi nomeado pelo então ministro da Educação em 1944 para institucionalizar o ensino na disciplina no Brasil.

 

No mesmo período, o economista representou o Brasil na conferência de Bretton Woods ao lado de Roberto Campos, um de seus alunos e admiradores.

 

Liberalismo x Desenvolvimentismo

 

No pós-guerra, o Brasil estava dividido entre dois projetos econômicos para nortear o desenvolvimento do País: de um lado o liberalismo, do outro o desenvolvimentismo. 

 

Eugênio Gudin seria o grande nome do liberalismo brasileiro no período

 

Os desenvolvimentistas

 

A proposta dos desenvolvimentistas era a industrialização forçada através do planejamento econômico. Caberia ao estado medidas como criar estatais em setores estratégicos, proteger a economia interna das importações, controlar o mercado de crédito e restringir o capital estrangeiro. Segundo eles, essas medidas levariam ao crescimento da indústria nacional e consequentemente ao desenvolvimento do Brasil.

 

 Os liberais

 

Já os liberais, como Gudin, defendiam outra abordagem. Para eles, a estratégia desenvolvimentista na prática levaria ao surgimento de uma indústria fechada e ineficiente, incapaz de andar com as próprias pernas.

 

Assim, ao invés de se desenvolver, o Brasil ficaria eternamente refém de grupos de interesse que usariam o Estado para extrair renda do restante da sociedade.

 

Propostas liberais

 

Como alternativa, Gudin sugeriu que o Brasil criasse um ambiente propício à concorrência, ao investimento privado e ao crescimento da produtividade:

 

– Fortalecimento dos direitos de propriedade

 

- Privatizações

 

– Abertura ao comércio

 

– Expansão da educação básica e técnica

 

- Igualdade de tratamento ao capital estrangeiro

 

- Responsabilidade fiscal

 

- Combate à inflação

 

- Entre muitos outros pontos.

 

- Economia e democracia

 

Vale destacar que, para Gudin, o excesso de intervenção não era apenas ruim para a economia, como também para a democracia:

 

“O capitalismo de Estado, além de incompatível com o regime democrático de governo, padece de decisiva inferioridade quanto à capacidade do melhor e mais eficiente aproveitamento dos fatores de produção.” – Eugênio Gudin

 

Infelizmente, o Brasil não deu ouvidos a Gudin e escolheu o projeto desenvolvimentista, que dominou a agenda econômica nacional até meados dos anos 80. Nesta altura, o Brasil tinha se tornado uma economia fechada e ineficiente, em hiperinflação e com péssimos indicadores educacionais, como alertado décadas atrás.

 

Conte com o NOVO para construirmos um País com mais liberdade e menos intervenção estatal.

 

Ricardo Bergamini

Ucrânia: haverá invasão russa, haverá guerra na Europa central? Uma entrevista-debate com Felipe Loureiro (Canal MyNews)

 Um debate sobre um tema do momento: 

1435. “Guerra Rússia vs. Ucrânia; alerta de Biden”, Participação em entrevista no Canal MyNews, com a jornalista Myrian Clark, na companhia do professor Felipe Loureiro, do IRI-USP (link: https://www.youtube.com/watch?v=mlupXkI31Uw; 20/02/2022; 12:00hs; 52mns). Sem original.


Felipe Loureiro e eu concordamos em muitas coisas em nosso debate-entrevista; a principal parece ser esta: Putin quer fazer da Ucrânia uma Belarus. Mas Ucrânia e Belarus vão fazer parte da UE em menos de dez anos. Não precisam aderir à OTAN, nem é desejável. Posso apostar…