As recentes decisões do governo quanto ao regime automotivo que vigorará até 2017 devem ser interpretadas tendo como pano de fundo o dito latino: sob pele de ovelha, muitas vezes se esconde uma mente de lobo (Pelle sub agnina latitat mens saepe lupina). A pretexto de garantir que sejam alcançadas metas relacionadas à inovação tecnológica, está sendo promovido o fechamento do mercado automotivo brasileiro. E ganha projeção um coro de louvações ou racionalizações despropositadas. Sob a pele da inovação, é preciso revelar o lobo da proteção.
A indústria automotiva está entre os poucos setores da indústria brasileira protegidos pela tarifa máxima de 35% que o Brasil pode aplicar em decorrência de seus compromissos multilaterais. Em tese, todos os produtos industriais poderiam se beneficiar desse alto nível de proteção, mas a tarifa média brasileira ronda os 12%, pois a generalização da tarifa de 35% é considerada inaceitável mesmo pelos mais radicais defensores do protecionismo.
O setor automotivo tem tradição de grande perícia na extração de tratamento privilegiado. O último episódio mais escabroso foi a adoção do regime de quotas de importação, na década de 1990, com o apoio da Santa Aliança que reuniu empresas e sindicatos, o Partido dos Trabalhadores (PT) e segmentos populistas do PSDB.
Na esteira da apreciação do real fizeram-se ouvir, com estridência, os defensores da proteção. A depreciação da ordem de 20% nos últimos meses não arrefeceu tais pressões. Foi contemporânea da introdução de legislação tributária, transformada na espinha dorsal do programa Inovar-Auto, que aumenta o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) sobre veículos, produzidos no País ou importados, em 30%. Caso as empresas automotivas instaladas no País alcancem determinadas metas de gastos em pesquisa e desenvolvimento, nacionalização de etapas fabris e melhoria de eficiência dos veículos, poderão abater o IPI adicional. Ou seja, os veículos produzidos no País serão protegidos da concorrência das importações pelo efeito cumulativo da tarifa de importação de 35% e do diferencial de até 30% no IPI cobrado.
O programa foi descrito como um "esforço de inteligência para... passar pelo crivo liberal (sic) da Organização Mundial do Comércio (OMC)". Se "inteligência" for substituída por "malandragem", talvez a frase faça algum sentido. A discriminação tributária com impostos internos é violação flagrante das regras multilaterais. Não fosse assim, não faria sentido algum negociar reduções recíprocas de tarifas de importação, pois a qualquer momento um dos parceiros poderia introduzir imposto interno que se aplicasse só às importações e seria equivalente a aumentar o imposto de importação. O que se tentou fazer no processo de "negociação" que gerou o Inovar-Auto foi cooptar todos os fabricantes de um setor altamente oligopolizado, distribuindo "agrados" na forma de quotas de importação para os não atendidos, para minimizar o risco de que supridores internacionais descontentes pressionem seus governos a protestar na OMC.
Ouvem-se argumentos de que o governo teria esperanças de que a eventual defesa do mostrengo possa se basear em exceções aceitas pela OMC para políticas de estímulo à inovação. Mas o que a OMC aceita são subsídios a atividades de inovação que nada têm a ver com metas de conteúdo local. Se o BNDES apoiasse projetos de inovação justificados por análises de custo-benefício sob a ótica social, seria possível caracterizar uma política coerente de estímulo à inovação centrada na correção de falhas de mercado.
Outros argumentos em defesa do protecionismo comparam o número de ações protecionistas adotadas por diversos países, citando o Global Trade Alert da Universidade de St. Gallen, e chegam à conclusão de que o Brasil até que protege pouco. Tal como no caso de medidas antidumping, o mero número de ações tem significado modesto. Interessa mais a intensidade das medidas protecionistas. Para que a Fiesp use com credibilidade comparações internacionais - mesmo que "todo mundo está fazendo" seja aceito como argumento decente -, é preciso mostrar exemplo internacional que se possa comparar ao virtual fechamento do mercado automotivo brasileiro.
Há mesmo grandes industriais que, ao celebrar a bem-vinda e, esperemos, sustentável queda das taxas de juros, concluem que, agora, "quem quiser obter rendimentos mais elevados terá de arregaçar as mangas, investir em operações produtivas de longo prazo e correr mais riscos". "Arregaçar as mangas" no Inovar-Auto será apenas para ordenhar mais comodamente as benesses distribuídas pelo Estado.
A verdade é que a indústria automotiva brasileira, que operava até recentemente sob frondosa tarifa de 35%, extraiu do governo proteção adicional da mesma magnitude, relacionada ao tratamento discriminatório das importações na cobrança do IPI. O custo será pago pelo consumidor, a despeito dos desmentidos ineptos dos ministros Mantega e Pimentel. É muito oneroso resgatar periodicamente a indústria automotiva, sempre na rabeira da inovação tecnológica global. Está faltando quem represente o interesse dos consumidores.
* DOUTOR PELA UNIVERSIDADE DE CAMBRIDGE, É PROFESSOR TITULAR NO DEPARTAMENTO DE ECONOMIA DA PUC-RIO
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