Transcrevo abaixo meu trabalho publicado mais recente, um Prefácio a uma obra coletiva:
“Mercosul: a visão dos primeiros vinte
anos e as perspectivas futuras”
In: Erica Simone Almeida Resende e Maria
Izabel Mallman (org.).
Mercosul: 21 anos:
Maturidade ou Imaturidade?
(Curitiba: Editora Appris, 2013, 369 p.; p. 5-12;
ISBN: 978-85-8192-111-2).
Relação de Originais n. 2420.
Mercosul: a visão dos
primeiros vinte anos e as perspectivas futuras
Paulo Roberto de Almeida
Diplomata, professor de Economia Política no
Centro Universitário de Brasília (Uniceub)
O Mercosul atingiu, ao que
parece, a sua maioridade – convencionalmente fixada aos 21 anos – em meio ao
que constitui, possivelmente, a sua mais grave crise, passadas duas décadas de
sua criação e implementação progressiva, a partir de 1991. A crise, para todos
aqueles que seguem os assuntos correntes do bloco do Cone Sul, foi constituída
pela “suspensão” da participação do Paraguai de suas reuniões formais e pela
“admissão plena” da Venezuela no que parece constituir uma “união aduaneira em
implementação”, segundo a designação usualmente empregada para caracterizar o
grupo. Ambas medidas foram adotadas na reunião de cúpula ocorrida em Mendoza,
em junho de 2012, na ausência de qualquer delegação – técnica, ministerial ou
presidencial – do Paraguai, a despeito do fato de que os principais
instrumentos constitutivos do Mercosul, e até o Protocolo de Ushuaia sobre a
cláusula democrática do bloco, sempre explicitaram a necessidade de consenso,
ou da presença plena de todos os membros, para quaisquer decisões a serem adotadas
formalmente pelo grupo. Ora, não foi exatamente isso que ocorreu na reunião de
Mendoza (a três membros), ou nos encontros subsequentes entre os membros
“remanescentes”, em presença da Venezuela (que não tinha ratificado nenhum dos
instrumentos relevantes do bloco até essa data, a despeito de compromisso
firmado por meio de seu protocolo de acesso em 2006).
Na verdade, a crise do
Mercosul data de pelo menos uma década atrás, quando os mecanismos de
liberalização comercial intra-bloco e de coordenação das medidas de política
comercial, em relação a terceiras partes, foram sendo erodidos pela
inadimplência dos países membros em relação aos dispositivos principais da zona
de livre comércio – que deveria vigorar desde 1995 – e da união aduaneira, que
deveria ter realizado as derradeiras convergências das exceções nacionais
admitidas anteriormente nos cinco ou seis anos decorridos desde sua
institucionalização pelo Protocolo de Ouro Preto de 1994, ou seja, ao início
deste milênio. Essa crise apenas formalmente pode ser atribuída à crise cambial
e financeira vivida pelo Brasil em 1999 – e que redundou na mudança de seu
regime cambial de um sistema de bandas para um de flutuação – uma vez que a
Argentina, prisioneira de seu regime cambial de livre conversibilidade e de
rigidez na paridade com o dólar, estabelecido em 1991, já vinha enfrentando
sérios desequilíbrios nos intercâmbios comerciais dentro e fora do bloco e, de
forma geral, na sua conta de transações correntes. O Brasil, justamente, era
possivelmente um dos poucos países com os quais a Argentina conseguia ainda
realizar um superávit bilateral, em grande medida em função do comércio
administrado no petróleo, no trigo e no setor automotivo, e tinha revelado,
desde antes, notável tolerância em relação aos sucessivos descumprimentos
argentinos com respeito ao livre comércio intra-bloco.
O Mercosul tinha
alcançado, então (ou seja, em 1998), o máximo de comércio intra-bloco desde sua
criação em formato quadrilateral em 1991 – embora este formato derivasse
inteiramente do esquema bilateral Brasil-Argentina em curso desde meados da
década anterior, consolidado no Tratado de Integração de 1988, cujas cláusulas
de liberalização comercial e de constituição de um mercado comum foram
reformuladas e aceleradas na Ata de Buenos Aires, de 1990 –, em patamares de
intercâmbio não restabelecidos até bem adentrada a primeira década do milênio,
mas já numa situação de erosão institucional, e de não cumprimento de suas
regras comerciais básicas, da qual ele ainda parece não ter se recuperado. Ao adentrar
em sua segunda década, o Mercosul parecia ter perdido o estímulo inicial para
avançar a fases mais exigentes do desejado objetivo do mercado comum,
estabelecido em seus instrumentos constitutivos.
Em resumo, as rupturas
comerciais e cambiais demarcadas pela crise brasileira de 1999 e pela crise
geral da economia argentina de 2001 romperam um movimento ascensional de
integração seguido na década anterior e são, provavelmente, muito mais graves
do que a pretensa “ruptura democrática” ocorrida no Paraguai, em junho de 2012,
seguida da “ruptura institucional” que foi a admissão irregular da Venezuela no
seguimento da sanção unilateral imposta pelos três outros membros plenos ao
Estado guarani. Mais graves porque a “ruptura democrática” supostamente ocorrida
no Paraguai será, provavelmente, superada pela realização de novas eleições em
abril de 2013, ao passo que a inadimplência registrada em relação aos
dispositivos básicos do Mercosul, em sua feitura comercial e econômica, não
parece perto de ser superada pela adesão de todos os membros, e principalmente
pela Venezuela, às regras essenciais do bloco no futuro previsível. A dinâmica integracionista
perdida entre 1999 e 2001 não está perto de ter sido recuperada desde então; ao
contrário: como ilustrado na velha canção de roda, o que era vidro se quebrou.
O Mercosul certamente não foi feito de aço...
Estaria o Mercosul, nessas
condições, destinado ao fracasso e a seu eventual desaparecimento?
Provavelmente não, inclusive porque construções burocráticas desse porte,
sustentadas politicamente, raramente vão à falência ou desaparecem, podendo, no
máximo, subsistir em meio à indiferença geral e ao total descompromisso com seu
mandato original, ainda que continuando a drenar recursos e energias de seus
membros por um bom tempo antes de sua decadência efetiva. Mas este não é
certamente o caso do Mercosul, que deve subsistir como um importante foro de
coordenação política dos países membros, ainda que suas promessas
comercialistas originais tenham sido gradativamente abandonadas em favor de uma
configuração de natureza essencialmente política a partir das posses
respectivas do presidente Lula, no Brasil, e de Nestor Kirchner, na Argentina,
em 2003. Se algo deve ocorrer a partir da admissão formal da Venezuela, se ela
for de fato confirmada institucionalmente e na prática, será, na verdade, um
reforço ainda maior de seus componentes políticos, em detrimento de seus
fundamentos econômicos, ou especificamente comerciais.
Essa evolução certamente
não corresponde aos objetivos originais do Mercosul, embora ele deva continuar
representando um importante processo de integração no contexto regional que é o
seu – ou seja, o da América do Sul – e mantenha, do ponto de vista do
relacionamento externo, excelentes oportunidades de investimentos diretos
estrangeiros, dadas a dimensão de seu mercado, os recursos naturais existentes,
as fontes de energia disponíveis (agora reforçadas pela “adesão” da Venezuela)
e outros fatores atraentes do ponto de vista dos empresários locais e de
terceiros países. Esse desvio de objetivos e, possivelmente, essa mudança de
perfil institucional não devem obstar a que o Mercosul continue a ser um dos
mais importantes blocos econômicos (e políticos, sublinhe-se) do hemisfério
sul, o que provavelmente é mais devido à soma conjunta de suas potencialidades
reais (ou seja, dos países membros, em especial do Brasil) do que propriamente
em função da excelência de sua organização interna ou adequação às normas do
sistema multilaterais de comércio.
Em outros termos, a
despeito das frustrações ocorridas em sua trajetória econômica e comercial, e
dos fracassos relativos no acabamento de seus objetivos institucionais, o
Mercosul deve continuar a ser um espaço econômico de relativa magnitude
material, e de grande importância política, não apenas para seus membros
efetivos, mas também para a região, como um todo, e possivelmente também no
âmbito hemisférico e no contexto do sistema multilateral de comércio, a
despeito do enorme peso representado pelo Nafta nesta parte do planeta, e pelos
vínculos de seus membros, em especial os EUA, com a maior parte dos países
latino-americanos (os quais estão, inclusive, ligados ao hemisfério
setentrional por acordos de liberalização comercial bem mais abrangentes e
ambiciosos do que, até agora, os esquemas mantidos pelos países do Mercosul e
pela quase inexpressiva Comunidade Andina de Nações). Não obstante os
percalços, portanto, o Mercosul deverá continuar exercendo certa força
gravitacional em seu imediato entorno regional, bem como alguma atração do
ponto de vista do comércio, dos investimentos e de projetos conjuntos de
cooperação com ampla gama de parceiros externos, a começar pela União Europeia
e outros protagonistas mundiais, a começar pela China e os emergentes da Ásia e
das demais regiões.
As evidências acima, de
puro realismo político e de grande relevância econômica, justificam plenamente,
portanto, a oportunidade da publicação do presente livro como um balanço
oportuno e uma avaliação ponderada, em torno dos sucessos e das frustrações do
Mercosul, ao iniciar-se a terceira década de sua existência. Os capítulos
constantes desta obra – sobre o desenvolvimento do Mercosul, suas vicissitudes
comerciais, sua dimensão securitária (ou seja, de defesa, a representação
parlamentar, o funcionamento de seu sistema de solução de controvérsias, as questões
de direitos humanos e institucional, sua importância para o Brasil e para a
região, além de diversos outros temas paralelos –contribuem para uma visão
ampla, embora diversificada metodologicamente, do itinerário do bloco e de seu
potencial integrador, em sua dimensão própria e para o continente como um todo.
Como esperado, ou
inevitável, em toda e qualquer compilação coletiva de estudos individuais, a
metodologia e as abordagens adotadas podem divergir entre si, e mesmo as
perspectivas analíticas não exibem, necessariamente, unidade conceitual ou
uniformidade de propósitos. Estas características não impedem, contudo, o fato
de ser esta obra um compêndio útil e oportuno para uma visão abrangente quanto
aos fundamentos históricos, o itinerário prático e o funcionamento operacional
do bloco mais importante da América do Sul, quiçá do hemisfério sul. Os
organizadores lograram realizar um equilíbrio satisfatório entre os temas mais
gerais, e conceituais, da primeira parte, e aqueles mais voltados para os
aspectos práticos, na segunda parte, a qual transcende, inclusive, o contexto
puramente nacional para tecer considerações sobre o contexto regional e as
implicações do Mercosul para o desempenho da integração latino-americana, de
modo mais amplo. Apropriadamente, a obra se conclui com as interrogações
suscetíveis de serem feitas em torno do futuro do Mercosul nos próximos vinte
anos, uma perspectiva agora tornada mais aleatória, em função das desventuras
do Paraguai e das incertezas legítimas associadas ao ingresso da Venezuela
bolivariana no bloco.
No conjunto, os textos
aqui compilados oferecem um vasto panorama sobre o Mercosul, em todos os seus
estados e em várias de suas dimensões. Particularmente importantes são os
capítulos que tratam dos fatos objetivos relativos ao Mercosul, seja no plano
comercial, seja no âmbito de seu impacto sobre a diplomacia brasileira ou o
funcionamento do sistema de solução de controvérsias. Embora os capítulos
conceituais, ou mais especulativos, sejam igualmente relevantes, qualquer
empreendimento político coletivo – como é o processo de integração do Mercosul
– sempre oferece a possibilidade de interpretações diversas quanto aos seus
elementos inerentemente deixados ao arbítrio das decisões políticas (e de sua
consideração por acadêmicos trabalhando nesses temas).
Pode-se aderir, por
exemplo, à interpretação de que o Mercosul em sua primeira fase era
excessivamente comercialista – ou neoliberal, como pretendem alguns – e que sua
“correção” de natureza mais política, ou “social” na segunda, ou terceira, fase
(ou seja, pós crise dos anos 1999-2002) era não apenas desejável como também
necessária. Mas deve-se reconhecer que o que realmente faz diferença, em
qualquer processo, são os resultados práticos, ou efetivos, como aumento ou
diminuição de comércio, melhoria das condições de produtividade interna e de
competitividade externa, criação de mais riqueza e prosperidade para as pessoas
comuns (ou seja, mais emprego, maiores salários, e aumento da disponibilidade
de bens e serviços de qualidade e a preços convidativos). No caso em espécie,
não há como não reconhecer uma transformação do Mercosul e sua passagem de uma
vertente econômica e comercial da primeira década – que é, finalmente, a
essência do que estava escrito nos seus tratados constitutivos – para suas
inclinações mais políticas e sociais da segunda década, sem que se disponha,
ainda, de um balanço objetivo quanto aos méritos respectivos de uma e outra
abordagem para fins dos objetivos originais do esquema de integração.
O presente livro ajuda a
ver mais claro o que foi de fato relevante no Mercosul, nas suas diversas
dimensões, nestas duas primeiras décadas e contribui para a construção de uma
avaliação ponderada do que foi possível alcançar, ou não, no período decorrido
desde sua fundação. Na verdade, a grande pergunta a ser feita, após concluir a
leitura deste livro, sobretudo de seus capítulos descritivos e de avaliação, é
a de saber se, ao cabo destas primeiras duas décadas, a região meridional e o
continente sul-americano encontram-se, atualmente, mais ou menos integrados, em
melhores condições sociais e de bem-estar, comparativamente ao quadro anterior,
e se o processo de integração contribui, positiva ou negativamente para o atual
estado de coisas. Provavelmente vai se descobrir que os laços comerciais, os
investimentos recíprocos e os fluxos de serviços e de pessoas se intensificaram
e se diversificaram, ao longo do período, mas é também visível que os processos
de integração, ou seus projetos institucionais, não caminharam, exatamente,
para uma convergência de propósitos ou homogeneidade de procedimentos. Parece
claro, por exemplo, que entre a metodologia econômica do Mercosul e a abordagem
fundamentalmente política da Alba existem enormes diferenças de visão e de
intenções.
O futuro de médio prazo –
ou seja, ultrapassada a situação corrente de estagnação, ou longa recessão, nos
países desenvolvidos – dirá se o Mercosul continuará como uma grande promessa
de integração comercial, caminhando no sentido de seu aprofundamento econômico
e reforço institucional, ou se ele vai tornar-se irrelevante, como outros
experimentos latino-americanos do passado, que figuram apenas, nos registros
históricos, como os precedentes dos processos atuais. Uma visão abrangente do
passado recente pode ajudar a ver mais claro nas possibilidades futuras: este
livro é um bom começo para esse empreendimento. Tenham bom proveito em sua
leitura, como eu tive ao preparar este prefácio.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, agosto de 2012