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Edição da revista Veja circulando nesta semana, com data de capa de 21/10/2015.
Paulo Roberto de Almeida
Veja – Quando a Lava-Jato emergir, ... / Capa
...os vergonhosos acordos de ajuda mútua em Brasília vão ser devorados pela atuação da grande e boa novidade na vida pública brasileira, a Justiça, que já condenou e prendeu a cúpula do PT no mensalão e caminha para fazer o mesmo com os corruptos do petrolão
Em uma reunião ocorrida dias depois da prisão dos executivos das maiores empreiteiras do país, o dono de uma delas, seus dois filhos, o diretor jurídico da empresa e dois ministros aposentados do Superior Tribunal de Justiça discutiam o que fazer. Um dos presos, dono de segredos estarrecedores, ameaçava contar o que sabia. "Se isso acontecer, vai o Lula, vai a Dilma, vai todo mundo", disse o empreiteiro, que, muito nervoso, alternava crises de choro com rememorações de feitos da empresa e suas relações com políticos importantes. "O Sigmaringa vai falar agora com a Dilma (a presidente). Vai avisar que ele (o diretor preso que ameaçava contar tudo) é o homem da vez." Sigmaringa é o advogado Sigmaringa Seixas, amigo e defensor do ex-presidente Lula. O diretor em questão era, simplesmente, o homem encarregado de distribuir propina aos políticos. Entre os vários endereços que visitou, o mais conhecido foi o Instituto Lula. A reunião durou cerca de quatro horas e as linhas gerais da estratégia de defesa foram desenhadas. Em resumo, todos deveriam trabalhar para desmantelar a Operação Lava-Jato.
Nos últimos dias, a impressão que se tinha era que, se não desmantelada, a Lava-Jato estava seriamente comprometida. Há duas semanas, o foco do noticiário político transferiu-se para Brasília, onde, em plena luz do dia, poderosos alcançados de alguma forma pela Operação Lava-Jato combinavam maneiras de esquecerem suas diferenças e, juntos, tentarem restabelecer o clima de impunidade. Sacrificariam suas convicções, suas bandeiras políticas em busca da salvação coletiva. A Lava-Jato parecia coisa do passado. Ledo engano. A esperança de um Brasil mais justo para todos trazida pela operação comandada pelo juiz Sergio Moro, da 13- Vara da Justiça Federal, em Curitiba, continua de pé, mesmo longe das manchetes. Abaixo da linha-d"água do noticiário, a Justiça continua fazendo seu trabalho. A Justiça tem seus ritos e tempos próprios. Mais dia, menos dia, ela emerge das águas profundas e desfaz os acordos espúrios tramados na superfície.
Veja – Corrupção em águas profundas
Por Daniel Pereira e Robson Bonin
Delator revela ter pago propina ao presidente do Congresso, ao líder do governo Dilma no Senado, a um ministro do governo Lula e a um senador do PMDB
O ex-presidente Lula se reuniu no fim de junho com os líderes do PT e do PMDB, em Brasília. O encontro ocorreu na casa de Renan Calheiros, presidente do Senado. Acossado pelo petrolão, o maior escândalo de corrupção da história do Brasil, Lula saiu-se com a tática que sempre adotou, com sucesso, nesses casos: arrastar mais gente para o seu lado, na tentativa de tornar o grupo maior do que a boca do abismo que o ameaça. Lula disse aos presentes que toda a primorosa investigação da Polícia Federal secundada pelo trabalho implacável dos procuradores federais e de juizes de diversas instâncias não passa de uma "campanha para desmoralizar a classe política". Lula chamou de arbitrários o juiz Sergio Moro e os demais responsáveis pela Operação Lava-Jato. "O país foi seqüestrado pelo Moro. Temos de reagir no Supremo Tribunal Federal", concordou José Sarney, o ex-presidente cuja filha, Roseana, é investigada no caso. Obviamente o objetivo da reunião na casa de Renan não foi arrancar o país das garras do arbítrio e devolvê-lo à normalidade democrática. O objetivo foi encontrar um jeito de restaurar a velha ordem da impunidade para os poderosos da República que a Lava-Jato ameaça contrariar pela primeira vez em nossa história.
Em comum, muitos dos participantes da reunião tinham, além do fervor republicano, o fato de estarem na boca dos delatores da Lava-Jato como beneficiários do dinheiro desviado da Petrobras. Até mesmo Delcídio Amaral, líder do governo no Senado, que participou da reunião, acabou enlaçado no escândalo. Lula, Renan e Delcídio foram listados como beneficiários do petrolão pelo lobista Fernando Soares, o Fernando "Baiano". Em sua delação premiada ao Ministério Público, Baiano declarou ter pago a José Carlos Bumlai, compadre de Lula, 2 milhões de reais em propina, cujo destinatário final seria uma nora do ex-presidente. Comparsa de petistas e peemedebistas, Baiano narrou minuciosamente como intermediou propina para as lideranças dos dois partidos. Tudo custeado pelos cofres da Petrobras. Tudo registrado em um documento de dezesseis páginas obtido por VEJA, no qual o delator, condenado a dezesseis anos e um mês de prisão por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, relata em detalhes sua atuação a serviço do PT e aliados no assalto à Petrobras.
Ouvido por três procuradores da Procuradoria-Geral da República no dia 9 de setembro deste ano, Baiano contou que os senadores Renan Calheiros, Delcídio Amaral e Jader Barbalho (PMDB-PA) e o ex-ministro de Minas e Energia Silas Rondeau negociaram pessoalmente propinas relacionadas a contratos da Petrobras. Em apenas uma negociata, eles receberam 6 milhões de dólares. A trama, relatou Baiano, aconteceu em 2006, num cenário muito parecido com o de hoje. Lula, ameaçado pelo mensalão e candidato à reeleição, entregou ministérios poderosos ao PMDB de Renan e Sarney como forma de atrair o partido para o seu lado. Deu-se, como ocorreu recentemente com Dilma, o encontro de um mandatário fragilizado e em busca de apoio com um partido sedento de cargos e verbas. Foi a combinação perfeita para produzir um novo escândalo — o petrolão.
Naquela época, a Petrobras experimentava uma inédita onda de prosperidade, estimulada pelas descobertas de petróleo em águas profundas. Baiano conta que, em 2005, tentava prospectar negócios, segundo ele, legítimos, mas a estrutura montada pelo governo já não permitia que isso acontecesse. Os bons e grandes contratos estavam reservados a quem pagava "comissões" aos funcionários e aos políticos. A estreia do delator no esquema de corrupção ocorreu depois da posse do hoje notório Nestor Gerveró. Com a morte do mensalão, o PT precisava de dinheiro para continuar subornando os políticos. O diretor escolhido por Lula para comandar a área internacional da estatal cobrava dos empreiteiros um porcentual sobre cada contrato assinado. A primeira experiência bem-sucedida foi a da compra do navio-sonda Petrobras 10000, um negócio de 586 milhões de dólares. Fernando Baiano, transformado em operador da quadrilha na área internacional, ficou encarregado de recolher 15 milhões de dólares em propina do estaleiro sul-coreano Samsung Heavy Industries. Em seu depoimento, ele conta que, dias depois de fechar o negócio, Cerveró, seu amigo, recebeu um telefonema. Do outro lado da linha, o petista Delcídio Amaral convocou-o para uma reunião em Brasília com o ministro de Minas e Energia. Na conversa, segundo Baiano, o ministro e o petista foram diretos. "Delcídio e Silas disseram a Cerveró que era necessário dar apoio à campanha de Delcídio, filiado ao PT, de Renan Calheiros e Jader Barbalho, ambos do PMDB. Em troca, os referidos políticos do PMDB passariam a dar sustentação a Cerveró", disse Baiano aos procuradores da equipe da Lava-Jato.
Como se sabe, a ousadia da quadrilha do petrolão chegou a ponto de os criminosos repassarem a propina como doação eleitoral, usando a Justiça Eleitoral para lavar o dinheiro sujo. A verba cobrada pelo acesso a contratos bilionários da Petrobras abastecia os bolsos dos políticos e o caixa de campanha dos partidos que davam sustentação ao governo — primeiro de Lula, depois de Dilma Rousseff. Todos ganhavam. Foi um crime planejado para ser perfeito. Tinha o aval do governo, como explicou Baiano: "Para Cerveró ser chamado para uma reunião como essa, ainda mais em razão da presença do ministro de Minas e Energia, era porque a contribuição era realmente necessária". Os valores a ser repassados ao esquema político deveriam sair do pagamento da sonda Petrobras 10 000. E assim foi feito. Fernando Baiano conta em seu depoimento que Delcídio e Rondeau pediram inicialmente 4 milhões de dólares de propina para dividir com Renan Calheiros e Jader Barbalho. O valor, no entanto, subiu para 6 milhões de dólares (23 milhões de reais) num segundo encontro em Brasília, quando Cerveró ficou frente a frente com o quarteto.
Nessa conversa, foi acertado que a propina seria entregue não por Fernando Baiano, mas pelo lobista Jorge Luz, homem de confiança de Renan e Barbalho. O próprio Jorge Luz, afirmou Baiano, comprometeu-se a falar com a dupla para combinar os repasses. O lobista, preso em Curitiba desde novembro do ano passado, disse aos procuradores que não sabe como foi acertada a divisão da propina milionária entre os novos padrinhos de Cerveró. Segundo ele, à medida que o estaleiro sul-coreano que construiu o navio-sonda depositava a propina, o dinheiro era imediatamente repassado a Jorge Luz para que chegasse aos bolsos dos quatro políticos. Baiano conta que, por ser um ano eleitoral, havia "uma pressão muito grande" por parte de Delcídio, Renan, Jader e Rondeau para receber a propina. A delação revela que, por causa dessa pressão, os acertos do dinheiro sujo destinado a Renan e seus comparsas chegaram a ser discutidos dentro da própria sede da Petrobras, no Rio de Janeiro.
Em uma das reuniões que teve para fazer a prestação de contas, Baiano foi até a sede da empresa de carona no carro de Jorge Luz, um Mercedes-Benz prata. "Inclusive se chegou a comentar na Petrobras que o Mercedes-Benz de Jorge Luz estava parando muito na Petrobras", diz Baiano. Além de participar das reuniões no Rio de Janeiro para fazer o controle dos pagamentos, Nestor Cerveró viajava com frequência a Brasília para tratar da mesada diretamente com Renan, Barbalho, Delcídio e Silas Rondeau. Segundo Baiano, os 6 milhões de dólares foram integralmente pagos em parcelas que começaram a ser liberadas entre o primeiro semestre de 2006 e março de 2007. Quando finalmente acabou de pagar o suborno, o operador pediu a Nestor Cerveró que confirmasse com o presidente do Congresso, o ministro e os senadores o recebimento dos valores. "Isso ocorreu em um jantar em Brasília em que os políticos confirmaram o recebimento das quantias", diz Baiano. Procurado, o petista Delcídio Amaral negou qualquer favorecimento. "Em 2006, eu era presidente da CPI dos Correios, era persona non grata no governo. Como poderia fazer um negócio desses? Tenho como provar que as declarações do Fernando Baiano a meu respeito são inverídicas."
Fernando Baiano contou ainda ter recebido um pedido de dinheiro para bancar a candidatura presidencial de Dilma em 2010, feito pelo ex-ministro Antonio Palocci. Acusações de recebimento de propina também são imputadas por Baiano ao presidente da Câmara, Eduardo Cunha, suspeito de ter recebido 5 milhões de dólares em propinas pelos contratos de outros navios-sonda, como o Vitória 10 000, operação que também pôs na cena do crime o pecuarista José Carlos Bumlai, outro figurão da República. Ele aparece reivindicando parte da propina para pagar despesas da campanha presidencial de Lula em 2006. Bumlai é amigo e tutor dos filhos e dos negócios do ex-presidente. Durante uma década, sob sua batuta, a família experimentou os benefícios da ascensão social. Lula tem uma conta bancária com 27 milhões de reais. Seus dois filhos seguiram a mesma trilha — empurrados também com dinheiro do petrolão, sabe-se agora. Ameaçados pela Justiça, como VEJA revelou na edição passada, Lula, Renan Calheiros, Eduardo Cunha e ministros de Dilma negociam a adesão a um vergonhoso acordo destinado a dar um tiro no peito da Operação Lava-Jato, garantindo a impunidade dos três mais importantes representantes da República e ainda salvando a pele de quem criou e tirou proveito político e pessoal do maior esquema de corrupção da história.
O Petrolão em estado puro
A delação de Fernando Baiano mostra como funcionava o maior esquema de corrupção da história. O presidente Lula escolhia os diretores da Petrobras, que recolhiam propina com as empreiteiras. O dinheiro era repassado aos políticos do PT e do PMDB — os dois partidos que davam sustentação ao governo Lula
1 A GÊNESE
Quando chegou ao Palácio do Planalto, em 2003, o presidente Lula loteou as diretorias da Petrobras entre os partidos aliados. A área internacional, por exemplo, foi entregue a um apadrinhado do senador petista Delcídio do Amaral e posteriormente passou a ser influenciada também por caciques do PMDB. Com o fim do mensalão e o controle de um orçamento bilionário, os políticos transformaram a Petrobras num gigantesco caixa que financiava campanhas eleitorais, mordomias e comprava apoio político dos aliados
2 OS HOMENS CERTOS
Em 2003, Lula nomeou para a diretoria internacional da Petrobras o economista Nestor Cerveró. No esquema do petrolão, ele era o responsável por recolher um porcentual de propina sobre todos os contratos fechados em seu setor. A proximidade com os políticos e o conhecimento das brechas na fiscalização da estatal fizeram de Cerveró um dos grandes personagens do petrolão. Condenado a penas que superam os dezessete anos de prisão por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, o ex-diretor está preso em Curitiba e negocia um acordo de delação premiada com a Justina
3 O OPERADOR
Em 2006, a Petrobras experimentava uma inédita onda de prosperidade, estimulada pelas descobertas de petróleo em águas profundas. Comandada por Cerveró, a diretoria internacional da companhia deu início a uma série de investimentos milionários na aquisição de plataformas de exploração. O primeiro contrato envolveu a construção do navio-sonda Petrobras 10000, um negócio de 586 milhões de dólares fechado com o estaleiro sul-coreano Samsung Heavy Industries. Foi quando Fernando Baiano entrou em cena no petrolão
4 O NEGÓCIO
O lobista Fernando Baiano tornou-se um dos mais bem-sucedidos operadores do esquema na Petrobras. Atuando em dobradinha com Nestor Cerveró, Baiano trabalhava como se fosse um dirigente na estatal. Era ele o responsável por negociar os valores das propinas que deveriam ser pagas pelas empresas interessadas em fechar contratos com a estatal. Nenhum contrato na diretoria de Cerveró era concluído sem seu aval. No caso do navio-sonda Petrobras 10000, foi Baiano que negociou o cronograma de repasse das propinas para o boíso dos políticos e servidores corruptos
5 A PROPINA
Além de abastecer a conta bancária de Baiano e de
Cerveró, o dinheiro sujo teve de ser dividido com políticos que apoiavam o governo Lula. Segundo Baiano, o presidente do Senado, Renan Calheiros, o líder do governo Dilma na Casa, Delcídio Amaral, o senador do PMDB do Pará, Jader Barbalho, e Silas Rondeau, ex-ministro de Minas e Energia do governo Lula, receberam 6 milhões de dólares em propinas. Os pagamentos foram negociados diretamente com Cerveró e repassados pelo lobista Jorge Luz
Veja – Epidemia de cinismo
Por Andre Petry
A degeneração da política brasileira chegou a tal ponto que declarações, negociações e acordões que deveriam provocar repulsa são feitos à luz do dia
Nem Cícero, cuja prosa esplêndida ajudou a elevar uma língua de alcoviteiros às glórias de um idioma épico, foi capaz de convencer os romanos da pureza permanente de seus propósitos. Na sua disputa fatal com Marco Antônio, mesmo Cícero usou seu latim para fazer o que todos os políticos fazem desde os primórdios da civilização — esconder, enganar, despistar e selar negociações, trocas e acordos que, examinados à luz do dia, causam embaraço e constrangimento. Por isso, profissionais e amadores concordam: a política é o território do cinismo. Mas, na semana passada, exacerbando uma tendência que se agiganta ano após ano, a política brasileira atingiu um patamar de descompostura capaz de impressionar os bárbaros e escandalizar os romanos.
Em encontro com sindicalistas da CUT, a presidente Dilma Rousseff fez seu discurso mais contundente contra a ameaça de impeachment e atacou seus adversários chamando-os de "moralistas sem moral". Referia-se ao fato de que, nas fileiras da oposição, há flor mas também há pântano, a começar pela aliança sempre envergonhada com o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, acusado de manter quatro contas secretas na Suíça. O raciocínio fazia sentido: querem limpar o governo com faxineiros enlameados? Ocorre que, antes do discurso moralista, Dilma deu uma demonstração daquela moral de conveniência que tanto desacredita os políticos: autorizou seus ministros a negociar um acordo de salvação mútua com o mesmo Eduardo Cunha das contas secretas na Suíça.
O próprio Cunha, em conversa com oposicionistas, disse talvez a frase mais emblemática da impudência da política nacional: "Se eu derrubo Dilma agora, no dia seguinte vocês me derrubam". Só ingênuos imaginam que interesses pessoais e de grupos não atalham o caminho das prioridades nacionais, mas até para isso há certos limites. Segundo o jornal O Globo, em sua negociação para salvar a cabeça de Dilma da guilhotina do impeachment em troca de manter a própria cabeça sobre o pescoço, Cunha fez três pedidos: a demissão do ministro da Justiça, o sepultamento do pedido de cassação do seu mandato no Conselho de Ética da Câmara e a paralisação das investigações da Lava-Jato, que acabaram descobrindo suas contas no exterior. As exigências, que deveriam causar repulsa, não provocam nem espanto. Pior: o governo negocia como se as reivindicações fossem razoáveis. Cunha nega qualquer tentativa de acordo com o governo.
Os bastidores de Brasília são o melhor convite para generalizações indevidas, mas cada vez mais corriqueiras, tais como: "todo político é ladrão" ou "político só pensa em si mesmo" ou "não existe político honesto". Ajudam a formar essa impressão discursos como o do ex-presidente Lula, diante de uma platéia de agricultores em São Bernardo na terça-feira passada. Lula, que nunca falara sobre as pedaladas fiscais de Dilma, resolveu dizer que elas decorreram da necessidade de pagar os programas sociais do governo. Ou seja: Dilma pedalou para ajudar os pobres. É incrível que, na mesma frase, o ex-presidente tenha dito que nada entende de pedaladas e nem sabe se elas, de fato, existiram. Mesmo assim, achou por bem apresentar uma "justificativa" que toda a platéia, por força de lógica, já sabia ser inventada.
O vale-tudo da política brasileira, que vai de uma declaração desonesta aos píncaros do petrolão, impede até que os políticos construam uma narrativa coerente sobre a crise. O PT diz que o impeachment é golpe porque faz só um ano que Dilma foi reeleita com 54 milhões de votos, mas não se assume como golpista por ter lançado a campanha pelo impeachment de Fernando Henrique em 1999, então reeleito, apenas um ano antes, com 36 milhões de votos. A oposição, por sua vez, apresenta o impeachment de Dilma como solução para um problema, mas não esconde que opera uma equação inversa: procura um problema (pedaladas fiscais, quem sabe?) contra o qual pretende aplicar a solução que já carrega no bolso do colete.
A falta de compostura dos políticos é um dos motivos que afastam os cidadãos da política. Apesar da presença maciça de jovens nas manifestações em 2013 e neste ano, a descrença na política entre eleitores de 18 a 29 anos é crescente. Não é um fenômeno apenas brasileiro. Uma pesquisa feita na Inglaterra em 2013 mostrou que somente 8% dos ingleses acreditam que os parlamentares dão prioridade aos interesses dos eleitores, enquanto mais da metade acha que eles só pensam neles mesmos. Nos Estados Unidos, um levantamento que ouviu 3100 eleitores com menos de 30 anos descobriu que a crença nas instituições declina ano após ano. Só 18% dos eleitores jovens têm algum nível de confiança no Congresso americano. Há cinco anos, eram 25%.
Fenômeno comum nas democracias ocidentais, o desencanto com a política é particularmente deletério em países que, como o Brasil, ainda enfrentam desafios já superados pelas nações mais desenvolvidas. Ao eleitor, porém, cabe lembrar que os políticos produzem essa epidemia de cinismo em Brasília por uma razão única e exclusiva: porque podem. Apostam, e muitas vezes acertam em cheio, que não serão punidos pelas urnas. Mesmo na algaravia da semana passada, pode-se ouvir a declaração mais vital sobre o desafio do momento. Ao afirmar que a oposição não pode blindar Cunha depois das contas na Suíça, o líder do PSDB no Senado, o paraibano Cássio Cunha Lima, pôs o dedo na ferida: "O que não pode é uma ética seletiva. Se nós queremos ética, ela tem de ser para tudo e para todos". Cunha Lima acerta ao refutar a ética seletiva e ao apresentar a condicionante: "Se nós queremos ética". Queremos? Nem Cícero gastaria seu latim em busca de uma resposta.
Veja – Na cueca, no colchão
Por Hugo Marques e Kalleo Coura
O ex-deputado petista André Vargas era uma estrela em ascensão na política e na vida pessoal até que veio a Operação Lava-Jato. Policiais e procuradores descobriram que o parlamentar paranaense, ao mesmo tempo em que galgava degraus em sua escalada no poder em Brasília, mantinha negócios escusos com o doleiro Alberto Youssef, um dos operadores do petrolão. Vargas voava nas asas de um jatinho de Youssef e, em contrapartida, usava sua influência para cavar contratos públicos que rendiam dinheiro à quadrilha. Mas isso ainda era só a ponta das atividades extras do parlamentar. Ele também faturava comissões em troca de contratos que arrumava no governo para uma agência de publicidade amiga. Vargas foi preso, teve o mandato cassado e já recebeu do juiz Sergio Moro sua primeira condenação: catorze anos de prisão. O que ele fazia com as propinas que recebia? Isso ainda está sob investigação, mas ele mesmo forneceu uma pista.
O ex-deputado prestou na semana passada um depoimento ao juiz Sergio Moro. Vargas é acusado de comprar uma casa em Londrina, cidade onde construiu sua carreira, com dinheiro de propina, um negócio de 1 milhão de reais. Indagado sobre a origem de 480 000 reais usados para completar a transação, o ex-deputado foi rápido na resposta: disse, sem maiores explicações, que era um dinheiro que ele vinha guardando havia anos, fruto de economias pessoais. "Eu guardava para uma eventualidade", afirmou ao juiz. A explicação provavelmente é verdadeira. O motivo do cuidado é que é absolutamente falso.
Estudos já demonstraram que a quantidade de dinheiro vivo que circula em uma economia está diretamente ligada aos níveis de corrupção do país. No Brasil, onde quase 40% das transações são feitas em dinheiro, a percepção de corrupção entre a população, medida pela Transparência Internacional, fica em 43 pontos — em uma escala em que zero é o maior grau de corrupção e 100 é a honestidade absoluta. Já em países nos quais há menos "cash" na praça — nos Estados Unidos, as cédulas respondem por cerca de 20% das transações, e em lugares como Reino Unido e Áustria, menos de 10% —, a percepção de corrupção é muito mais fraca: fica acima dos 70 pontos. "Há uma correlação direta entre corrupção e dinheiro vivo. Por que outra razão uma pessoa faria transações altas com cédulas num país com sérios problemas de segurança?", questiona o economista Gil Castello Branco, da ONG Contas Abertas.
O governo chinês percebeu isso há tempos. Desde 1988, as autoridades do país se recusam a emitir notas mais altas do que 100 iuanes — o equivalente hoje a apenas 16 dólares. Segundo especialistas em economia chinesa, o principal objetivo disso é tentar frear a corrupção. Afinal, é muito mais fácil pegar um corrupto em flagrante com um porta-malas cheio de dinheiro do que interceptar um suspeito envelope pardo. Isso não significa, obviamente, que todos os que declaram possuir dinheiro em casa têm culpa no cartório. Nas eleições do ano passado, oito em cada 100 candidatos declararam à Justiça cultuar esse hábito — alguns revelaram ter no cofre residencial até 3 milhões de reais. Somada, a dinheirama mantida por esses políticos fora do sistema bancário chega a incríveis 270 milhões. Tudo isso declarado à Receita — portanto, recursos insuspeitos. A própria presidente Dilma Rousseff integra essa lista. Ela declara possuir 152 000 reais "em espécie", mais do que os 129 000 aplicados em sua conta de poupança na Caixa Econômica Federal. Outro adepto da prática é o ex-presidente do Banco do Brasil e atual presidente da Petrobras, Aldemir Bendine, que chegou a ser multado por não comprovar a origem de 280 000 reais informados em sua declaração de renda.
Mas existem também aqueles personagens que, por mais que tentem, não conseguem convencer ninguém de que não há nada errado. É o caso de José Adalberto Vieira, ex-assessor do atual líder do governo na Câmara, José Guimarães (PT-CE), que, no auge das denúncias do mensalão, foi flagrado no Aeroporto de Congonhas com 100 000 dólares escondidos na cueca e mais 209 000 reais em uma maleta. O assessor e o deputado até tentaram se se explicar: disseram que o dinheiro era proveniente da venda de melões. Era propina mesmo.
Contrato de 2 milhões
Como um pequeno empresário, acostumado apenas a reformar varandas de apartamentos, de repente é contratado a peso de ouro pela maior empreiteira brasileira para uma parceria de sucesso na construção de uma usina hidrelétrica na África? Essa é a pergunta de 2 milhões de dólares que Taiguara Rodrigues dos Santos, sobrinho da primeira mulher do ex-presidente Lula, teimou em não responder na última quinta-feira à CPI do BNDES. VEJA revelou em fevereiro que a Exergia Brasil, a empresa do sobrinho, foi contratada em 2012 pela Odebrecht, uma das empreiteiras do petrolão, para trabalhar nas obras de ampliação e modernização de uma hidrelétrica. Para o ex-vidraceiro falido, um negócio da China - ou melhor, de Angola. Taiguara garantiu que a parceria com a Odebrecht nada tem a ver com sua conexão familiar com Lula. "Influência zero do ex-presidente Lula", afirmou. 0 sobrinho, porém, reconheceu que o negócio saiu depois que ele esteve com Alexandrino Alencar, diretor da Odebrecht, acusado de pagar propina e solto na última sexta-feira após um período de quatro meses de cadeia. Dito isso, nem precisava responder mais nada.
Veja – O jogo do Impeachment
Por Mariana Barros
A possibilidade de que o Congresso tire Dilma Rousseff do cargo retrocedeu duas casas na última rodada, mas as peças continuam a andar, mais perto do fim que do começo
Depois de avançar várias casas nas últimas rodadas, na semana passada a possibilidade de um impeachment da presidente Dilma Rousseff andou um pouco para trás, como mostra o tabuleiro ao lado. O presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), tinha combinado com a oposição que arquivaria um pedido de impedimento da petista, mas deixaria aberta a possibilidade de que deputados recorressem ao plenário para contestar a decisão. Assim, bastariam 257 dos 513 votos para que o processo começasse a andar. Mas o Supremo Tribunal Federal determinou, de maneira provisória, que Cunha não pode fazer isso: por enquanto, ou bem ele aceita o pedido ou o rejeita, sem chance de recurso. A possibilidade de uma votação, então, voltou duas casas.
O jogo, portanto, acabou? Não. Cunha ainda tem o poder para resolver se abre ou não um processo de impeachment contra Dilma. Na semana passada, ele e o governo federal tentaram fechar um acordo, com a ajuda de sempre do ex-presidente Lula, para que ambos consigam uma boia de salvação. De um lado, Cunha engavetaria todos os pedidos de afastamento de Dilma. O governo, em contrapartida, ajudaria a barrar a ação contra o presidente da Câmara no Conselho de Etica e acabaria com os vazamentos da Operação Lava-Jato sobre as contas de Cunha e familiares na Suíça, entre outras suspeitas. Se der certo, o jogo poderá voltar lá para o começo.
Não há, contudo, garantia de que o combinado dará certo. Na quinta-feira, o STF autorizou a abertura de um inquérito contra Cunha, a mulher e a filha dele, para apurar a existência de contas na Suíça. Em sua delação premiada, o lobista Fernando Soares, também conhecido como Fernando Baiano, afirmou ter entregado ao menos 1 milhão de reais em dinheiro vivo ao peemedebista. Ou seja, se uma parte do "trato" não for cumprida, ele poderá acatar um dos pedidos de impedimento.
Nesta semana, o jurista Hélio Bicudo deve apresentar mais um pedido de impeachment, o 26- desde fevereiro (vinte já foram arquivados, e cinco continuam em análise). Nessa nova solicitação, Bicudo, um dos fundadores do PT, tem um argumento central: o governo Dilma continuou a cometer, em 2015, as chamadas "pedaladas fiscais" — a tomar dinheiro que não tem, nos bancos públicos, para pagar as contas, algo que é terminantemente proibido pela Lei de Responsabilidade Fiscal. As contas do ano passado já foram rejeitadas pelo Tribunal de Contas da União exatamente por essas práticas, mas alguns advogados alegam que Dilma só pode ser processada por problemas do atual mandato. É essa a peça de dominó que o novo pedido pretende derrubar.
Se Cunha fizer avançar o impeachment, o jogo poderá se aproximar perigosamente do fim para Dilma. A criação de uma comissão especial para analisar o processo se dará velozmente. O relatório produzido seria submetido ao plenário da Câmara, em busca de apoio de dois terços dos deputados — 342 de 513 — para o afastamento de Dilma. Façam suas apostas.
Veja – A corrupção e suas oportunidades / Artigo / Mailson da Nóbrega
Nos tempos atuais, a corrupção se institucionalizou de forma inédita. Nas administrações petistas, a corrupção passou a ter método, regras, metas e objetivos. Sob orientação de um projeto de permanência no poder, buscava-se arrecadar fundos para financiar campanhas e comprar apoio político. No assalto ao Estado, muitos aproveitaram para enriquecer.
John T. Noonan Jr. publicou um livro (Bribes, 1984) considerado o melhor já escrito sobre corrupção (a versão brasileira — Subornos — é de 1989). A corrupção, diz ele, tem sido praticada por diferentes pessoas, raças e credos. Há registros desde o Egito antigo e o Império Romano. Judas se corrompeu para trair Jesus por trinta dinheiros.
Em certas épocas, a corrupção rivalizava com a prostituição e a escravidão como motivo de condenação moral. O presidente americano Abraham Lincoln praticou suborno para conseguir a aprovação da emenda constitucional que aboliu a escravidão, mediante oferta de cargos no governo e de dinheiro em espécie.
Noonan contesta a ideia de que "a corrupção jamais foi quantificada" e de que "não há estatísticas sobre quantos aceitam ou vão aceitar suborno". O mensalão e o petrolão lhe deram razão. No segundo, o maior deles, cálculos oficiais falam em perdas de 19 bilhões de reais. A Petrobras realizou baixa contábil de 50 bilhões de reais. E reconheceu estrago de 6 bilhões de reais em seu balanço de 2014.
Para André Lara Resende (Valor, 31/7/2015), o padrão do ser humano é ser honesto. A desonestidade seria a exceção. Em certas culturas, opta-se por não levar vantagem, "mesmo quando não há punição para o comportamento incorreto". Lara Resende menciona o "capital cívico", isto é, as crenças e os valores que estimulam a cooperação entre as pessoas. Quando ele é baixo, o Estado é visto como criador de vantagens. A corrupção instala-se, alastra-se e infecciona a sociedade. Algo familiar?
A corrupção é inibida quando há instituições que permitem detectar, investigar e punir os corruptos. Já melhoramos muito no primeiro aspecto. A tecnologia digital, os algoritmos e os softwares avançados do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) criaram a inteligência para identificar movimentações financeiras suspeitas. Caiu o véu que encobria os crimes do petrolão.
Avançamos também nos outros dois aspectos. A Polícia Federal e o Ministério Público Federal investigam o petrolão de forma independente. A lei da colaboração premiada ampliou e acelerou os respectivos trabalhos. O juiz Sergio Moro completa o quadro com ação firme e segura, imprimindo velocidade inédita em seus despachos e julgamentos.
O Ministério Público (MP) intenta melhorar ainda mais o arcabouço institucional nesse campo. Para tanto, elaborou dez medidas contra a corrupção, constantes de vários anteprojetos de lei e um anteprojeto de emenda constitucional (www.combateacorrupcao.mpf.mp.br). O objetivo é conseguir 1,5 milhão de assinaturas para encaminhá-las ao Congresso como iniciativa popular.
A experiência mostra, todavia, que as punições previstas nas leis atuais e em novas dificilmente são suficientes para inibir a corrupção na amplitude necessária. Basta ver que o petrolão aconteceu e continuou apesar do impeachment do ex-presidente Fernando Collor e das sentenças do Supremo Tribunal Federal na ação penal do mensalão.
Como assinala um especialista no assunto, Robert Klit-gaard, em entrevista às páginas amarelas de VEJA (13/5/2015), "a corrupção tem menos a ver com paixões do que com oportunidades. Se as condições estiverem propícias, haverá um incentivo para que ela ocorra".
Um passo fundamental para coibir a corrupção é rever o papel do Estado na economia brasileira, incluindo a retomada da venda de empresas estatais. Por que não discutir a privatização da Petrobras e de outras vacas sagradas? No governo, o PT preferiu ampliar a ação estatal, reeditar controles de preços e restabelecer a arcaica regra de conteúdo local nos fornecimentos ao setor público. Tudo isso se transformou em canais para mais corrupção. O petróleo é o destaque mais triste, caro e visível.
Medidas institucionais não bastam. É preciso fechar janelas de oportunidade para a corrupção.
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