O Mercosul como mecanismo de desenvolvimento
regional (SPG)
PRA: Cabe registrar, ab
initio desta seção, que o Mercosul não foi concebido como mecanismo de
desenvolvimento, nem poderia sê-lo. Ele pode contribuir para o crescimento
econômico de seus membros, e por essa via ao desenvolvimento de suas
sociedades, mas seus objetivos precípuos se limitam ao terreno da integração
econômica, via liberalização comercial e abertura progressiva de todos os
setores da economia dos países membros a uma mútua interdependência. O
desenvolvimento, regional ou nacional, depende de uma série de outras
políticas, que não estão cobertas, nem poderiam estar, pelo TA ou por outros
protocolos e instrumentos existentes sob sua égide. Não se deve confundir
comércio e integração com desenvolvimento, que é um empreendimento bem mais
vasto e complexo do que a simples liberalização e abertura recíprocas. Em
outros termos, não se deve esperar que o rabo da política comercial abane o
cachorro do desenvolvimento: ele não teria esse poder, sobretudo em países que
possuem um grau mínimo de abertura comercial e de integração ao mundo como os
dois grandes do Mercosul (de todos eles, aliás, o Brasil é o de menor
coeficiente de abertura econômica).
SPG: À
época da criação do Mercosul, existia a convicção nos governos
dos Presidentes Menem, Collor, Rodrigues e Lacalle, de que a execução
das políticas preconizadas pelo Consenso de Washington, isto é, de desregulamentação,
de privatização, de abertura ao capital estrangeiro e de remoção das barreiras
ao comércio, seriam suficientes [sic] para promover o desenvolvimento econômico
e social.
PRA: Esta é uma interpretação
de SPG, que pretende reconstruir a história do Mercosul em fases de preto e
branco: antes todos eram neoliberais, e agiram, portanto, em consequência, ou
seja, se renderam a essas famosas regrinhas que SPG jamais discute (para saber
se elas são, ou eram, tão prejudiciais, como se pretende, para as finalidades
de integração ou até de crescimento econômico e de desenvolvimento). Se tal interpretação tivesse qualquer
correspondência com os fatos, então
os governos não neoliberais que se seguiram a esses presidentes deveriam ter
invertido completamente o sentido geral das políticas conduzidas até a
perniciosa dominação do CW, que teria durado, grosso modo, até 2003 ou 2005.
Eles o fizeram? Por que não o fizeram? Qual a opinião de SPG em face do fato de que as políticas brasileiras
permaneceram sensivelmente as mesmas desde sempre? Seria um complô de
banqueiros, capitalistas neoliberais, burocratas do FMI ou quaisquer outros
personagens influentes que dificultaram a tarefa? O Mercosul avançou desde que
os não neoliberais assumiram o poder? Por fim: esses presidentes alimentavam a
ilusão de que o Mercosul, sob as regras então fixadas, promoveria o
desenvolvimento econômico e social? Ou consideravam eles, como sempre se
declarou, que era apenas mais uma contribuição aos avanços da inserção global
dos países membros? Esta é a minha opinião;
posso partilhá-la com SPG, se ele aderir aos fatos, não a uma afirmação tão pouco desprovida de consistência
empírica como a que ele faz.
SPG: O
Mercosul foi criado em 1991 para ser um esquema de liberalização comercial,
como uma etapa de um processo “virtuoso” de eliminação de barreiras ao comércio
e de plena inserção na economia internacional, e não para ser um organismo de
promoção do desenvolvimento econômico nem dos Estados isolados nem em conjunto.
PRA: Este é um fato,
ainda que o “virtuoso” fique por conta da interpretação,
ou opinião, de SPG. Nenhum processo
de integração – pois que compreendendo “apenas” elementos de política comercial
e, progressivamente, outros elementos das políticas setoriais, até chegar ao
coração das políticas macroeconômicas, numa fase avançada – pode pretender
“desenvolver” um país; isso passa por um conjunto de tarefas de ampla magnitude
– abrangendo educação, mercados laborais, infraestrutura, governança e muitos
outros elementos estruturais – que não pode, na maior parte dos casos, ser
coberto por um simples tratado de integração comercial. Sobretudo para um país
como o Brasil, que tem um coeficiente reduzido de abertura, como já registrado,
e cujos intercâmbios regionais não ocupam mais de 10% do seu comércio exterior,
seria ilusório esperar que um esquema como esse fosse servir de alavanca de
desenvolvimento. A interpretação de
SPG não corresponde simplesmente à realidade do Mercosul: seria pretender que
um rato, mal comparando, tenha o rugido de um leão. O Mercosul certamente não é
um rato, mas se examinarmos o conjunto das interfaces econômicas que o bloco
possui com a economia brasileira, veremos que o essencial dos intercâmbios
externos do Brasil se fazem à margem e externamente ao Mercosul. Um pouco de
realismo não seria demais na interpretação
altamente ambiciosa de SPG para o Mercosul.
SPG: A
implementação do Tratado de Assunção, ao não levar em conta de forma adequada
as diferenças entre os países e o impacto econômico e político dos
deslocamentos econômicos causados pela redução de tarifas, levou a todo tipo de
esquemas “provisórios”, tais como o acordo automotivo e as exceções à TEC,
periodicamente renovadas, para bens da capital e de tecnologia de informação, e
os acordos, muitas vezes informais, de organização do comércio em certos setores empresariais.
PRA: Ainda aqui a interpretação
de SPG carece de embasamento na realidade. Não foi a implementação do TA que
não levou em conta diferenças entre os membros: essas diferenças fazem parte da
“natureza” das coisas, mesmo na existência de qualquer outro tipo de acordo. O
TA não é culpado de nada, e sim os governos, que se renderam a seus lobbies
corporativos e a políticos nacionais que não pretendiam, de fato, integrar cadeias produtivas, uma
vez que isso representaria deslocamento de investimentos e de empregos, o que é
sempre doloroso. Ou seja, as lideranças políticas nacionais não tiveram coragem
de efetivamente derrubarem barreiras ao comércio intrarregional, o que é a base
de qualquer acordo de integração, como explicitado na experiência europeia, que
parece despertar tanta admiração em alguns ingênuos do bloco do Cone Sul.
Independentemente de quanto dinheiro alemão foi repassado aos membros menos
desenvolvidos do bloco europeu, o fato
é que as barreiras comerciais foram abolidas entre eles, com pleno respeito às
regras acordadas solenemente. Não parece ter sido, e não parece que será o caso
do Mercosul. SPG poderia, ao menos, reconhecer esse simples fato. O que ocorreu, de verdade, é que,
desde o início, os governos nacionais se renderam a poderosos lobbies
corporativos e sindicais, e evitaram derrubar barreiras e regras especiais,
domésticas. Assim como não se pode fazer omelete sem quebrar os ovos, não se
pode fazer integração sem derrubar barreiras. Se os países membros não o fazem,
o Mercosul não é “implementado” de fato.
Alguma interpretação de SPG sobre
esse fato simplório?
SPG: A
transformação do Mercosul de uma simples união aduaneira e área de livre
comércio imperfeitas em um esquema de desenvolvimento regional equilibrado e
harmonioso dos quatro Estados, o que significa a eliminação das assimetrias e a
gradual construção de uma legislação “comum”, exigiria:
a)
o reconhecimento enérgico das assimetrias, cuja realidade se verificaria
pela constituição de fundos comuns assimétricos, com recursos adequados, em
cada área de integração, para financiar projetos, inclusive de harmonização
gradual da legislação;
b)
a garantia de condições para permitir políticas de promoção do
desenvolvimento industrial de cada Estado;
c)
a celebração de acordos em setores industriais relevantes, semelhantes ao
acordo automotivo;
d)
a criação de mecanismos que impeçam a “desorganização dos mercados”
nacionais e, ao mesmo tempo, evitem o desvio de comércio em favor de países
não-membros do Mercosul;
e)
o acesso das empresas de capital nacional, sediadas nos quatro Estados,
aos organismos nacionais de financiamento de qualquer um dos quatro Estados do
Mercosul;
f)
a harmonização da legislação dos quatro Estados em todas as áreas de
integração.
PRA: “Reconhecimento enérgico de assimetrias”
significaria postergar o cumprimento das normas do TA até o dia em que (teoricamente
pelo menos) todos os países fossem “equalizados”, ou tornados isonômicos, pela
correta aplicação desses “fundos comuns assimétricos” (isto é, financiados pelo
Brasil); é uma missão gigantesca de projetos governamentais que transformaria o
Mercosul numa espécie de “dirigismo num só bloco”, digno sucessor do
“socialismo num só país” de Stalin. Essa tarefa hercúlea teria de ser
financiada com “recursos adequados, em cada área de integração”, algo jamais
alcançado pelo Comecon soviético. Todas as demais medidas, inclusive as de
“promoção industrial”, ou para impedir “desorganização dos mercados” [sic],
levariam o Mercosul a algo próximo da centralização estatal dos planificadores
do socialismo real. Não deu certo na pátria do socialismo, mesmo com os
recursos gigantescos do maior território jamais conhecido na história das
nações soberanas, e SPG pretende retomar a experiência neste Cone Sul tão rico
e ainda insuficientemente capitalista. Avento a opinião de que tal empreendimento, se possível fosse, tornaria os
países do Mercosul muito mais pobres e atrasados do que são, hoje, sob a égide
do “capitalismo neoliberal”.
SPG: A
crise econômica internacional, a estratégia e as políticas de desenvolvimento
implementadas pela China, os programas implementados pelos países
industrializados para enfrentar a crise e a verdadeira “suspensão”, na prática,
das normas incluídas nos diversos acordos da OMC, “negociados” à época da
hegemonia do pensamento neo liberal [sic], criam um ambiente propício à adoção deste
elenco de medidas.
PRA: Eis aí a confirmação do que opinei acima: SPG pretende que a “janela de oportunidades” criada
pela crise dos países ricos, o “modelo” de capitalismo “pelo alto” dos
burocratas chineses, a “flexibilização” das rígidas normas do sistema
multilateral de comércio numa conjuntura em que ninguém mais acredita na
conclusão da Rodada Doha, assim como a “superação” – imagino que saudada por
ele – do pensamento neoliberal nos países do Cone Sul, todos esses elementos
“facilitadores” (pela ação consciente dos governos dos Estados membros,
obviamente) poderiam favorecer transformar o Mercosul, de pequeno bloco
comercial que é, deficiente e esfarrapado, em vibrante ferramenta do
desenvolvimento econômico e social de toda a América do Sul. Eu até poderia
desejar sucesso no empreendimento, se acreditasse que todas essas condições
pudessem ser reunidas num sentido “virtuoso”, como certamente pretende SPG.
Como sou um modesto realista-idealista, prefiro
acreditar que esse gigantesco projeto de engenharia social, econômica e
política não vai funcionar, como não funcionaram todos os projetos grandiosos
desenhados por ideólogos sonhadores como SPG. Acredito que ele seja sincero em
suas opiniões e interpretação do processo de integração do Cone Sul, ou seja, que
ele deseje realmente realizar o desenvolvimento harmonioso dos povos e das
sociedades da região, via constituição de um amplo espaço econômico integrado
na América do Sul. Pena que ser sincero não baste para atribuir às propostas feitas
um grau mínimo que seja de realismo intrínseco, e de lógica formal; pena que
todos esses projetos e ideias não se conforme com os fatos atuais, nem ofereçam o mínimo de factibilidade quanto à sua
consecução futura; pena, sobretudo, a análise feita seja tão carente de
embasamento na realidade, e que as propostas apresentadas sejam tão deletérias,
se por acaso implementadas em algum momento.
[CONTINUA para o fim, UFA!]
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