Apenas um retrato de nossa burocracia especializada, a tecnocracia do sistema fiscal.
"Enfins" (como diria uma professorinha da UnB), não há nada que a classe política possa fazer que não esteja, também, ao alcance de nossos bravos tecnocratas estatais...
Paulo Roberto de Almeida
SEGUNDA-FEIRA, 17 DE OUTUBRO DE 2011
Ex-secretário advoga agora para empresas que fiscalizava
O ex-secretário de Fiscalização da Receita Federal, Marcus Vinícius Neder, hoje é advogado e defende as empresas que fiscalizava. Segundo reportagem da revista Época, o sócio do escritório Trench, Rossi e Watanabe Advogados se reuniu recentemente com auditores da Receita para discutir mudanças nas regras tributárias.
De acordo com a reportagem, um ano antes de deixar o comando da secretaria, Neder editou portaria para centralizar a fiscalização dos grandes contribuintes. Até dezembro de 2009, esse trabalho era feito pelas delegacias do Fisco espalhadas pelo país. Com a nova regra, o secretário teve acesso a detalhes da relação de grandes contribuintes com o Fisco. Sua exoneração foi publicada na edição do dia 27 de janeiro de 2011 do Diário Oficial.
No dia 13 do mês passado, segundo a revista, Neder participou, na sede do Fisco em Brasília, de uma reunião na sala da Coordenação-Geral de Tributação (Cosit), o departamento por onde passam todas as mudanças na legislação promovidas pela Receita. Convocada pelo secretário da Receita Federal, Carlos Alberto Barreto, a reunião tinha o objetivo de rever as regras de tributação sobre o lucro das subsidiárias de empresas brasileiras no exterior, um tema caro a gigantes da economia nacional.
Neder participou do encontro como advogado de empresas que antes fiscalizava: Vale, Odebrecht, Petrobras, BR Foods, Banco do Brasil, entre outras. Também foram à reunião representantes desses clientes. A reportagem da Época afirma que a intenção dos empresários e do advogado na reunião foi uma só: pedir alterações das normas tributárias sobre o lucro das subsidiárias.
Sete auditores da Receita que ficam em São Paulo foram convocados pelo secretário para participar do encontro em Brasília. De acordo com a notícia, eles desconfiaram da reunião, que foi organizada pela coordenadora de Tributos, a também auditora da Receita Cláudia Lúcia Pimentel da Silva, a número dois na hierarquia da Cosit. Cláudia Lúcia é cunhada de Neder. O advogado afirma que seu escritório foi convidado a participar do encontro pelas empresas interessadas na mudança da legislação. Em nota, a Vale afirmou que desconhece qualquer restrição ao trabalho de Neder na iniciativa privada e que há oito anos tem apoio técnico do Trench, Rossi e Watanabe.
A Receita Federal informou à Época que o grupo de trabalho foi criado para “desafogar” o gabinete do secretário Barreto e dar transparência no atendimento dos pleitos da iniciativa privada. Segundo a assessoria da Receita, um grupo de empresas com atividades no exterior, denominado pela sigla Giex, solicitou neste ano uma audiência com Barreto para tratar da tributação sobre o lucro das subsidiárias.
Ele também foi procurado, segundo a assessoria, pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e pela Confederação Nacional da Indústria (CNI). Ainda de acordo com a assessoria, Barreto criou esse grupo de trabalho para que especialistas cuidassem do assunto. A Receita afirma que não sabia que Neder trabalhava para as empresas e que não pode interferir na escolha dos advogados dos contribuintes. E por que a cunhada de Neder foi escalada para organizar a reunião? Coincidência, segundo a Receita.
Marcus Vinícius Neder preferiu não cumprir o período de quarentena, como de hábito procedem os servidores que deixam o Estado. Passou para a iniciativa privada antes mesmo de deixar o Fisco, como revela o documento obtido pela revista Época. Sete dias antes de deixar a Receita, assinou contrato tornando-se sócio da Iguatemi Participações, uma consultoria que funciona no mesmo endereço da Trench, Rossi e Watanabe – as duas têm sócios em comum.
O advogado afirma que o contrato só foi registrado na Junta Comercial de São Paulo em março, dois meses após sua saída da Receita. E diz que pediu exoneração em 17 de janeiro (três dias antes de assinar o contrato), mas a publicação demorou dez dias para sair.
O lucro das subsidiárias
A disputa entre as empresas e o Fisco se dá em torno do artigo 74 da Medida Provisória 2.158, de 2001. Pela norma, os tributos sobre o lucro das empresas coligadas e controladas no exterior têm de ser recolhidos no Brasil com os resultados das matrizes apurados no final do ano, respeitando um sistema de tributação conhecido tecnicamente como “regime de competência”. Tal regra foi criada para que multinacionais brasileiras não postergassem o recolhimento dos impostos de suas operações no exterior. Antes, elas só declaravam o lucro no Brasil quando desejavam.
A Vale é uma das maiores interessadas na mudança da legislação. Recebeu quatro autos de infração, no valor total de R$ 26,7 bilhões, relativos ao período de 1996 e 2008. Todas as multas tiveram como base o artigo 74 da MP. A empresa, que atua em 37 países, sem contar o Brasil, questiona a medida provisória na Justiça.
A 7ª Vara Federal do Rio de Janeiro rejeitou seus argumentos em agosto de 2005, e a mineradora recorreu da sentença. Em março passado, o Tribunal Regional Federal manteve a decisão. No dia 17 de agosto passado, o STF acenou na direção de manter a tributação ao julgar ação direta de inconstitucionalidade contra a MP movida desde 2003 pela CNI.
A votação fechou com quatro votos a favor e quatro contra. O empate foi desfavorável à CNI porque a então ministra Ellen Gracie, antes de se aposentar, votara parcialmente pela constitucionalidade da MP. Falta ainda o voto do ministro Joaquim Barbosa, que não tem participado dos julgamentos no Plenário da corte. Doze dias após a sessão do STF parcialmente favorável à manutenção da tributação, Barreto criou o grupo de trabalho que levou Neder de volta à Receita.
A Odebrecht diz que um grupo de empresários resolveu se unir contra a regra de tributação e contratou o escritório de Neder. De acordo com a Odebrecht, a reunião “foi uma iniciativa conjunta” das empresas com a Receita. A BR Foods limitou-se a dizer que participa de estudos.
O Banco do Brasil disse não ter relações comerciais com Neder e seu escritório. Afirma que esteve na Cosit como convidado da iniciativa privada. A Petrobras não respondeu. A Vale afirmou em nota: “A Vale integra um grupo de trabalho para discutir aspectos da legislação de tributação de lucros no exterior, bem como propor alterações no sentido de dar mais competitividade às empresas brasileiras que atuam no mercado global. (...) Este grupo conta com o apoio técnico do escritório Trench, Rossi e Watanabe Advogados, com quem a Vale trabalha há mais de oito anos, em vários assuntos, inclusive tributários. Desconhecemos qualquer restrição ao trabalho do senhor Marcos Vinicius Neder na iniciativa privada”.
Questionados sobre a possibilidade de que o vínculo com Neder pudesse de alguma forma configurar um convite ao tráfico de influência, todos negam. Os grupos de trabalho da Receita são criados para tratar de assuntos internos. Não costumam atuar em parceria com a iniciativa privada.
Revista Consultor Jurídico, 16 de outubro de 2011
De acordo com a reportagem, um ano antes de deixar o comando da secretaria, Neder editou portaria para centralizar a fiscalização dos grandes contribuintes. Até dezembro de 2009, esse trabalho era feito pelas delegacias do Fisco espalhadas pelo país. Com a nova regra, o secretário teve acesso a detalhes da relação de grandes contribuintes com o Fisco. Sua exoneração foi publicada na edição do dia 27 de janeiro de 2011 do Diário Oficial.
No dia 13 do mês passado, segundo a revista, Neder participou, na sede do Fisco em Brasília, de uma reunião na sala da Coordenação-Geral de Tributação (Cosit), o departamento por onde passam todas as mudanças na legislação promovidas pela Receita. Convocada pelo secretário da Receita Federal, Carlos Alberto Barreto, a reunião tinha o objetivo de rever as regras de tributação sobre o lucro das subsidiárias de empresas brasileiras no exterior, um tema caro a gigantes da economia nacional.
Neder participou do encontro como advogado de empresas que antes fiscalizava: Vale, Odebrecht, Petrobras, BR Foods, Banco do Brasil, entre outras. Também foram à reunião representantes desses clientes. A reportagem da Época afirma que a intenção dos empresários e do advogado na reunião foi uma só: pedir alterações das normas tributárias sobre o lucro das subsidiárias.
Sete auditores da Receita que ficam em São Paulo foram convocados pelo secretário para participar do encontro em Brasília. De acordo com a notícia, eles desconfiaram da reunião, que foi organizada pela coordenadora de Tributos, a também auditora da Receita Cláudia Lúcia Pimentel da Silva, a número dois na hierarquia da Cosit. Cláudia Lúcia é cunhada de Neder. O advogado afirma que seu escritório foi convidado a participar do encontro pelas empresas interessadas na mudança da legislação. Em nota, a Vale afirmou que desconhece qualquer restrição ao trabalho de Neder na iniciativa privada e que há oito anos tem apoio técnico do Trench, Rossi e Watanabe.
A Receita Federal informou à Época que o grupo de trabalho foi criado para “desafogar” o gabinete do secretário Barreto e dar transparência no atendimento dos pleitos da iniciativa privada. Segundo a assessoria da Receita, um grupo de empresas com atividades no exterior, denominado pela sigla Giex, solicitou neste ano uma audiência com Barreto para tratar da tributação sobre o lucro das subsidiárias.
Ele também foi procurado, segundo a assessoria, pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e pela Confederação Nacional da Indústria (CNI). Ainda de acordo com a assessoria, Barreto criou esse grupo de trabalho para que especialistas cuidassem do assunto. A Receita afirma que não sabia que Neder trabalhava para as empresas e que não pode interferir na escolha dos advogados dos contribuintes. E por que a cunhada de Neder foi escalada para organizar a reunião? Coincidência, segundo a Receita.
Marcus Vinícius Neder preferiu não cumprir o período de quarentena, como de hábito procedem os servidores que deixam o Estado. Passou para a iniciativa privada antes mesmo de deixar o Fisco, como revela o documento obtido pela revista Época. Sete dias antes de deixar a Receita, assinou contrato tornando-se sócio da Iguatemi Participações, uma consultoria que funciona no mesmo endereço da Trench, Rossi e Watanabe – as duas têm sócios em comum.
O advogado afirma que o contrato só foi registrado na Junta Comercial de São Paulo em março, dois meses após sua saída da Receita. E diz que pediu exoneração em 17 de janeiro (três dias antes de assinar o contrato), mas a publicação demorou dez dias para sair.
O lucro das subsidiárias
A disputa entre as empresas e o Fisco se dá em torno do artigo 74 da Medida Provisória 2.158, de 2001. Pela norma, os tributos sobre o lucro das empresas coligadas e controladas no exterior têm de ser recolhidos no Brasil com os resultados das matrizes apurados no final do ano, respeitando um sistema de tributação conhecido tecnicamente como “regime de competência”. Tal regra foi criada para que multinacionais brasileiras não postergassem o recolhimento dos impostos de suas operações no exterior. Antes, elas só declaravam o lucro no Brasil quando desejavam.
A Vale é uma das maiores interessadas na mudança da legislação. Recebeu quatro autos de infração, no valor total de R$ 26,7 bilhões, relativos ao período de 1996 e 2008. Todas as multas tiveram como base o artigo 74 da MP. A empresa, que atua em 37 países, sem contar o Brasil, questiona a medida provisória na Justiça.
A 7ª Vara Federal do Rio de Janeiro rejeitou seus argumentos em agosto de 2005, e a mineradora recorreu da sentença. Em março passado, o Tribunal Regional Federal manteve a decisão. No dia 17 de agosto passado, o STF acenou na direção de manter a tributação ao julgar ação direta de inconstitucionalidade contra a MP movida desde 2003 pela CNI.
A votação fechou com quatro votos a favor e quatro contra. O empate foi desfavorável à CNI porque a então ministra Ellen Gracie, antes de se aposentar, votara parcialmente pela constitucionalidade da MP. Falta ainda o voto do ministro Joaquim Barbosa, que não tem participado dos julgamentos no Plenário da corte. Doze dias após a sessão do STF parcialmente favorável à manutenção da tributação, Barreto criou o grupo de trabalho que levou Neder de volta à Receita.
A Odebrecht diz que um grupo de empresários resolveu se unir contra a regra de tributação e contratou o escritório de Neder. De acordo com a Odebrecht, a reunião “foi uma iniciativa conjunta” das empresas com a Receita. A BR Foods limitou-se a dizer que participa de estudos.
O Banco do Brasil disse não ter relações comerciais com Neder e seu escritório. Afirma que esteve na Cosit como convidado da iniciativa privada. A Petrobras não respondeu. A Vale afirmou em nota: “A Vale integra um grupo de trabalho para discutir aspectos da legislação de tributação de lucros no exterior, bem como propor alterações no sentido de dar mais competitividade às empresas brasileiras que atuam no mercado global. (...) Este grupo conta com o apoio técnico do escritório Trench, Rossi e Watanabe Advogados, com quem a Vale trabalha há mais de oito anos, em vários assuntos, inclusive tributários. Desconhecemos qualquer restrição ao trabalho do senhor Marcos Vinicius Neder na iniciativa privada”.
Questionados sobre a possibilidade de que o vínculo com Neder pudesse de alguma forma configurar um convite ao tráfico de influência, todos negam. Os grupos de trabalho da Receita são criados para tratar de assuntos internos. Não costumam atuar em parceria com a iniciativa privada.
Revista Consultor Jurídico, 16 de outubro de 2011
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