Bolsonaristas expulsam da 'nação' quem não faz parte de seu 'povo'
É um pensamento que ultrapassa a ala dita olavista do governo, como ficou patente em uma entrevista que o general Augusto Heleno deu recentemente
Revista Época, 8/06/2019
É frequente na retórica de autoridades do governo Bolsonaro a pretensão de falar e agir em nome do “povo”. Os olavistas do governo, como o chanceler Ernesto Araújo, estão entre os que mais batem nessa tecla em suas declarações.
No dia da manifestação pró-Bolsonaro ocorrida no final de maio, por exemplo, Araújo escreveu no Twitter: “O Brasil caminha rumo ao exercício do poder pelo povo. Rumo a desfazer as amarras que sempre ataram o povo: amarras políticas, econômicas e também amarras ideológicas e culturais do politicamente correto e do marxismo de contrabando”.
Na retórica do governo Bolsonaro, uma parte do povo — às vezes chamada de “os homens de bem” — é tomada por sua totalidade, mesmo quando se sabe que, até no universo dos brasileiros que votaram no presidente, o “povo” do tuíte de Araújo é uma fração do todo. Em relação a várias iniciativas do governo, como a liberalização da posse e do porte de armas, as pesquisas mostram que uma maioria até mais ampla do que o conjunto dos cidadãos que não votaram em Bolsonaro discorda de suas posições .
Como em tudo que faz parte da ideologia bolsonarista, não há nada de original nisso. Em uma
entrevista imperdível ao repórter André Duchiade, do “Globo”, o historiador israelense Zeev Sternhell, especialista no pensamento anti-iluminista, lembrou que há duas concepções de nação.
Os iluministas — que se insurgiram contra a junção de fé e poder e desenvolveram a ideia da igualdade dos homens e dos direitos humanos —, definiram a nação simplesmente como um “conjunto de pessoas que vivem em um determinado território delimitado por certas fronteiras e obedecem ao mesmo governo”. A nação, disse Sternhell, “é vista com uma comunidade de cidadãos, que podem definir os seus próprios destinos”.
Na concepção anti-iluminista, que no século XX deu origem ao fascismo, a nação é vista como um corpo orgânico, “onde os indivíduos não têm interesses antagonísticos entre si”, explicou o historiador. Segundo essa tradição, as pessoas, presas a culturas nacionais atávicas, não têm autonomia de decisão e compõem uma massa homogênea, cuja função é servir o Estado.
Os bolsonaristas demonstram que compartilham dessa concepção quando põem para fora da nação todos os que não consideram que fazem parte do seu “povo”. É um pensamento que ultrapassa a ala dita olavista do governo, como ficou patente na entrevista que o general Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional, deu recentemente ao jornal “Valor”.
Ao comparar os protestos estudantis contra os cortes no ensino superior à manifestação pró-Bolsonaro, Heleno expulsou da sua nação particular os milhares de jovens — muito mais diversos na sua cor e origem social do que os estudantes de 1968 — que saem às ruas porque veem sua esperança de futuro pela educação decepada por um governo obcecado pelo sexo alheio e por instrumentos de morte, sejam eles as armas propriamente ou volantes de carro.
“Uma das coisas que ficaram demonstradas na manifestação [a favor de Bolsonaro] é que existe uma grande parcela do povo brasileiro que foi para a rua com a bandeira do Brasil. Na manifestação dos estudantes havia pouquíssimas bandeiras do Brasil. Isso para mim é um absurdo, é fruto de toda essa doutrinação ideológica que foi feita nos últimos 20 anos. Então, nossos jovens não têm o país na cabeça”, disse Heleno, dias depois de Bolsonaro chamar os estudantes de “idiotas inúteis”.
O presidente — secundado por um de seus ministros mais influentes — transformou uma multidão diversa em uma turba de “doutrinados” por supostos alienígenas, sem capacidade de pensamento próprio, sem autonomia. Nada surpreendente para quem, em um banquete para Steve Bannon e Olavo de Carvalho na embaixada brasileira em Washington, em março, pronunciou a fala definidora do seu mandato: “Eu sempre sonhei em libertar o Brasil da ideologia nefasta de esquerda (...). O Brasil não é um terreno aberto onde nós pretendemos construir coisas para o nosso povo. Nós temos é que desconstruir muita coisa. Desfazer muita coisa. Para depois nós começarmos a fazer”.
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