domingo, 22 de setembro de 2013

Liberalismo: desfazendo equivocos, iluminando a doutrina - Rui Albuquerque

Devo a meu amigo e colega blogueiro, Orlando Tambosi, companheiro quilombola (como eu) da resistência intelectual contra a irracionalidade, o sectarismo e a gana totalitária dos "cumpanheros", o ter me chamado a atençao para este excelente artigo do Ordem Livre, onde fui buscá-lo por completo, mas fazendo-o preceder de sua introdução sintética, objetiva e claríssima.
Paulo Roberto de Almeida 
Na América Latina em geral - e especialmente no Brasil -, pouca gente conhece a filosofia do liberalismo. Do ensino básico à universidade, quase ninguém ouve falar em Locke (imagem), Hume, Smith, Montesquieu ou Tocqueville. Herdeiros de uma cultura toscamente ideológica e autoritária,  demonizamos as ideias liberais, que nem sequer conhecemos - e sem as quais, aliás, o mundo se reduziria hoje ao nazi-fascismo e ao comunismo. Uma das deturpações mais tolas é a de que o liberalismo preconiza o fim do Estado ou do governo. Artigo de Rui Albuquerque:

Regressar ao liberalismo clássico

Rui Albuquerque
Ordem Livre, 21/02/2013
I.
O liberalismo clássico é uma filosofia sobre a limitação da soberania e do governo e não sobre a extinção do governo. Não conheço nenhum autor dos séculos XVII e XVIII que possa ser considerado próximo do liberalismo e tenha advogado a inexistência do governo, ou tampouco desconsiderado a necessidade de instituições representativas dotadas de poder soberano. A preocupação de filósofos como Locke, Hume, Adam Smith, Montesquieu, Burke, Ferguson, Tocqueville, entre outros, não era a de demonstrar uma eventual inutilidade do estado e das instituições governativas, mas a de lhes encontrar uma legitimidade fundada nos valores da liberdade individual, da segurança e da propriedade privada, e, uma vez determinadas as razões que levaram à necessidade da sua instituição, criar as condições para que essas causas originárias não fossem ultrapassadas pela natural vontade expansionista que é característica de todo o poder político. No seu The Constitution of Liberty, Hayek confirma esta ideia, escrevendo, sobre os grandes autores do liberalismo clássico, que “eles nunca defenderam uma posição antiestatal, ou anárquica, que é consequência lógica da doutrina racionalista do laissez-faire; eles admitiam tanto funções adequadas para o Estado, como a instituição de limites à ação estatal”. E mais recentemente, seguindo esta mesma orientação, David Boaz, um liberal clássico do nosso tempo, tomava o seguinte apontamento no seu livro Libertarianism: A Primer [O manifesto libertário] (1997):
Não há dúvida de que, como Locke e Hume afirmavam, criamos o governo para melhorar o nosso bem-estar em tudo quanto seja possível. Mas entende-se que esta melhoria depende da possibilidade que tenhamos de viver numa sociedade civil, na qual a nossa vida, a liberdade e propriedade estejam protegidas, e onde nos sintamos livres para perseguir a nossa felicidade.
II.
Nesta medida das coisas, a leitura de Locke, eventualmente o fundador do liberalismo moderno, é elucidativa quanto ao que pensam os liberais da necessidade do abandono do estado de natureza, da instituição da sociedade política e do governo, e ainda sobre a consequente necessidade da criação de mecanismos que refreiem a tentação natural da soberania de ultrapassar as cláusulas do contrato social originário. Locke inspira-se nos escolásticos tardios de Salamanca (Molina, Mariana, Soto, Suarez) no que se refere às funções e à legitimidade do estado, bem como quanto à necessidade de impor limites à sua actuação, e, sobretudo, à ideia da existência de um direito natural inerente aos indivíduos que justifica as suas prerrogativas perante a autoridade dos poderes públicos e que deverá fixar o alcance daqueles limites.
Sobre o estado de natureza e o contrato social, Locke, ao invés de outros contratualistas, não dramatiza as condições que terão levado os homens a abandonar o primeiro e a firmar o segundo, rejeitando tacitamente a “guerra de todos contra todos” de Hobbes, embora reconheça que existem vantagens nas instituições políticas representativas, tendo em vista que elas podem assegurar mais eficazmente a propriedade, a segurança e a administração da justiça do que sucedia no estado anterior à sociedade política. O abandono do estado de natureza não se justifica, assim, segundo Locke, pela suposta incapacidade das pessoas de viverem pacificamente em sociedade, mas porque existem ganhos concretos para elas na criação de instituições que as representem e substituam nalgumas dimensões da vida social. Isto não excluiu, bem pelo contrário, a necessidade de conter o poder do estado para além da simples objetivação finalista da sua existência (que seria, mais tarde, assegurada pela Constituição escrita do estado de direito). Não basta, por conseguinte, declarar que ao estado cabe a garantia e a criação de condições para a viabilização dos direitos fundamentais dos indivíduos para que ele se restrinja a esse âmbito de atuação. Para isso, Locke concebeu a separação de poderes (ainda que, segundo Hayek, tenha sido John Lilburne — o famoso “Freeborn John” —, em 1645, que tenha tratado pela primeira vez o tema) e, dentro desse arquétipo, a autonomia integral da justiça perante a política. Anos depois e noutro continente, as ideias de Locke e de outros liberais clássicos (principalmente de Montesquieu) iriam inspirar a fundação e a organização política dos EUA, onde os pais fundadores se preocuparam com as questões da natureza do estado, dos fins do governo e da limitação da soberania, preocupações essas que resultaram evidentes dos Federalist Papers e que ficaram consagradas no resultado da Convenção de Filadélfia, que foi a Constituição de 1787.
III.
Esta é, portanto, a tradição liberal clássica. Quem nela procurar vestígios da negação da necessidade do contrato social e da sociedade politicamente organizada, procurará sem resultados. O liberalismo clássico reconhece a validade das instituições políticas e a sua necessidade, e atribui-lhes mesmo uma natureza e um fundo moral, na medida em que elas foram instituídas por homens para servirem os homens e garantirem os seus direitos fundamentais, num espírito de livre cooperação e não de coação: “Deus desejou que houvesse ordem, sociedade e governo entre os homens”, sintetizava, a este propósito, Locke no seu Opúsculo Latino (ou Segundo Tratado sobre o Governo, de 1662). Quanto às garantias desses direitos fundamentais, operam positivamente, fazendo com que as instituições públicas fiscalizem e punam aqueles que os infrinjem, e negativamente, ao obrigar o próprio estado a abster-se de quaisquer atos que os ponham em causa.
É bom que se tenha então presente que o que vai daqui, por exemplo, à crítica que Murray Rothbard moveu às ideias de “governo limitado” e da “Constituição” (vd. The Ethics of Liberty, principalmente o capítulo 23, parte III, The Inner Contradictions of the State), que ele considera, inspirado por Spooner e Nock, “uma irrealista e inconsistente ‘Utopia’”, é uma distância imensa, que não resolve coisa nenhuma, já que a alternativa à realidade dos fatos dificilmente passará por um mundo e uma ordem social que nunca existiram. Por outro lado, foi a esta tradição liberal clássica que se socorreram os melhores liberais do século passado, entre eles e com particular destaque Mises e Hayek, para renovar a filosofia liberal, tendo em particular atenção a necessidade crescente de conter o poder do estado e do governo, num século de expansionismo estatal preocupante.
Apesar de ser evidente a necessidade de repensar os parâmetros da teoria clássica do liberalismo (“A experiência dos últimos cem anos ensinou-nos muitas coisas que Madison ou Mill, Tocqueville ou Humboldt não puderam perceber”, escreveu Hayek no prefácio à edição americana do The Constitution of Liberty), a função essencial do liberalismo permanece igual à do passado: “A tarefa de uma política de liberdade deve consistir, portanto, em minimizar a coerção ou os seus efeitos negativos, ainda que não possa eliminá-la completamente”, concluiu Hayek na obra citada. Então, a tarefa prioritária do liberalismo consistirá, essencialmente, em contribuir para a racionalização do poder, a determinação das suas finalidades, e a sua limitação dentro de regras que evitem os seus abusos e que permitam aos indivíduos viverem as suas vidas com o mínimo possível de coação estatal.
IV.
Acresce, por outro lado, que o liberalismo clássico se preocupa também por entender as origens das instituições políticas. A sua existência não lhe poderá ser irrelevante ou relegada para um segundo plano, fazendo delas tábua rasa, como se não tivessem origem em necessidades individuais e sociais ponderáveis. O governo, os tribunais, os parlamentos ou câmaras representativas, em suma, a dinâmica do poder e a sua organização, chamemos-lhe o “estado” ou o “princípio governativo”, existem desde sempre, em qualquer local onde encontremos sociedades humanas, e ignorar esta realidade julgando que a podemos modificar ao sabor das nossas convicções não é avisado, nem prudente. Sobretudo, não será realista, e só poderá conduzir a pesadas frustrações, por parte dos seus defensores, e à rejeição da opinião pública, por óbvia inutilidade.
V.
Há, todavia, que ter em conta que limitar o crescimento do estado e do governo é uma tarefa difícil, tendo em vista a desigualdade de posições relativas entre a soberania e a sociedade civil, e que esse exercício se tem visto também prejudicado pela eclosão de novas tecnologias invasivas da individualidade, por preocupações securitárias crescentes (a exploração, por parte dos governos, dos sentimentos de medo e de carência de proteção das suas populações serve, quase sempre, para reduzir as liberdades fundamentais dos indivíduos), e por uma teia de dependências perante o estado que têm sido laboriosamente urdidas, ao longo dos anos, pelo chamado estado social. Em boa medida, há que reconhecer que o constitucionalismo liberal — que tão bons resultados conseguiu na transição das monarquias absolutistas para o estado de direito —, se encontra hoje em muitos aspectos revogado por um constitucionalismo social que permite que o estado e o governo possam ultrapassar os limites originariamente impostos no contrato social.
VI.
A subversão do constitucionalismo liberal começou muito cedo, praticamente ao mesmo tempo em que o movimento constitucional dava os seus primeiros passos. Na origem da sua aplicação moderna, isto é, a partir do começo do século XVIII, o termo “Constituição” designava a ideia de “poder limitado”. O problema era, à época, o de dar uma forma ao aparelho de estado e do governo que se não esgotasse na vontade soberana do princípe, para onde o absolutismo europeu o havia encaminhado, e que o submetesse ao cumprimento de regras gerais e abstractas emanadas por assembleias representativas da comunidade.
Verdadeiramente, essas preocupações constitucionais não se limitaram à necessidade de refrear poderes centralizados, mas também de encontrar uma fundamentação transpessoal para o poder e para o seu exercício, que residisse numa ordem natural eminentemente humanista e individualista. Daí que as duas primeiras preocupações da conformação da soberania pelo direito e pela Constituição residissem na proclamação de um elenco de direitos fundamentais do homem (dos indivíduos) e do cidadão (dos indivíduos considerados na sua relação com a civitas), por um lado, e na consagração do aparelho de poder e das regras do seu funcionamento, por outro. Isto é: definir quais serão os direitos individuais que a acção do estado deverá garantir e criar uma organização do poder soberano que o divida funcional e organicamente, determinando com clareza as suas competências e funções. Este último aspecto não é de somenos importância, porque convém ter sempre presente que, como assinala David Boaz na obra acima citada, “O valor de uma Constituição escrita radica em que se estabelece com precisão quais são os poderes do governo e, ao menos por omissão, se indicam os que não são”. Por outras palavras, uma Constituição que não determine os poderes que, por ela, a comunidade delega no estado, não será uma verdadeira Constituição, mas um mero documento formal para legitimar um poder sem regras.
VII.
O que sucedeu posteriormente à eclosão do primeiro constitucionalismo, período que tem o seu término no fim do século XIX e, sobretudo, nas preocupações sociais bem patentes na Constituição que inaugura o constitucionalismo social, a Constituição de Weimar, de 1919, foi a progressiva corrupção do sentido da ideia original de Constituição, que passou de um documento eminentemente orgânico, equilibrador e refreador dos vários poderes soberanos, para um documento programático, com conteúdo ideológico e que pode variar (e frequentemente varia) ao sabor das modas de ocasião. Esta foi, portanto, a fase que se seguiu à do Constitucionalismo Liberal, a qual podemos designar de Constitucionalismo Social, e que se caracteriza pela apropriação da Constituição orgânica e garantística pela ideologia do intervencionismo social estatista.
Este novo modelo de Constituição representou verdadeiramente a corrupção da ideia de Constituição, porquanto esta só será um documento que contratualize a transição do estado de natureza para a sociedade política se for ideologicamente neutra, se não tomar posições políticas, de modo a poder criar um denominador comum entre o maior número possível de cidadãos, instituindo regras gerais e abstractas que cumpram uma finalidade arbitral entre as várias apetências individuais e tensões sociais, em vez de representar uma visão da sociedade que será sempre e em todos os casos parcial. Quando a Constituição abandona a sua neutralidade teleológica para impor um modelo de sociedade, está, então, a caracterizar-se ideologicamente, pondo de lado a sua função de pactum societatis, para passar a assumir uma natureza de mero programa político-partidário.
VIII.
A Constituição evoluiu, deste modo, na generalidade das democracias ocidentais, de um documento orgânico para um estatuto programático, o que lhe retirou a neutralidade que fazia dela a norma jurídica fundamental sobreposta e conformadora dos demais poderes, para passar a ser um mero instrumento inspirador dos circunstancialismos momentâneos, ditados pelo sufrágio universal, dos poderes legislativo e executivo. O processo pelo qual se operou esta transformação foi, uma vez mais, o da exploração das fragilidades humanas, fazendo crer aos cidadãos que o estado, dado o seu múnus e as suas prerrogativas de soberania, podia garantir e satisfazer, sem dificuldade, todas as necessidades da existência individual.
A consagração constitucional dos chamados direitos sociais à educação, saúde, segurança social, emprego, ambiente, etc., como direitos fundamentais de segunda e terceira geração, perverteu a natureza da Constituição e permitiu que o estado e o governo se ingerissem na vida social privada de forma abusiva e praticamente ilimitada. A Constituição serve hoje para “garantir” o pleno emprego, as leis laborais protecionistas, a educação universal e gratuita, a segurança social, e para impor limites à propriedade, estatuir fins políticos e ideológicos para o governo (veja-se, por exemplo, o que sucedeu com inúmeros textos constitucionais europeus – entre eles, o português de 1976 – africanos e sul-americanos promulgados nas décadas de 70 e 80 do século passado). Perdeu o seu carácter neutral, sem o qual perde efetivamente a sua identidade e boa parte da sua utilidade. Neste permeio, a Constituição acabou por garantir menos eficazmente, os verdadeiros direitos fundamentais dos indivíduos, relativizando-os face à “importância” e “magnitude” dos direitos sociais, sendo muitas vezes até argumento para os pôr em causa, sobretudo quando, em nome destes últimos e do “interesse público” supostamente neles plasmados, permite a grosseira violação de muitos dos primeiros.
IX.
Será, todavia, um erro afirmar-se que o que falhou foi o constitucionalismo liberal, que cumpriu exemplarmente a sua tarefa de garantir os verdadeiros direitos fundamentais dos cidadãos, que são os de primeira geração (vida, propriedade, liberdade, justiça universal e fundada na lei, etc.). O que não foi conseguido foi a preservação desse espírito do primeiro constitucionalismo, permitindo-se que ele tivesse evoluído para patamares que não deviam ser os seus. Mas isso foi consequência do êxito do constitucionalismo e do liberalismo na sua missão de refrear o poder público e de criação das condições para a afirmação da liberdade individual e para a prosperidade pessoal e social, que levou a que se admitisse que, uma vez resolvidos esses problemas essenciais, seria possível tratar de outros a partir de Constituições programáticas e de governos com mais capacidade de intervenção. Felizes com o sucesso alcançado por esse primeiro momento, que ocasionou prosperidade e bem estar nos países onde vigorou, pensou-se poder ir mais além e garantir por via da política e do governo o que compete aos indivíduos tentarem alcançar pelo uso das suas capacidades e pelo exercício da sua responsabilidade individual. Por conseguinte, do que agora importa cuidar cuidar é de voltar a pôr o estado e o governo dentro dos limites originários do contrato social liberal, o mesmo é dizer do Estado de Direito característico de uma sociedade livre.
X.
Não será, contudo, fácil consegui-lo. Na verdade, muitos são já os anos de vigência do modelo do constitucionalismo social, como muitos foram os interesses e dependências entretanto gerados pelo crescimento do estado social, assim como foi imensa a expansão do estado e das prerrogativas legais da atuação do governo verificada ao longo das últimas décadas. Todavia, ensina a História que o melhor modo de levar um poder a ceder e a se retrair é pela constatação prática de que ele se encontra esgotado. Todas as grandes transformações políticas ocorridas ao longo da História ocorreram menos pelo sucesso e pela força das novas soluções do que pelo fracasso e esgotamento das que se veem substituídas. Veja-se, a este propósito, os processos que levaram à derrocada de regime tirânicos, como o soviético, ou à substituição de regimes ditatoriais e autocráticos na Europa e na América do Sul, no fim do século passado.
XI.
Assim, e sem pretender praticar qualquer gênero de futurologia, há que ter em conta que os resultados atuais do modelo social seguido à sombra desse tipo de constitucionalismo e de modelo social são os piores, estando a ter consequências dramáticas um pouco por todo o mundo, principalmente nos países da União Europeia e nos EUA, onde se enveredou por uma deriva intervencionista e ultraestatista nos últimos anos. Para um liberal que não acredita na viabilidade e na sustentabilidade de um modelo social estatista, que reduz a liberdade individual e econômica e que empobrece drasticamente os países onde se aplica, a crise a que estamos a assistir, e que tem sido engenhosamente vendida como a crise do “mercado”, é verdadeiramente a crise do estado e do constitucionalismo social, e ela mesma se encarregará de obrigar os estados e os governos a abandonarem muitas das funções ditas sociais de que se encarregaram nas últimas décadas. Ao longo destes anos mais próximos, o intervencionismo secou a economia das nações onde se instalou para garantir a viabilidade das contas públicas, isto é, da despesa do estado. Hoje, as contas públicas continuam completamente deficitárias, agravando o seu déficit a cada segundo que passa, e a economia vegeta no meio de impostos absurdos para encher os cofres públicos e de regras burocrátricas que a asfixiam e levaram ao descalabro. Isso mesmo é o que está a suceder em países como a Grécia, Espanha, Portugal, Irlanda, que são os casos mais flagrantes, ou na Alemanha, em França e na Itália, onde os estados estão obrigados a reduzir drasticamente as suas despesas, retirando-se, assim, de áreas sociais onde investiram fortemente nos últimos anos, confessando a sua incompetência para as gerir. A consequência inevitável desta “desapropriação” funcional será a privatização desses domínios e o regresso deles à sociedade civil.
O que tem sucedido recentemente nos EUA, com a derrota eleitoral da Administração Obama nas últimas eleições para o Congresso e o abrandamento da execução de alguns programas sociais que já estavam anunciados (vg. a reforma do sistema de saúde, incrementando a sua estatização), também leva a crer que o novo paradigma será de regresso ao princípio do primado do privado sobre o público. Isto só se fará, no entanto, se o estado reconsiderar as suas funções e limites de atuação, e se o fizer pela via constitucional, entre outros aspectos, considerando os direitos ditos “fundamentais” de segunda e terceira geração (já para não referir os de quarta…) como direitos a serem socialmente promovidos, em vez de “realizados” por via política e estatal. No fim de contas, o estado tem que determinar, com precisão, onde e ao que se destinará o dinheiro que tem para gastar. E, como não dispõe de dinheiro para quase coisa nenhuma, terá de abandonar a maioria das rúbricas do seu orçamento. Apesar de ser um caminho ínvio, a elevada probabilidade da falência do estado social poderá nos levar no sentido do regresso aos velhos princípios do liberalismo e do constitucionalismo clássico.
* Publicado originalmente por OrdemLivre.org em 24/11/2010

SOBRE O AUTOR

Rui Albuquerque é doutor em Ciência Política e CEO do Grupo Lusófona - Brasil.

sábado, 21 de setembro de 2013

Governo promove e estimula a inflacao - Rolf Kuntz

O principal responsável pela inflação no Brasil não é o tomate, nem o petróleo, nem o câmbio. Tem nome e endereço: chama-se governo brasileiro e mora (pelo menos enquanto durar este) no Palácio do Planalto, e sua obra nefasta em FAVOR da inflação tem a ajuda de keynesianos de botequim, que estão espalhados pela Esplanada dos ministérios, com o apoio entusiasta de milhares de outros keynesianos de araque espalhados pelas faculdades de economia do Brasil afora.
O governo indexou a economia, prometendo aumentos do salário além e acima das taxas de inflação e dos ganhos de produtividade (que são poucos, é verdade, mas estimados pelo governo generosamente e de forma geral para todos os setores da economia, independentemente do seu comportamento efetivo).
O governo concede reajustes tarifários para suas empresas monopolistas e outros carteis privados, em lugar de obrigar as empresas a reduzir preços para os consumidores, com base em ganhos de produtividade, que toda empresa sempre deve buscar (e o governo também).
O governo continua estimulando o consumo, pela via do crédito e outros subsídios pornográficos, em lugar de estimular o investimento e a produção.
O governo taxa demasiadamente, obrigando as empresas a remarcar preços para poder conservar margens de lucro.
O governo protege a economia exageradamente, permitindo que os industriais domésticos cobrem sobrepreços dos consumidores obrigados.
Enfim, o governo gasta demais consigo mesmo, com seus mandarins e marajás, com suas dezenas de milhares de aspones que contribuem para o partido totalitário, com seu intervencionismo nefasto na economia, com suas bolsas-isso e bolsas-aquilo.
O governo é o principal promotor da inflação no Brasil. E o principal violador da legalidade constitucional.
O governo é o principal obstáculo ao crescimento econômico, e a uma vida normal, sem corrupção...
Pronto, já disse o que tinha a dizer, agora podem ficar com o artigo.
Paulo Roberto de Almeida

De novo uma gravidez pequena, mas nem tanto

ROLF KUNTZ - O Estado de S.Paulo, 21/09/2013

A velha comparação da inflação pequena com a pequena gravidez pode ser tão detestável quanto qualquer lugar-comum, mas lugares-comuns podem ser didáticos. Além disso, a inflação mensal brasileira, por enquanto próxima de 0,3% e com tendência de alta, só é pequena para um país acostumado a taxas muito maiores que as do mundo civilizado e, de modo especial, que as de seus concorrentes. Mas os sinais da gravidez são cada vez mais visíveis. A inflação volta a mover-se com vigor crescente, depois de uma breve e enganadora acomodação dos índices. Todos os principais indicadores pioraram nos últimos dois meses, enquanto a presidente Dilma Rousseff e o ministro da Fazenda, Guido Mantega, continuaram alardeando a contenção da alta de preços.
O sinal de alerta mais recente veio com o IPCA-15, prévia do indicador oficial, o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). Este é medido entre o começo e o fim de cada mês. O outro, entre o dia 16 de um mês e o dia 15 do seguinte. O IPCA-15, divulgado nesta sexta-feira, havia ficado quase estável em julho, com variação de apenas 0,07%. A taxa mais que dobrou em agosto (0,16%) e continuou a aumentar em setembro, quando atingiu 0,27%. A acomodação no meio do ano foi enganadora, para quem gosta de ser enganado, é claro, porque resultou de pequenos truques de um governo empenhado em jogadas eleitorais.
Durou pouco o efeito, nada mais que ilusório, da redução política das tarifas de transporte urbano. Em agosto, ainda em consequência desse lance, o custo dos transportes incluído no IPCA-15 recuou 0,3% Em setembro, cresceu 0,3%, apesar da queda de preços do etanol e da gasolina. O custo da alimentação subiu 0,04%, bem pouco, mas havia diminuído 0,09% no período anterior. A alta poderia ter sido maior, sem o sensível barateamento de hortaliças. Mas o ponto mais importante para a avaliação da política oficial é outro.
Não tem sentido cuidar da inflação como se a alta geral de preços fosse ocasionada por um ou outro aumento localizado. Há poucas imagens mais enganadoras que a do famigerado vilão da inflação. Num mês é o preço do tomate, em outro, o do petróleo, num terceiro, o conjunto das cotações internacionais dos produtos agrícolas. De vez em quando o culpado é o câmbio, um preço com potencial para afetar muitos outros.
Esse tipo de palavrório pode dar colorido ao noticiário dos meios de comunicação, mas ninguém deveria tomá-lo ao pé da letra. Todos os países, na maior parte em desenvolvimento, foram afetados pela alta das cotações internacionais dos alimentos, nos últimos anos, assim como foram atingidos, na maior parte de 2013, pelo recuo desses preços. Mas nem todos enfrentaram inflação tão alta quanto a brasileira, embora, em muitos casos, a alimentação seja um componente importante do custo de vida.
No Brasil, a escalação dos vilões tem mudado e a inflação nunca desapareceu. Por isso mesmo voltou a ganhar força, depois das intervenções eleitoreiras do governo, O índice de preços por atacado, componente mais importante do IGP-10, da Fundação Getúlio Vargas, aumentou 1,46% em setembro, muito mais velozmente que no mês anterior, quando havia subido 0,19%.
Os produtos agropecuários haviam ficado 0,45% mais baratos em agosto e aumentaram 1,83% em setembro. Os bens industriais também ficaram bem mais caros, com alta de 1,32%. Ainda no atacado, os preços dos bens finais diminuíram 0,02%, mas, excluídos alimentos in natura e combustíveis para consumo, sobrou uma alta de 0,63%, nada desprezível.
Nem sempre esses aumentos chegam ao consumidor final. Isso depende das condições da demanda - fatores como o nível de renda, a oferta de crédito, o grau de resistência aos aumentos, a possibilidade de substituição de bens ou serviços e, naturalmente, as expectativas dos indivíduos e das famílias. A taxa de juros e o controle do crédito são os principais instrumentos de administração da demanda, no Brasil e em muitos países, mas o gasto público também é um componente importante desse quadro. Se houver alguma dúvida quanto à importância da demanda, bastará consultar o encarecimento dos serviços, 0,61% em agosto e 0,62% em setembro, no IPCA-15. Além disso, houve aceleração em todos os núcleos calculados pelos economistas para eliminar a influência de componentes mais instáveis.
No fim de agosto de 2011 o Banco Central (BC) iniciou uma baixa de juros e manteve essa política até abril deste ano, embora a inflação tenha sido muito alta durante todo esse tempo e até superado o limite anual de 6,5%. Além disso, a expansão do crédito continuou - e ainda continua. O governo jamais conteve a gastança e ainda estimulou o consumo com redução de impostos sobre alguns produtos, sem cuidar do aumento da produção interna.
Sem as famigeradas intervenções pontuais - contenção dos preços dos combustíveis e redução das tarifas de transportes e de energia - os números teriam sido muito piores. Todos esses fatos tornaram ainda mais grotesca a tentativa, repetida várias vezes, de atribuir a inflação brasileira à alta das cotações internacionais dos produtos agrícolas.
A única demonstração de juízo nos últimos meses foi a elevação de juros iniciada em abril pelo BC. O resto do quadro interno pouco mudou, exceto por alguma retração dos consumidores e pela redução do emprego no setor industrial.
Mas o governo mostra-se pouco preocupado e a presidente repete sua ladainha. Segundo ela, a inflação continuará dentro da meta. Mas isso vale para qualquer resultado até 6,5% ao ano, o limite de tolerância para situações excepcionais. A meta, em sentido próprio, é 4,5%, um alvo pouco ambicioso. Nem esse alvo deve ser atingido até o segundo trimestre de 2015, segundo o BC.   
*JORNALISTA

A morte da reforma agraria (ja vai tarde) - Zander Navarro

Concordo quase inteiramente com o que diz este colega sociólogo e especialista em reforma agrária, que conheci muitos anos atrás, e circunstâncias das quais não me recordo precisamente, mas que marcam minha lembrança pela rápida conversa que tivemos, em torno da reforma agrária, precisamente.
Deve ter sido no governo Sarney, ao final do regime militar, quando se achava que os antigos projetos de reforma agrária e de "justiça social" no campo seriam retomados ativamente pela nova democracia social então surgida no país. Ilusões, claro.
Eu já era um opositor consciente do velho modelo de reforma agrária pela qual lutavam movimentos rurais, partidos de esquerda e acadêmicos idem, inclusive porque tinha lido atentamente o que escrevera a respeito do assunto um marxista respeitável e respeitado, Caio Prado Jr, que também achava que o destino da agricultura brasileira seria o capitalismo rural e a proletarização dos "camponeses", camada que ele sempre considerou como sendo um grupo social estruturalmente marginal na formação brasileira (com o que eu sempre estive de acordo).
Ao apoiar, quase integralmente, o que escreve Zander Navarro, discordo de algumas coisas.
Discordo em primeiro lugar desta afirmação:

"O MST agoniza simultaneamente ao desaparecimento da reforma agrária, a razão de seu nascimento. Não soube refundar-se nessa nova fase do desenvolvimento agrário e vai se apagando melancolicamente. Seu consolo é que fará boa figura nos livros de História."

O MST não tinha razão de ser na reforma agrária. Ela era apenas um pretexto, pois esse movimento neobolchevique jamais apresentou qualquer estudo racional, economicamente embasado, empiricamente sustentado, para apoiar a reforma agrária, um mito completo. Era apenas um movimento revolucionário querendo implantar o socialismo, num irrealismo delirante.
Não creio que fará boa figura nos livros de História, talvez só nos do próprio movimento, e nos de beócios acadêmicos que o apoiam apenas porque ele parecia de esquerda e anticapitalista. Se tratava de um movimento que rompeu a legalidade diversas vezes, destruiu propriedades privadas e governamentais, roubou dinheiro público como ninguém (só o PT o supera) e prejudicou terrivelmente o agronegócio e a própria política agrícola governamental, que torrou centenas de milhões de reais, bilhões, provavelmente, numa causa perdida, sendo que a maior parte foi mesmo desviada para os criminosos que lideram esse movimento celerado.

Discordo também disto, pelo menos se ele concordar com a política da Contag:
"E a Contag, poderosa em razão de sua capilaridade, insiste na bandeira empurrada somente pela tradição. Seus dirigentes sabem ser outro o maior desafio: tentar salvar da desistência os milhares de pequenos produtores ameaçados pelo acirramento concorrencial instalado no campo."

Não creio que seja um desafio válido, pois se trata, na verdade, de uma causa reacionária, pretender fazer girar para trás a roda da história. O Estado vai passar a subsidiar camponeses como se faz na Europa? Não há nenhuma necessidade disso, e seria melhor deixar a agricultura capitalista cuidar de tudo. Os habitantes das cidades não precisam, não devem pagar agricultores improdutivos, e um governo responsável não poderia transferir renda dessa forma.

Discordo, por fim, no que se refere ao Incra e ao MDA, dois órgãos tresloucados, dominados pelo MST, e que devem ser imediatamente extintos, pois só torram o dinheiro público e movimentam políticas absolutamente contrárias ao interesse nacional, contra o agronegócio em particular.

Concordo, finalmente, com o sentido geral do artigo. A reforma agrária morreu, mas a constatação já vem tarde, muito tarde. Ela já tinha morrido nos anos 1970, e não deveria nunca ter sido retomada na redemocratização. Viveu como um zumbi esses anos todos, mas um zumbi nababo, consumido bilhões de recursos públicos sem qualquer sentido econômico ou social. Uma ficção e um embuste, animada por traficantes, criminosos, ladrões e patifes consumados. Estou sendo moderado com o MST e outros afins...
Paulo Roberto de Almeida

Pá de cal na reforma agrária

ZANDER NAVARRO

O Estado de S.Paulo, 21/09/2013
Usei o mesmo título em artigo publicado em 1986, indignado com a afronta do governo Sarney ao nomear um latifundiário para o Incra. Naquela década me envolvera no ativismo a favor da reforma agrária. Não obstante o anúncio pessimista, o esforço do conjunto de militantes contribuiu para animar a única política de redistribuição de terras já feita no Brasil, iniciada em 1996. Desde então, em torno de 1 milhão de famílias recebeu suas parcelas e aproximados 80 milhões de hectares foram arrecadados para constituir os assentamentos rurais - mais de três vezes a área de São Paulo.
Mantenho o título acima porque é preciso reconhecer desapaixonadamente o fato, agora definitivo: morreu a reforma agrária brasileira. Falta apenas alguma autoridade intimorata para presidir a solenidade de despedida. Atualmente a ação governamental nesse campo é um dispendioso e inacreditável faz de conta, sendo urgente a sua interrupção.
Muitos motivos feriram mortalmente a reforma agrária, mas alguns são mais reveladores. O primeiro é de cristalina obviedade, mas muitos fingem ignorá-lo: nenhuma política pública é eterna, pois se conforma às contínuas mutações da sociedade. O tema foi popular nas décadas de 1950 e 1960, e surpreendeu que na virada do século o Brasil patrocinasse uma vigorosa redistribuição de terras, um caso raro no mundo. Mas é particularidade que se esgotou.
Seria sensato manter essa política indefinidamente, quando o antigo País agrícola e agrário passou a ser conduzido pela lógica econômica e cultural das cidades, atraindo os migrantes rurais? A mudança espacial de moradia, de trabalho, de formas de vida e também de mentalidades da vasta maioria da população, no último meio século, liquidou a necessidade de democratizar a distribuição fundiária e sua demanda sumiu da agenda política, corroída pela acelerada urbanização.
Outro fator a ser considerado diz respeito às organizações que demandam reforma agrária, responsáveis pelas pressões que ativaram esta recente "bolha" redistributiva. O MST agoniza simultaneamente ao desaparecimento da reforma agrária, a razão de seu nascimento. Não soube refundar-se nessa nova fase do desenvolvimento agrário e vai se apagando melancolicamente. Seu consolo é que fará boa figura nos livros de História. E a Contag, poderosa em razão de sua capilaridade, insiste na bandeira empurrada somente pela tradição. Seus dirigentes sabem ser outro o maior desafio: tentar salvar da desistência os milhares de pequenos produtores ameaçados pelo acirramento concorrencial instalado no campo.
Uma outra razão a ser considerada decorre do desempenho da agropecuária no mesmo período, o qual inundou os mercados com volumes crescentes e, graças ao espetacular aumento da produtividade, barateou os alimentos. Tal transformação eliminou o velho argumento econômico da necessidade da reforma agrária e, se a população rural mais pobre migrou para as cidades, igualmente a justificativa social deixou de existir.
Mas há ainda um aspecto decisivo: oferecer uma parcela de terra a famílias rurais não produz mais nenhum efeito prático, apenas garante uma sobrevida temporária. Em nossos dias, chegar à terra própria nada significa para os mais pobres do campo. Produzirá a chance do autoconsumo ocasional, antes do abandono definitivo da terra, como evidenciado na maioria dos assentamentos rurais. De fato, trata-se de dura vilania política, pois, enquanto a miséria no campo se esconde atrás das muletas das políticas sociais, o governo federal coleta números destinados meramente ao autoelogio.
Por tudo isso, a reforma agrária brasileira concluiu o seu ciclo de vida. Do ponto de vista econômico e produtivo, seu fracasso é assombroso, pois a área total dos assentamentos é maior do que a área plantada de todos os cultivos nos demais estabelecimentos rurais. Mas, com surpresa, nada sabemos especificamente sobre a produção dos assentamentos, enquanto a agricultura brasileira se tornou uma das mais eficientes do mundo. É um confronto estatístico que desmoraliza qualquer defesa de tal política. Persistir em sua continuidade, portanto, beira a completa insanidade.
E o Incra e seu gigantesco orçamento, tornado inútil sob tal desenvolvimento? O caminho lógico seria a sua extinção, mas talvez fosse adequado transformá-lo num instituto de terras que realizasse as "tarefas finais", como a definitiva emancipação dos assentamentos, retirando a tutela do Estado, a regularização fundiária ou a organização das ainda ficcionais estatísticas cadastrais que diz compilar. Já o Ministério do Desenvolvimento Agrário, preso à sua anacrônica hibernação, mantém-se impassível ante a notícia acima e persevera em fantasias para justificar o clamoroso desperdício de vultosos recursos públicos, na tentativa de realizar o irrealizável. Ainda mais espantoso, tenta ressuscitar o que já morreu. Resta saber se a autoridade maior do País terá a coragem de finalizar este capítulo de nossa História.
Distintos são os desafios atuais para criar prosperidade e oportunidades no campo. Requer aceitar que a pobreza rural se resolverá, sobretudo, nas cidades e com outras políticas. E também que não existem soluções exclusivamente agrícolas para parte considerável dos estabelecimentos rurais de menor porte. Portanto, é preciso construir uma estratégia de desenvolvimento rural radicalmente inovadora. Mas para isso é preciso primeiramente abrir as mentes, pois a ortodoxia e a ideologização dominantes nos deixam sem rumo algum. Enquanto isso, afirmam-se o esvaziamento do campo e a incontrastável dominação da agricultura de larga escala modernizada e integrada aos mercados mundiais.
Eis o nosso futuro rural: uma fabulosa máquina de produção de riqueza, mas fortemente concentrada, pois seria assentada num deserto demográfico.    
*SOCIÓLOGO E PROFESSOR APOSENTADO DA UFRGS. E-MAIL: Z.NAVARRO@UOL.COM.BR,

Pre-sal: incompetencia, voracidade, rentismo e intervencionismo do governo afundam o leilao - Editorial Estadao

Menos disputa pelo pré-sal

Editorial O Estado de S.Paulo, 21 de setembro de 2013 
A ausência de três quartos das 40 empresas esperadas pelo governo - entre elas 5 das maiores companhias internacionais - na disputa do primeiro leilão do pré-sal dá a dimensão da frustração das autoridades do setor, que, porém, evitam falar em fracasso. Para quem acompanha a lenta evolução do processo de licitação do petróleo do pré-sal, no entanto, seria surpreendente se todas, incluindo gigantes como as americanas Exxon Mobil e Chevron, as britânicas BP e BG e a norueguesa Statoil, tivessem se habilitado para disputar a área. Era sabido que o excessivo poder concedido ao governo na definição dos programas de exploração da área e os altos investimentos necessários poderiam afastar muitas empresas da disputa.
O Campo de Libra, na Bacia de Santos, a ser leiloado no dia 21 de outubro, foi apresentado como a maior área de petróleo já oferecida no mundo. O campo tem reserva estimada entre 8 bilhões e 12 bilhões de barris. Isso quer dizer que, sozinho, ele pode fazer as reservas provadas do País, de 15 bilhões de barris, aumentarem de 53% a 80%.
Mesmo com todo o potencial de Libra, no entanto, o leilão não foi considerado interessante por 29 empresas habilitadas na Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) para operar em águas profundas. Apenas 11 das registradas na ANP, sendo 6 estatais, pagaram R$ 2 milhões para se inscrever no leilão. Entre as que se habilitaram estão gigantes privadas como a anglo-holandesa Shell e a francesa Total. Não é certo, porém, que todas ofereçam lances.
Entre o anúncio da descoberta do petróleo do pré-sal e a definição do marco regulatório para essas áreas, o governo consumiu seis anos. As regras, mesmo tendo demorado tanto para serem elaboradas, criaram muitas incertezas, sobretudo quanto à rentabilidade do empreendimento e aos limites para a interferência estatal. O alto volume dos investimentos necessários agravou as dúvidas das empresas privadas.
Segundo algumas informações, até dentro do governo se admite que o valor do bônus de assinatura, de R$ 15 bilhões, a ser pago à vista pela empresa vencedora na assinatura do contrato, limitou o número de participantes. A própria Petrobrás - que, qualquer que seja o resultado do leilão, terá um papel decisivo na exploração do pré-sal, como empresa operadora e sócia do grupo vencedor com 30% de seu capital - admitiu que não tinha condições financeiras para fazer esse pagamento. O bônus estava fixado inicialmente em R$ 10 bilhões, mas, com as crescentes dificuldades de caixa do governo, foi elevado para o valor atual. É dinheiro necessário para o governo cumprir a meta de superávit fiscal.
O regime de partilha definido para o pré-sal, pelo qual a proposta vencedora será a que oferecer ao governo a maior parcela do óleo excedente (isto é, descontados os custos de extração), dificulta o cálculo da taxa de retorno do empreendimento. Trata-se de um cálculo indispensável a qualquer plano de investimento, e vital para um empreendimento tão vultoso e de longo prazo de maturação, como o de exploração do pré-sal.
A forte presença da Petrobrás, como operadora e sócia, também pode ter afugentado empresas privadas cujos critérios de aferição de eficiência, rentabilidade e produtividade podem ser mais rigorosos do que os da estatal brasileira.
Deve ter assustado ainda mais as petrolíferas privadas o poder de interferência estatal, por meio da recém-criada Empresa Brasileira de Administração de Petróleo e Gás Natural S.A. - Pré-Sal Petróleo S.A. (PPSA), que, mesmo sem participação no capital do consórcio vencedor, tem poder de veto no seu comitê operacional.
Se não bastassem esses obstáculos criados pelo próprio governo brasileiro, outros surgiram com as mudanças no mercado mundial de energia. O longo período de cinco anos sem leilões de novos campos de petróleo no Brasil levou algumas empresas a desmobilizar suas estruturas no País e a buscar alternativas em outros. Nesse período, a descoberta de grandes reservas de gás de xisto nos Estados Unidos forçou a revisão das estimativas de demanda mundial de petróleo.
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Gigantes Exxon, BP e BG não participarão do leilão do pré-sal
Onze empresas vão participar do 1º leilão do pré-sal, número bem abaixo das expectativas da ANP
RIO - A diretora-geral da Agência Nacional do Petróleo, Gás e Biocombustíveis (ANP), Magda Chambriard, afirmou nesta quinta-feira, 19, ter recebido telefonema de três gigantes do setor petroleiro, Exxon Mobil, BP e BG, dizendo que não participarão do leilão de Libra, o 1º do pré-sal e o campo com a maior reserva. A disputa está marcada para dia 21 de outubro.
Segundo ela, as companhias disseram que não participariam por questões próprias internas muito específicas, mas as três reafirmaram interesse em futuras oportunidades no Brasil. "Existe um contexto mundial, situações muito específicas que levam a isso", disse.
A agência informou que o número oficial de empresas inscritas para o leilão chegou a onze. Elas pagaram a taxa de R$ 2,076 milhões de inscrição. Os documentos enviados pelas candidatas estão em análise na Área de Licitações da ANP e ainda não é certo que a lista nominal das empresas será divulgada nesta quinta.
Magda disse nesta quinta-feira que esperava que até 40 empresas participassem da disputa, mas que a "conjuntura" fez com que o número fosse menor. "Esperava 40 empresas, mas agora existe um contexto mundial de situações muito específicas de cada empresa que levam a essa situação", afirmou.
A ANP estimou que as reservas recuperáveis no prospecto de Libra poderão atingir entre 8 e 12 bilhões de barris, o que faria da área a maior do país, superando Tupi, com volumes que foram estimados em 2007 entre 5 a 8 bilhões de barris de óleo equivalente.
Uma fonte com conhecimento direto do processo disse à Reuters que a Shell, e as chinesas Sinopec, Sinochem e China National Petroleum Corp (CNPC) haviam pago a taxa de pouco mais de R$ 2 milhões que dá direito a participar do certame.
A fonte afirmou que não houve pagamento por parte da Chevron, a segunda petroleira dos Estados Unidos, e de nenhuma outra norte-americana.
A Chevron, durante a tarde, confirmou que ficaria de fora do leilão.
Uma segunda fonte, próxima à Shell, disse que o fato de a companhia ter pago a taxa não significa necessariamente que ela fará lances no leilão.
Uma certeza entra as ofertantes é a Petrobrás, que será operadora obrigatória da área de Libra e deverá ter, por lei, pelo menos 30% de participação em qualquer consórcio vencedor.
A assessoria de imprensa da ANP corrigiu uma informação passada mais cedo pela diretora-geral da autarquia, que chegou a dizer que haviam sido registrados os pagamentos de pelo menos 12 empresas.
Adesão baixa é surpresa. O número reduzido de participantes também surpreendeu um consultor e ex-diretor da Petrobrás. "É uma surpresa. A área (de Libra) é extremamente promissora, e não tem oportunidades no mundo (em exploração de petróleo) como áreas do pré-sal brasileiro", afirmou Paulo Roberto Costa, da Costa Global Consultoria.
Ele também se disse surpreso com o fato de companhias como Exxon, BP e BG não terem pago a taxa de participação no leilão, o que as exclui do processo.
"É uma coisa a ser pensada sobre o motivo de isso ter acontecido", disse ele, referindo-se ao número relativamente limitado de companhias.
Questionado sobre os motivos da baixa adesão, ele avaliou que isso poderia ter relação com o fato de a lei determinar a Petrobrás como operadora única, com no mínimo 30 por cento de participação na reserva.
"Pode ser que isso tenha afugentado as empresas... Talvez, se tivesse uma abertura para a Petrobrás não ser a operadora...", afirmou ele, indicando que as petroleiras poderiam ter mais autonomia para operar, não fosse a dominância da estatal exigida pela lei. "Esperava um numero bem maior pela potencialidade de Libra, isso é fato."
(Agência Estado e Reuters)

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